Roteiros homiléticos

2º domingo da Quaresma – 8 de março

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

Invertendo a lógica do triunfo

I. Introdução geral

Deus fala e chama a cada um dos homens e mulheres para viver novo projeto de vida. Trata-se, sem dúvida, de verdadeiro desafio, que exige que a pessoa se desacomode, saia de sua zona de conforto e caminhe sempre com Deus e em direção ao outro. Não vivemos isolados em ilhas. Somos seres relacionais e, do ponto de vista cristão, vivemos em comunidades. Tudo leva a considerar o outro como alguém que possibilita o diálogo: falamos e ouvimos a fim de construir verdadeira humanidade.

II. Comentários aos textos bíblicos

1. I leitura: Gn 12,1-4a

Deus nos fala! Não há dúvida quanto a isso. Contudo, entre seus muitos conteúdos, certamente estão aqueles que dizem respeito à responsabilidade, desafios e missões que nos esperam. Muitos de nós desenvolvemos uma espécie de “ouvido seletivo”, ou seja, escutamos tão somente o que desejamos ouvir. Prestamos atenção apenas nos anúncios de Deus que tenham relação com o fato de recebermos alguma coisa.

No entanto, temos um Deus que nos desafia a dar passos de fé e pela fé. Abraão escuta exatamente isto: “Saia de sua terra” – de seus espaços de conveniência, de sua zona de conforto, e vá para uma terra que ainda irei lhe mostrar. O desafio é para que ele dê passos além daqueles que já havia dado. Abraão deveria sair do lugar-comum e romper com aquilo que possuía e com as fronteiras que o impediam de caminhar.

O desafio de Deus significa desacomodação. Implica ruptura e separação. Mostra-nos que não devemos viver e permanecer como que limitados àquilo que somos e temos. Sempre há a necessidade imperiosa de dar um passo a mais, de caminhar um pouco mais. Nisto, porém, reside um dos nossos maiores problemas: passamos muito tempo acomodados. Muitas vezes pensamos que a melhor posição que poderíamos ter seria a acomodação. Por causa disso, não aprovamos a atitude de Deus quando procura romper com nossas zonas de conforto. Até Deus pode passar dos limites, pensamos!

 O Deus de Abraão, porém, impede que fiquemos bem acomodados e instalados. Ele provoca Abraão para que se desacomode e caminhe dentro dos passos propostos pelo próprio Deus. A experiência de Abraão nos coloca diante de um Deus de ação. Um Deus que nos leva a permanecer em pé e a dar passos firmes em direção a um amanhã que ele mesmo garante.

Saia de sua terra e vá para onde lhe mostrarei. Não precisamos ter medo, pois o mapa está nas mãos de Deus. No chamado divino existe a promessa de que não caminharemos sozinhos. Tornamo-nos peregrinos pelas estradas deste mundo. Devemos compreender, todavia, que Deus também se torna peregrino conosco. Ele nos acompanha. Não poderíamos ter companhia melhor. Quando Deus pede que Abraão saia, ele se dispõe a fazer o mesmo caminho.

Abraão parte com novo programa de vida! A obscuridade do destino contrasta com a clareza do que ele deve abandonar. A terra para a qual deve seguir não é sequer nomeada. Abraão, no entanto, está firme. Sabe ouvir e sabe responder. Sabe que cada chamado para uma nova missão implica deixar para trás o que é conhecido e dá segurança a fim de lançar-se no desconhecido. Recusar os riscos do desafio de Deus significaria, para Abraão, o mesmo que permanecer no mesmo lugar e, o que é pior, do mesmo tamanho. Assumi-los, por sua vez, abriria a possibilidade de novos e inesperados horizontes. Abraão percebe que existem certas coisas que somente Deus pode fazer. É pura graça dele derramada sobre seus filhos e filhas. A ação é exclusiva – “eu farei”, “eu abençoarei”, “eu tornarei” – do Deus que caminha junto a nós. Não podemos nos esquecer desta verdade fundamental: Deus é a fonte de todo bem! Por que, então, por vezes, teimamos em procurar água pura e cristalina em outras e estranhas fontes?

