Roteiros homiléticos

Publicado em janeiro-fevereiro de 2021 - ano 62 - número 337 - pág.: 45-47

2º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 17 de janeiro

Por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj

Tu me chamaste, aqui estou

I. INTRODUÇÃO GERAL

A liturgia deste domingo nos mostra alguns exemplos de como as pessoas discernem o chamado de Deus no cotidiano da vida. Um discernimento autêntico não apenas muda o rumo da vida, mas também capacita a pessoa para levar uma vida centrada em Cristo.

A primeira leitura descreve como aconteceu o chamado de Samuel, destacando a iniciativa divina e a resposta humana. Na segunda leitura, Paulo lamenta que os cristãos de Corinto tenham falhado em discernir entre o que é santo e o que é pecaminoso. O Evangelho apresenta João Batista proclamando Jesus como o “Cordeiro de Deus” a dois de seus discípulos. Como resultado dessa proclamação, estes decidem deixar João Batista e iniciar uma jornada de discipulado para discernirem seu chamado ao seguimento de Jesus.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Jo 1,35-42)

O testemunho de João Batista foi crucial para o início do ministério de Jesus. João já havia testemunhado Jesus aos sacerdotes e levitas enviados de Jerusalém (Jo 1,19-34). Agora, dá testemunho a seus próprios discípulos, apontando para Jesus: “Eis o Cordeiro de Deus!” Como resultado disso, dois discípulos pararam de seguir João e começaram a seguir Jesus. Nesse ponto, tendo cumprido sua tarefa de testemunhar, o Batista desaparece de cena, diminuindo a si mesmo para que a missão de Jesus pudesse se desenvolver: “Que ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30).

A expressão “Cordeiro de Deus” trazia à mente dos primeiros cristãos alguns aspectos que precisam ser destacados:

• o cordeiro fornecido por Deus a Abraão para o sacrifício no lugar de Isaac (Gn 22,8-13);

• o cordeiro pascal, cujo sangue salvara os hebreus da morte durante sua libertação da escravidão no Egito (Ex 12);

• o cordeiro mencionado nos livros proféticos, que, pelo seu sacrifício, redimiria o povo. Este, sendo oprimido, não abria a boca, à semelhança do cordeiro levado ao matadouro ou o que ficava mudo diante dos tosquiadores (Is 53,7; Jr 11,19);

• os cordeiros sacrificados diariamente no templo para redimir o povo de seus pecados.

Tais passagens certamente se tornaram importantes para que a Igreja compreendesse a identidade de Jesus e sua missão.

Também era significativa a afirmação de que o Espírito permanecia em Jesus (v. 32). O verbo “permanecer” descreve um relacionamento profundo e duradouro, em vez de trivial ou passageiro. Era esse tipo de relacionamento que Jesus tinha com o Espírito, e da mesma forma a comunidade cristã deve estar vinculada ao Espírito (20,22).

Os primeiros discípulos seguiram Jesus como resultado do testemunho de João, e não em resposta a um chamado direto de Jesus. Quando este viu que o estavam seguindo, perguntou-lhes: “Que estais procurando?” Em resposta, chamaram-no de rabino (mestre) e quiseram saber onde permanecia, manifestando o desejo de ir a esse local para receber instruções, pois os rabinos tinham um local adequado para ensinar os discípulos. E, então, temos as palavras: “Vinde ver!” Agora houve um chamado direto. E eles foram, viram e permaneceram com ele – quer dizer, fizeram experiência com o modo de viver de Jesus. Também hoje devemos ir após Jesus e experimentar seu estilo de vida.

Por fim, é importante destacar algo mais nesse trecho do Evangelho: o fato de que André levou seu irmão, Simão, a Jesus. Em outra passagem, Filipe vai fazer o mesmo com Natanael (v. 43-46). João Batista encaminhou a Jesus seus discípulos e estes levaram outros, formando uma cadeia de gerações de seguidores. Isso significa que a missão de cada um é levar pessoas a seguir Jesus. Somos devedores de alguém que nos evangelizou: nossa família, nossa paróquia, uma pessoa em particular. Precisamos seguir adiante, formando novos elos para a corrente de discípulos de Jesus.

2. I leitura (1Sm 3,3b-10.19)

O povo de Israel estava vivendo um novo período histórico. O êxodo havia passado, o povo estava estabelecido na terra da promessa. O tempo de Moisés, Aarão e Josué se fora. O período dos juízes já estava bem adiantado, ia começar a transição para o tempo da monarquia, Samuel seria o último juiz.

Samuel havia nascido como fruto da intervenção divina. Ana, sua mãe, não podia ter filhos, e Deus havia respondido suas orações com o nascimento de Samuel. Então seus pais o entregaram para o serviço de Deus no santuário de Silo, e ele, quando jovem, se tornou um aprendiz do sacerdote Eli. Foi nesse santuário que Deus chamou Samuel para ser profeta.

