Roteiros homiléticos

27º Domingo do Tempo Comum – 7 de outubro

Por Rita Maria Gomes, nj

I. Introdução geral

A liturgia deste dia nos convida a refletir sobre a imagem de Deus no outro humano com quem somos confrontados durante nossa existência terrena. O humano modelado no jardim se reconhece e reconhece a imagem de Deus ao olhar para a mulher. Nesse duplo reconhecimento, que é também distinção, o humano se sabe imagem de Deus, mas não deus. O evangelho chama a atenção para esse momento originário em que o humano se reconhece implicado matrimonialmente pelo amor que liga os cônjuges e vem de seu Criador. Do mesmo modo, Jesus é aquele que, na condição de humano, por sua inteira solidariedade conosco, pode nos mostrar a verdadeira imagem divina e nos conduzir à visão mesma de Deus.

Enquanto nos conduzimos em nossa vida terrena, contamos com o olhar constante e misericordioso de Deus. É isso que nos mostra o salmista quando diz: “O Senhor te abençoe de Sião cada dia de tua vida”. Assim, contemplamos a imagem de Deus em seu Filho, Jesus Cristo, do mesmo modo que somos convidados a ver essa imagem nos nossos semelhantes, ainda que venha marcada pelos sofrimentos.

II. Comentários dos textos bíblicos
  1. I leitura: Gn 2,18-24

O segundo capítulo do Gênesis discorre sobre a formação do primeiro casal. Isso começa com a criação do humano, formado do pó da terra, o qual, ao receber do Criador o hálito da vida, se tornou um ser vivente (cf. Gn 2,7). O Senhor o colocou no jardim e o encarregou de cultivá-lo e guardá-lo (cf. Gn 2,15). Depois, para não deixar sozinha sua criatura, criou as feras e aves. Contudo, a solidão dela não fora aplacada. O humano necessitava de uma companhia que lhe correspondesse. Os animais podiam acompanhá-lo, mas não dialogar com ele. Diante deles, deu provas de sua autonomia, discernimento e poder, demonstrados por sua capacidade de organizar o mundo pela palavra, como vemos na nomeação dos animais e na determinação de seu lugar no mundo: domésticos, aves do céu e selvagens (v. 20). Estes, como o humano, também foram modelados do pó da terra, contudo não lhe ofereciam a parceria esperada (v. 20).

A resposta à solidão do ser humano foi a criação do seu “face a face”, de sua ajuda adequada, formada não do pó da terra, mas dele mesmo, de seu lado. Ao concluir sua obra, Deus a conduz ao homem, que reconhece a mulher como, ao mesmo tempo, diferente e parte de si, como seu “outro eu”, a parceria esperada, com quem compartilha a identidade e o poder e experimenta a complementaridade. A exclamação expressa sua surpresa e maravilhamento: “osso dos meus ossos e carne da minha carne!” (v. 23). Indica também a inter-relação e a comunhão entre ambos. Ao mesmo tempo, indica o reconhecimento de que, ela sim, era sua companhia esperada.

Imediatamente, chamou-a mulher, porque foi tirada do homem. O jogo com as palavras em hebraico evidencia ainda mais essa correspondência: será chamada îsha, porque foi tirada de îsh. O autor sagrado explica, no v. 24, que a aprovação e o reconhecimento – por parte do homem – da mulher como seu “outro eu” os levarão a constituir uma relação muito mais forte do que a do humano com a terra, de onde fora formado, e do humano com os outros animais, com quem compartilhava a origem. Ambos, homem e mulher, formarão uma só carne, uma só existência, uma aliança mais forte do que os laços familiares.

A formação do primeiro casal aponta para o Deus criador como a origem do amor conjugal. Ao olhar para a mulher, o homem a vê como parte de si, enxerga a imagem de Deus impressa nela. Isso é muito mais do que saberia ou poderia pedir. O amor conjugal nasce da vontade divina. É dom de Deus.

  1. Evangelho: Mc 10,2-16

Jesus continua seu caminho. Deixa a região da Galileia e segue para a Judeia, além do Jordão, ensinando às multidões que se formavam ao redor dele (cf. Mc 10,1). Os fariseus, na tentativa de pô-lo à prova, questionam-no sobre o divórcio, um assunto delicado ainda em nossos dias, perguntando-lhe se é permitido ao homem repudiar sua mulher (v. 2). Note-se que, ao debater sobre o divórcio, os fariseus estão preocupados com a sua legitimidade. Diante disso, Jesus responde, perguntando o que estava prescrito na Lei de Moisés (v. 3). Os fariseus respondem que a Lei de Moisés previa e autorizava o divórcio (cf. Dt 24,1).

Jesus, porém, prossegue o seu ensinamento, denunciando o disfarçado apego à Lei daqueles que fazem uso dela para se afastarem do plano originário de Deus. Em sua resposta, Jesus deixa claro que a carta de repúdio visava remediar as ações que a dureza de coração poderia provocar (v. 6). Nesse caso, a Lei não reflete a vontade de Deus, mas visa corrigir ou compensar as perversões humanas. No horizonte de Jesus, está o projeto de Deus. Sua justiça é entendida como correspondência a esse projeto, não como uma aplicação fria e legalista de normas, ainda que estas fizessem parte da Lei dada ao povo como instrução.