No relato da torre de Babel, por exemplo, constatamos justamente o contrário: são as pessoas que desejam, por todos os modos, construir uma torre altíssima para perpetuar o próprio nome. É uma das representações dos projetos humanos feitos à revelia de Deus. Todavia, esse projeto da humanidade em Babel resultou em confusão, em dispersão e em antivida (cf. Gn 11,9). Em Abraão, diferentemente, encontramos um projeto de vida. Deus promete que ele se tornará uma fonte de bênção para a humanidade. Abraão não constrói a partir de si mesmo a bênção; ele é abençoado. Babel dessa forma está, em Abraão, verdadeiramente neutralizada! É Deus que faz, que fala, que abençoa, que nos constrói como seres humanos. O que as pessoas querem realizar por si mesmas e para si mesmas, Deus fará para Abraão. A ação é sempre dele. Quando nos propomos caminhar, ele não nos deixa sozinhos e nos abençoa tremendamente.

Abraão nos ensina que o projeto de Deus é coletivo. Um projeto que tem relação com a reunião e a unidade das pessoas. Não é um projeto para aconchegar nosso individualismo, para que ele viva sossegado em seu canto. A ação de Deus sobre nós é para que cada um de nós se torne também uma bênção para todos os outros. Trata-se de um sim fundamental à solidariedade. Cada um de nós precisa se ver apenas como instrumento da bênção de Deus. Ele nos abençoa não para que sejamos proprietários definitivos da bênção dele, mas para que tenhamos condições de abençoar as pessoas com as quais convivemos.

Em Deus não há o projeto do egoísmo, mas o primado da partilha. Aquilo que ele nos concede não é apenas para nós. A ação abençoadora de Deus sobre nós acontece para que nos tornemos fonte inesgotável de bênçãos para todos os outros. Às vezes, porém, invertemos a maneira de compreendermos a experiência de Abraão: focamos apenas nas bênçãos que recebeu e constatamos que ele era um privilegiado. Esquecemo-nos de que seu privilégio era, de fato, alcançar outras pessoas a partir do que havia recebido. A grandeza de Abraão não consistia em sua força militar, política ou ainda econômica. Sua grandeza, na verdade, manifestava-se no Deus grande que caminhava ao seu lado.

2. II leitura: 2Tm 1,8b-10

Há em Deus um plano cheio de graça. Por isso, a graça, compreendida como favor imerecido, é concedida a todas as pessoas. Não há necessidade, diz a leitura, de obras próprias ou, ainda, de um projeto pessoal bem construído. A percepção de que Jesus deve ser considerado tudo em todos é por demais importante. Nele, por ele e para ele são todas as coisas. Nesse sentido, Jesus é suficiente para a salvação do ser humano. O ser humano não é “autossalvador”, ou seja, não consegue salvar a si mesmo. A ação de salvação, sempre e necessariamente, pressupõe a ação de Deus.

3. Evangelho: Mt 17,1-9

Na transfiguração relatada no Evangelho de Mateus, a passagem-chave é a exortação dirigida aos três discípulos: Pedro, Tiago e João. Uma expressão/exortação que do passado reverbera com força, atravessando tempo e espaço, e nos alcançando com igual intensidade: “Escutai-o”. Na Quaresma se faz necessário abrir os ouvidos para escutar com verdadeira atenção. Não se fazem discípulos que fecham os ouvidos às palavras de seu mestre. Todo discípulo é primeiramente, de fato e de verdade, um ouvinte. Todavia, é necessário também ouvir os outros. Não vivemos isolados em ilhas. Somos seres relacionais e, do ponto de vista cristão, vivemos em comunidades. Tudo leva a considerar o outro como alguém que possibilita o diálogo: falamos e ouvimos a fim de construir verdadeira humanidade. Temos grande facilidade de ouvir os meios de comunicação, discursos os mais diversos, até mesmo alguma música. Não temos, porém, a mesma facilidade para escutar alguém. Uma multidão de sons pode povoar nosso interior, desde que não sobre espaço aos sons de irmãos e de irmãs. Transformamo-nos em consumidores de ruídos e, negando os sons da fraternidade, esvaziamo-nos de nós mesmos. Escutar Jesus dentro de nossos próprios contextos é o maior dos nossos desafios. Acolher a palavra de Jesus requer tempo e qualidade de tempo. Caso contrário, corremos o risco de confundir os ruídos do cotidiano com a voz do nosso Mestre.

