Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2022 - ano 63 - número 344 - pág.: 62-64

2º DOMINGO DA PÁSCOA – 24 de abril

Por Marcus Mareano

Jesus no meio de nós

I. INTRODUÇÃO GERAL

Imaginemos como os discípulos se encontravam após a morte do Mestre Jesus! Eles tinham aprendido de Jesus, convivido, testemunhado muitas coisas e, de repente, tudo parecia terminar com uma morte de cruz: expectativas, sonhos, projetos etc. Entretanto, a morte é vencida e Jesus surpreende seus amigos em uma visita inusitada.

Os “ecos” da celebração da Vigília Pascal continuam. A proclamação da ressurreição acontece, neste domingo, com a cena do encontro de Jesus com os discípulos, quando estavam reunidos a portas fechadas, por medo dos judeus. O episódio faz-nos pensar nos tantos fechamentos internos que possuímos, nos medos obscuros que nos atormentam e nas ameaças que imaginamos. A visita do Senhor transforma os receios em alegria indescritível.

Se já não tocamos o Senhor na materialidade, como os discípulos foram convidados a fazer, podemos tocá-lo na experiência de fé, por meio da liturgia. A oração ultrapassa o espaço e o tempo e, assim, participamos do mistério que ouvimos na Palavra de Deus.

Além de nos ritos litúrgicos, encontramo-nos com Cristo em tantos irmãos e irmãs que refletem essa ressurreição para nós. Podemos deparar com essa presença em nosso meio e ser, de igual modo, portadores de ressurreição por onde formos e com quem encontrarmos. Assim, a ressurreição vai se realizando entre nós.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (At 5,12-16)

A primeira leitura traz o terceiro dos três relatos (At 2,42-47; 4,32-35; 5,12-16) do ideal da vida cristã no princípio da nossa era, o qual ainda serve de parâmetro para nós, na atualidade. Esses textos apresentam-se como “sumários” na narrativa de Atos dos Apóstolos, para demonstrar o crescimento e a identidade dos cristãos, os quais, naquele período, eram um grupo minoritário no Império Romano.

O relato da leitura se centra nos prodígios realizados por meio dos apóstolos. Eles ainda se reuniam no templo (v. 12), mas se distinguiam das outras pessoas pela maneira de viver (v. 13). Por isso, muitos homens e mulheres aderiam à sua mensagem (v. 14), entre os quais estrangeiros e enfermos, que recorriam a Pedro e aos discípulos para serem curados. O mandato de Jesus estava se cumprindo por meio daquelas ações (Lc 10,9; Mc 3,13-15).

A assiduidade no ensinamento apostólico, a comunhão fraterna, a partilha do pão e a oração em comum caracterizavam quem seguia Jesus Cristo. A vivência da fé em Cristo provocava novo modo de ser, diferente do verificado nos grupos religiosos já existentes. A mensagem de Jesus atraía mais pelo entusiasmo de como se vivia do que por força da oratória e da argumentação. Por esse testemunho, o número dos que se convertiam aumentava e era destaque no relato de Lucas (At 2,47; 4,4; 5,14; 6,1.7; 9,31; 11,21.24; 12,24; 13,48-49; 16,5; 19,20).

Da mesma forma, séculos depois, o sonho da fraternidade universal e da partilha de bens deve permanecer como distintivo cristão na sociedade. Enfrentamos outros desafios e vivemos em outro contexto, diferentes dos do primeiro século, porém essa leitura ensina como viver melhor a relação com as pessoas e com as coisas. Trata-se de um ensinamento cristão que pode ultrapassar os âmbitos da confissão de fé e chegar a pessoas de outras religiões, para um ideal de vida comum no nosso planeta tão ameaçado.

2. II leitura (Ap 1,9-11a.12-13.17-19)

A palavra “apocalipse” significa “revelação”. O livro que recebe esse título, no Novo Testamento, apresenta uma narrativa da ação de Deus na história humana, conduzindo-a à comunhão com ele e superando as tribulações presentes. O autor usa de imagens e fenômenos para transmitir uma mensagem de esperança à comunidade perseguida.

O trecho da segunda leitura narra a visão de uma mensagem destinada às Igrejas da Ásia Menor. João se volta para a voz e vê sete candelabros e, no centro deles, um ser humano (um “filho de homem”, como se diz na Bíblia – Dn 7,14); alguém muito especial, pois está envolto em luz, no centro da visão, com vestes brancas e douradas, representando sacerdócio e realeza (v. 12-13). Trata-se de uma descrição do Senhor ressuscitado, com elementos bíblicos conhecidos pela comunidade à qual se destinava o texto.

João, assombrado com aquela experiência tremenda, cai aos pés do Filho do Homem e sente a mão direita dele (o lado da força) sobre si (v. 17). O Filho do Homem se identifica com as atribuições divinas: o princípio e o fim, criador e consumador de todas as coisas. Por isso, o profeta e os que recebem seu testemunho não precisam temer.