Jesus evoca o relato da formação do primeiro casal (cf. Gn 2,18-24) para mostrar que o enlace matrimonial não pode ser concebido como ato legal simplesmente, mas sobretudo como aliança fundada no amor e, por isso, inviolável, fruto da vontade de Deus e do reconhecimento do cônjuge como “outro eu”, com quem realizo, experimento e compartilho uma só existência. Desse modo, pode ser compreendido como expressão do amor de Deus por seu povo.

Apenas entendido como aliança de amor é que o matrimônio poderá sobreviver às crises e aos desafios pelos quais passam os casais. Somente a compreensão do enlace conjugal como aliança de amor que constitui uma única existência levará à compreensão do divórcio como mutilação. Jesus não oferece nova legislação. Ele retoma a profundidade e o sentido do projeto de Deus. Sua vida e seu modo de amar os seus até o fim (cf. Jo 13,1) revelam com que amor devemos amar, e desse modo, amando como Jesus, os cônjuges são capazes de corresponder ao amor de Deus e a seu propósito originário.

Nesse sentido, é compreensível que o texto que segue o ensinamento de Jesus sobre o matrimônio e o divórcio (vv. 2-12) seja o do acolhimento das criancinhas (vv. 13-16), as quais Jesus declara serem paradigma para o discípulo. O Reino pertence aos que são como elas (v. 15). As criancinhas deixam-se abraçar e abençoar por Jesus. E, dessa maneira, são envolvidas por seu amor, deixam-se tocar por sua benevolência. Aprendem dele. São imagem da pureza e da inocência do primeiro casal, que estavam nus, sem reservas um diante do outro e diante de Deus, e não se envergonham (cf. Gn 2,25).

Os discípulos de Jesus, como as criancinhas, devem estar abertos ao dom de Deus. O matrimônio, mais do que um contrato civil, é dom de Deus para a humanidade e deve ser acolhido como tal, não como um fardo. É juramento sagrado – realizado na presença de Deus – que constitui uma só existência. Por isso, é inviolável (v. 9). É sacramento da aliança de Deus com seu povo.

  1. II leitura: Hb 2,9-11

Jesus veio para nós. Viveu sua existência humana em nosso meio e, como qualquer ser humano, foi feito “pouco menor que os anjos”; no entanto, vemo-lo coroado de glória (v. 9), pela sua ressurreição. A morte de Jesus é o cume da encarnação, pela qual se uniu a todos os seres humanos. O Verbo de Deus assumiu nossa humanidade, aceitou viver em nossa condição. Nesse sentido, o Santificador e os santificados descendem de um só. Somos filhos com o Filho, porque ele foi Filho conosco (v. 11).

A morte de Cristo foi desconcertante e constrangedora, fato que seus discípulos tiveram de elaborar, tanto para compreendê-lo melhor como para anunciar o evangelho aos demais. O autor de Hebreus anuncia que Jesus experimentou a morte para salvar a todos. Sua vida inteira – encarnação, paixão, morte e ressurreição – é palavra de Deus a nos instruir e nos conduzir à comunhão com ele. É dom de Deus, palavra inesperada, que ultrapassa nossas expectativas e surpreende as nossas esperanças.

III. Pistas para reflexão

A fé bíblica afirma que o ser humano é imagem e semelhança de Deus. Tal característica não diz respeito a uma qualidade presente no corpo, mas está impressa no ser humano em sua liberdade e “relacionalidade”, na sua capacidade de amar. Somos chamados pela liturgia deste dia a reconhecer que Deus não nos abandonou à própria sorte. Antes, ajudou-nos com sua misericórdia, considerando nossa debilidade e dando-nos mais do que merecemos e pedimos.

“Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). A solidão do ser humano teve como resposta de Deus a formação do primeiro casal. Homem e mulher são mais do que semelhantes, são parte um do outro. Ambos formam, diante de Deus, pelo enlace matrimonial, uma só carne. E isso é possível por causa do amor, baseia-se no reconhecimento da própria imagem no rosto do outro e implica o comprometimento e a doação de ambos. É esse o projeto originário de Deus, evocado por Jesus para responder a seus contemporâneos a respeito da licitude do divórcio.

Hebreus começa com a declaração de que nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio de seu Filho (cf. Hb 1,2). Jesus é o humano verdadeiro porque confia em Deus, é aquilo que todo ser humano é chamado a ser: filho de Deus. Em favor de todos nós, assumiu nossa humanidade, tornou-se um conosco, para a nossa salvação. A solidariedade e a comunhão, vivenciadas e propostas por Jesus, configuram e realizam o projeto primeiro de Deus para o ser humano. Ele é o dom de Deus. A salvação que ele nos trouxe é muito mais do que poderíamos esperar.

Rita Maria Gomes, nj

Ir. Rita Maria Gomes, nj, é natural do Ceará, onde fez seus estudos em Filosofia no Instituto Teológico e Pastoral do Ceará (Itep), atual Faculdade Católica de Fortaleza. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde leciona Sagrada Escritura. É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da Sagrada Escritura. E-mail: [email protected]