Jesus sobe à montanha para viver uma experiência inusitada. Lá, diante dos olhos estarrecidos dos três discípulos, transfigura-se. Suas vestes são mudadas e passam a se parecer com aquelas dos mártires (cf. Ap 3,15-18). No entanto, para além da transfiguração, aparecem também Elias e Moisés. A presença deles vem confirmar o caminho de Jesus na direção do conflito final. Tal presença aponta que a missão do Mestre não é marcada pela neutralidade. Contrariamente a essa percepção, sua vida transcorre num caminho marcado pelo conflito e, no conflito, assume uma posição de solidariedade às vítimas que o conduzirá inevitavelmente à morte. Todavia, a missão de Jesus não era a mesma de Pedro. Quantas e quantas vezes nossas visões e interesses se distanciam do projeto de Jesus? Pedro, diante da experiência fantástica, pensa que o alto da montanha é o melhor lugar para permanecer. Sente o desejo de fazer tendas,  estabelecer-se ali mesmo e vivenciar a vida cristã como se fosse um eterno retiro, longe do barulho das pessoas, das cidades e vilas. Um ambiente ideal para viver de contemplação. Ele, porém, ouvia tão somente a própria voz. Tinha um projeto pessoal que se distanciava muitissimamente do projeto de Jesus. Quando ouvimos a própria voz, deixamos de ouvir a voz de Deus. Nesse sentido, os ruídos que nos atrapalham não são somente externos, mas também internos.

Descer a montanha será, para os discípulos, muito mais difícil do que subir. Eles se acostumariam facilmente com a zona de conforto proporcionada pela experiência religiosa e da experiência ficariam reféns. Transformariam a vida de Cristo numa experiência intimista e desconectada da realidade conflituosa. Entretanto, fazia-se necessário descer a montanha. É justamente em meio ao povo que se vive e se faz missão. Jesus bem sabia que a boa notícia não poderia ficar escondida. Descer a montanha traz o sentido de fazer o caminho para dentro da realidade. Toda a mensagem de Jesus nasce da realidade política, social, econômica e religiosa. Ele jamais nega a realidade, pois vive para transformá-la. Nesse caso, o cotidiano é o espaço privilegiado da sua atuação. Ele podia, até mesmo, por breves momentos, subir montanhas. Suas raízes e missão se encontravam, contudo, no meio do povo. Pedro, como porta-voz de seus companheiros, é apresentado como carente de inteligência. Ele traz no coração o desejo de reter permanentemente a revelação da glória celeste. Pode-se dizer que, na perspectiva humana, esse é um desejo compreensível, mas se contrapõe ao chamado dos discípulos ao seguimento de Jesus pelo caminho da cruz. Eles experimentam uma antecipação da bem-aventurança celestial e por isso dizem: “É bom estarmos aqui” (v. 4). Pedro pensava segundo a perspectiva do triunfo. Imaginava um Cristo vitorioso para vitoriosos. A lógica da vitória impedia o apóstolo de se ver adequadamente e, por isso, sua proposta parecia querer desviar Jesus de seu trajeto de solidariedade com as vítimas da história. Jesus, por sua vez, constrói seu itinerário pessoal e teológico à luz da solidariedade com os pequeninos, mesmo que, para isso, a consequência seja se tornar vítima do Império Romano, como tantos outros do seu povo já haviam sido.

III. Pistas para reflexão

1) O discípulo e a discípula de Jesus vivem o evangelho inserido na realidade do dia a dia. Jamais é possível pensar o estilo de vida de Jesus como um processo que conduz à alienação. Deve-se viver Jesus na realidade do dia a dia com a missão de transformá-la.

2) Em Deus não há o projeto do egoísmo, mas o primado da partilha. Aquilo que ele nos concede não é apenas para nós. A ação abençoadora de Deus acontece para que nos tornemos fonte inesgotável de bênçãos para todos os outros.

Luiz Alexandre Solano Rossi

é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e pós-doutor em História Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó; Como ler o livro de Jeremias; Como ler o livro de Abdias; Como ler o livro de Joel; Como ler o livro de Zacarias; Como ler o livro das Lamentações; A arte de viver e ser feliz; Deus se revela em gestos de solidariedade; A origem do sofrimento do pobre.