Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2022 - ano 63 - número 344 - pág.: 46-48

2º DOMINGO DA QUARESMA – 13 de março

Por Marcus Mareano

Transformação em Cristo

I. INTRODUÇÃO GERAL

No nosso itinerário quaresmal, subimos ao monte para sermos iluminados por Cristo. A imagem do deserto, do primeiro domingo, ganha luz e transformação neste segundo domingo. O processo de conversão iniciado deve continuar e culminar com a celebração da Páscoa do Senhor. A promessa de Deus a Abraão e a aliança entre ambos constituem a primeira leitura da liturgia deste dia. No Evangelho, Jesus se transfigura diante dos seus discípulos e lhes antecipa o que será a humanidade glorificada em Cristo. Na segunda leitura, Paulo descreve o contraste entre nossa realidade humana desfigurada e a destinação transfigurada para a qual todos são chamados a partir da fé em Cristo. As leituras ecoam luz e transformação de coisas velhas em novas. A transfiguração de Jesus lança luzes em nossas trevas pessoais e nas escuridões que vivemos. Pessoas transfiguradas por Cristo contribuem para um mundo menos obscurecido pelas injustiças, desigualdade social, desemprego, fome, desgovernos etc. Ser iluminados exige iluminar, com a luz de Cristo, as realidades necessárias.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Gn 15,5-12.17-18)

Abraão é recordado, em muitas passagens das Escrituras, como o “pai da fé” (Eclo 44,19-21; Mt 3,8; Jo 8,39). Ele recebeu de Deus a promessa de uma descendência numerosa e de uma terra na qual sua posteridade permaneceria para sempre. A leitura narra um diálogo entre Deus e Abraão, ainda chamado de Abrão (o nome muda em Gn 17,4). Deus o convida a contemplar a quantidade das estrelas no céu. Assim seria o número de seus descendentes (v. 5). Abrão acredita e é considerado justo (v. 6). Uma descendência numerosa era a maneira de manter viva a memória de alguém. Portanto, Deus garante a Abrão ser recordado como exemplo de fidelidade. Em seguida, Deus revela sua identidade, recordando seus feitos passados: fez Abrão sair de uma terra para conduzi-lo aonde ele se fixará (v. 7). O patriarca interroga sobre como saberia que iria possuir aquela terra (v. 8). O Senhor responde, pedindo a oferta de um sacrifício, que prontamente é preparado (v. 9-12). A relação entre Deus e Abrão é de intimidade, confiança e livre obediência. A passagem se conclui com a consumação do sacrifício de Abrão e com a aliança entre ele e Deus (v. 17-18). Um compromisso estava selado entre as partes. Abrão confia na promessa e oferece um sacrifício. Deus se agrada de Abrão e sela uma aliança com ele. A relação entre o ser humano e Deus se constitui com base em uma disposição confiante do ser humano em aventurar-se nos planos divinos. A disposição de fé do patriarca nos inspira a confiarmos nas promessas de Deus e nos dispormos a novos horizontes. Deus é sempre fiel à sua aliança! 2. II leitura (Fl 3,17–4,1) O capítulo 3 da carta aos Filipenses se caracteriza por uma crítica violenta contra os falsos mestres que pretendiam reintroduzir elementos do judaísmo na comunidade. Paulo considera essa postura um atraso e propõe a dinâmica do Evangelho, cuja força ele próprio experimentou na vida (Fl 3,8-10). O trecho selecionado para a segunda leitura conclui essa longa recomendação do apóstolo. Ele evoca seu exemplo de compromisso de fé e seu modo de viver (3,17). Em contrapartida, outros se comportam como “inimigos da cruz de Cristo”, e a conduta deles reflete sua maneira de crer (3,18-19). Paulo quer esclarecer os filipenses sobre a beleza de acreditar em Jesus Cristo e mostrar que as antigas instituições judaicas já não fazem sentido. Então, ele apresenta a nova realidade à qual se destinam os que creem em Cristo. Há uma cidade celeste de onde se espera a vinda do Senhor, que transfigurará esse corpo humilhado e o transformará em um corpo glorificado, a exemplo de Jesus (3,20-21). Paulo comunica o efeito da ressurreição de Cristo nas pessoas, pois acreditamos que, conforme aconteceu com Jesus, também acontecerá conosco. Nossa humanidade será glorificada pela ação do Espírito de Deus. Enfim, a passagem termina com um convite, animado à perseverança na fé (4,1). Os destinatários daquele tempo se alentavam com a promessa de transfiguração anunciada por Paulo. Para nosso tempo presente, a leitura indica essa realidade espiritual e a promessa do agir do Espírito de Deus em nós até a plenitude, quando seremos semelhantes a Cristo.