O Filho do Homem venceu a morte. Ele morreu, mas vive eternamente e possui as chaves da morte e do Hades (a mansão dos mortos, o Xeol). Os leitores e ouvintes do texto, daquele tempo e do presente, imediatamente identificam a imagem e a descrição com Jesus Cristo, que morreu, venceu a morte, ressuscitou dentre os mortos e vive eternamente. Esse é o núcleo da fé cristã hoje celebrado na liturgia.

3. Evangelho (Jo 20,19-31)

No Evangelho deste domingo, lemos um dos tantos relatos das chamadas aparições do Ressuscitado à comunidade. O v. 19 descreve um pouco o estado do grupo de Jesus: eles estavam reunidos a portas fechadas por medo dos judeus – situação aguardada e comum para um grupo cujo líder fora crucificado.

Jesus vai aos discípulos e se coloca no meio deles, desejando-lhes a paz e apresentando suas mãos e seu lado. Aquele que fora abandonado regressa para aqueles que o abandonaram. Ele, que caminhou com os discípulos por tantas estradas, encontra-os fechados e quietos naquela sala.

Os discípulos se enchem de alegria por verem o Senhor (v. 20). A situação conflituosa e perturbadora é convertida em profunda alegria, entusiasmo, ânimo e coragem. O inverso daquilo que os discípulos sentiam, antes desse encontro com o Ressuscitado. A experiência da ressurreição de Jesus é transformadora, empolgante e arranca o ser humano da própria angústia, abrindo-o à felicidade plena e ao sentido da vida.

Ainda falando, Jesus acrescenta: “Como o Pai me enviou, também vos envio” (v. 21). Os discípulos têm a tarefa de anunciar e testemunhar aquela experiência de fé que lhes converteu o coração. Doravante, a intrepidez, a ousadia e o destemor devem caracterizar a nova postura de vida e a proclamação da ressurreição de Jesus, que apresenta também suas chagas glorificadas como sua identificação e como registro de sua entrega amorosa a Deus e à humanidade. Tamanha era a graça que os discípulos tinham, que não podiam retê-la para si mesmos; são, portanto, enviados para transmiti-la, a fim de também converterem os medos e as mortes em destemor e vida nova.

Para isso, os discípulos recebem o Espírito Santo, continuando a missão de Jesus Cristo, proclamando e realizando o que foi sua missão: o perdão dos pecados (v. 23). Testemunhar o Ressuscitado significa viver impelido pelo Espírito de Deus, que foi soprado sobre todos, dando-nos vida nova, plena e em comunhão definitiva com Deus.

A segunda parte do Evangelho de hoje apresenta a experiência de Tomé (v. 24-28), representante de quem quer acreditar na ressurreição de Jesus. Ele não estava com o grupo por ocasião do encontro entre Jesus e os outros discípulos (v. 24), apenas ouve o testemunho deles: “Nós vimos o Senhor” (v. 25). Tomé anseia pelo mesmo encontro e, além disso, quer colocar os dedos nas marcas dos pregos e a mão no lado aberto. Trata-se do anseio de quem escuta uma notícia a respeito de um evento imprevisível.

João narra novo encontro de Jesus com seus discípulos no primeiro dia da semana, desta vez com a presença de Tomé (v. 19.26). O desejo de paz de Jesus para o seu grupo continua (v. 26). Em seguida, ele convida Tomé a pôr o dedo na ferida e estender a mão para colocá-la no seu lado. Trata-se do convite à experiência de fé e à aproximação do mistério de ressurreição.

A reação de Tomé foi de reverência e reconhecimento daquele diante de quem ele estava. Não era um fantasma ou fruto do desvario dos outros discípulos. Era Jesus crucificado, ressuscitado por Deus, trazendo as marcas da paixão e a glória da ressurreição. Uma situação não se dissocia da outra: o crucificado-glorificado é o ressuscitado com suas chagas.

O trecho do Evangelho se conclui com a informação de que Jesus realizou muitos outros sinais além daqueles relatados e conhecidos por nós (v. 31). Ele continua agindo em nossa história humana. O que lemos e ouvimos a respeito do Senhor é um apelo à fé, para que tenhamos vida no nome dele.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Essas leituras nos põem em relação com o Ressuscitado, aquele que pode transformar nossos sentimentos em paz e alegria, a fim de que o testemunhemos. Para isso, ele sopra sobre nós seu Espírito, para vivermos o perdão dos pecados.

Outras “chagas” se apresentam diante de nós no mundo contemporâneo. Os pobres, doentes e excluídos de nosso tempo representam novos rostos, com os quais podemos praticar a experiência de Tomé. Tocar essas feridas, hoje, implica ser presença solidária, acompanhar, contribuir, apoiar, alimentar sintonia e comunhão com aqueles que clamam por justiça e por uma presença consoladora, carregada de ternura e compaixão.

A experiência de encontro com o Senhor ressuscitado não é delírio dos primeiros discípulos ou ideia infundada da comunidade primitiva. A mudança de vida confirma o que o Espírito Santo gera naqueles que se dispõem a ele. Assim, que nossas liturgias nos ajudem a viver o compromisso do perdão e do amor, a exemplo de Jesus.

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]