3. Evangelho (Lc 9,28b-36)

Um pouco antes de tomar resolutamente o caminho para Jerusalém (Lc 9,51), Jesus reúne seus discípulos e os prepara para os acontecimentos finais: paixão, morte e ressurreição. A cena se encontra nos outros dois sinóticos (Mc 9,2-10; Mt 17,1-9) e ganha detalhes próprios de Lucas. Enquanto Marcos apresenta o episódio como uma manifestação do Messias oculto e Mateus sugere Jesus como novo Moisés, Lucas narra a transfiguração como uma experiência pessoal de oração de Jesus, na qual ele entende seu “êxodo” e a consumação da sua vida (v. 31). Anteriormente, Jesus ensinara a respeito das condições para segui-lo (Lc 9,22-27), e os discípulos parecem precisar de uma confirmação divina. Oito dias depois (9,28a), eles sobem com Jesus para o monte para orar (Lc 9,28; 3,21). Lá, Jesus é transfigurado e suas vestes ganham aspectos transcendentes (v. 29). Moisés e Elias, precursores escatológicos (Ml 3,22-24), aparecem representando a Lei e os Profetas (Lc 24,26-27). As Escrituras atestam o caminho de cruz que Jesus está assumindo. O assunto da conversa entre os três é o êxodo que se cumprirá em Jerusalém. Como o povo atravessou o deserto para a Terra Prometida, Jesus atravessa a região da Galileia até Jerusalém para sua glorificação (Lc 5,26; 7,16; 24,26). Jesus repete a história do povo de Israel. Pedro, embora contemple a glória de Jesus, não entende o diálogo e pensa na festa dos Tabernáculos, propondo três tendas (v. 33). Contudo, uma nuvem, símbolo da presença de Deus entre o povo (Ex 24,15-18), aproxima-se deles e declara, da mesma forma que no batismo, que Jesus é o Filho amado de Deus (v. 35; 3,21-22). Por isso, os discípulos devem ouvir atentamente e compreender a nova fase, que compreende o paradoxo da cruz (9,51–19,27). A cena, com tantas características fabulosas, conclui-se com o silêncio (v. 36). A experiência no monte não constitui uma fruição entusiástica, mas preparação para a dura realidade de incompreensões, sofrimentos e morte. A ressurreição será a resposta de Deus à entrega confiante do Filho amado. Como os discípulos e o povo de Israel na travessia do deserto, entramos nesse itinerário de glorificação. Entretanto, a glória de um seguidor de Jesus é sua cruz. Então, nossa Quaresma vai ganhando sentido maior a cada domingo. Desta vez, a partir do êxodo de Jesus até Jerusalém, o qual clareia nosso êxodo até a eternidade.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Em todo 2º domingo da Quaresma, a liturgia nos convida para subir o monte da transfiguração, a fim de conhecer o mistério mais profundo de Jesus, reconhecer sua identidade de Filho e nos comprometermos a ouvi-lo. Este domingo é também ocasião privilegiada para “olhar-nos” por dentro e descobrir a verdadeira identidade de filhos e filhas no Filho. Todas as grandes personagens bíblicas (Moisés, Elias...) fizeram sua experiência de monte, pois este é lugar de intimidade com Deus, de escuta e discernimento. De igual modo, Jesus, o homem dos vilarejos da Galileia e das multidões, sabia reservar momentos de solidão e encontro com Deus no monte. Então, a partir daí, a experiência se espalhava e atingia a todos. Ele buscava sentido e força para sua missão a fim de a todos alcançar. Assim, podemos compreender esse monte também como lugar de encontro com o melhor de nós mesmos. O silêncio da presença de Deus propicia percebermos quem somos nós. Portanto, a transfiguração é também descoberta do “eu profundo”, da própria realidade pessoal e do mistério divino que habita em nós. Nessa manifestação de Deus descobrimos a nós mesmos. Logo, podemos nos animar com um antigo sermão usado na Liturgia das Horas e lido na festa da Transfiguração: “Para lá corramos cheios de ardor e de alegria; entremos na nuvem misteriosa, semelhantes a Moisés e Elias, ou Tiago e João. Sê tu também, como Pedro, arrebatado pela divina visão e aparição, transfigurado por esta linda transfiguração, erguido do mundo, separado da terra. Deixa a carne, abandona a criatura e converte-te para o Criador, a quem Pedro, fora de si, diz: ‘Senhor, é bom para nós estarmos aqui’ (Lc 6,33)” (Sermão de Atanásio Sinaíta, séc. VII).

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]