O chamado aconteceu certa noite, enquanto o jovem estava dormindo. Samuel presumiu que Eli o tivesse chamado e foi até ele. Isso se deu por três vezes, até que o velho sacerdote percebesse o que estava acontecendo: era Deus que falava com o menino. Eli o instruiu a dar uma resposta de prontidão, de escuta e docilidade.

Samuel ouviu o chamado de Deus, mas se enganou por três vezes: “Tu me chamaste, aqui estou”, dizia prontamente ao sacerdote Eli. O jovem se enganou quanto à identidade de quem o chamava. Na segunda e na terceira vez que correu até Eli, Samuel devia estar confuso, pois o sacerdote sempre respondia: “Eu não te chamei, volta a dormir!”

O nome Samuel significa literalmente “Deus ouviu”. Ouvir é fundamental nesse livro bíblico, pois primeiramente Deus ouve o clamor de uma mulher estéril e, posteriormente, ouve o pedido do povo por um rei.

O texto destaca que o chamado de Deus é direto e pessoal. No entanto, Samuel precisou de ajuda para discerni-lo. O velho e quase cego Eli, sacerdote de Silo, com sua sabedoria e ternura paternal, capacitou o jovem para ouvir a voz do Senhor e responder ao seu chamado. Embora Eli devotasse sua vida ao serviço sacerdotal, não foram seus filhos que receberam o chamado, e sim Samuel, que, apesar de estar vivendo em um santuário, ainda não havia feito experiência com Deus. O texto nos esclarece que Deus chama quem ele quer, quando quer e onde quer.

A tripla ida de Samuel a Eli é característica do processo de discernimento. Quando reconheceu a voz do Senhor com sua humilde oração e um coração dócil, o jovem recebeu a enorme responsabilidade do chamado profético. Como resultado do seu chamado, a Palavra de Deus foi ouvida mais uma vez em Israel. Depois disso, Samuel capacitou o povo para discernir a vontade de Deus em relação às obrigações da Aliança, bem como em relação às questões religiosas e políticas que afetavam o destino da nação como um todo.

Da mesma forma que Eli ajudou Samuel a discernir a vontade de Deus a respeito de sua missão, Samuel ajudou o povo a discernir a vontade de Deus para a nação. Isso acontece ainda hoje: somos elos de uma corrente de ajuda mútua para que a vontade divina continue a agir e para que as pessoas continuem fiéis.

3. II leitura (1Cor 6,13c-15a.17-20)

A antiga Corinto era um centro sofisticado de debate religioso e filosófico, uma cidade portuária cosmopolita e politeísta, conhecida por sua riqueza e luxo, e famosa por sua imoralidade. Isso significa que as necessidades da comunidade de Corinto eram muitas e complexas. Era um lugar difícil para o anúncio do Evangelho e, mesmo assim, Paulo o fez. Os recém-convertidos lutaram para manter sua fé viva naquele ambiente tão desafiador e enfrentaram muitas questões levantadas por sua nova fé. Nem todos estavam de acordo a respeito da necessidade de viver nova moralidade, o que provocou muita polêmica e causou grandes preocupações ao apóstolo.

Para transformar o estilo de vida dos cristãos de Corinto, com o objetivo de viverem de acordo com a vida de Jesus, Paulo lhes escreveu a respeito de nova moralidade e das razões para observá-la. Estes são seus principais argumentos:

• o corpo é para o Senhor, e não para a imoralidade;

• nossos corpos são membros de Cristo;

• o corpo é templo do Espírito Santo.

Conclui-se daí que a conduta moral dos cidadãos de Corinto era imprópria para quem havia sido batizado em Cristo. Paulo estava defendendo a santidade da pessoa humana (corpo e espírito). Para o apóstolo, ser seguidor de Cristo não envolve concessões quando se trata de integridade moral. Como resultado, não há lugar para nenhum estilo de vida que seja incongruente com a virtude cristã da santidade.

Paulo indica que um discernimento autêntico por parte dos cristãos irá facilitar o abandono dos maus caminhos e abraçar uma vida centrada em Cristo.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Deus chama pessoas para cumprir uma missão em determinado tempo e lugar. A resposta a esse chamado, no entanto, requer discernimento cuidadoso, implicado no chamado. Vemos isso em Samuel, André e Pedro, os quais, depois de profunda experiência de discernimento, ofereceram a vida, integral e gratuitamente, ao serviço de Deus. Esse discernimento é o que Paulo espera dos coríntios, para que possam viver sua vida cristã em santidade. Todos os cristãos são chamados a um discernimento cuidadoso, para que, de modo semelhante ao salmista, possam dizer: “Eis que venho, Senhor, com prazer faço a vossa vontade”.

O mundo barulhento procura afogar a voz gentil e poderosa de Deus. Ao praticar o discernimento, vamos fundo naquele espaço sagrado dentro de nós e descobrimos a voz eloquente de Deus nos chamando a tomar ações e direções específicas na vida. A voz que chamou Samuel, a voz que disse aos dois discípulos de João Batista: “Vinde e vede”, é a mesma voz que está chamando  cada um de nós. Que possamos ouvi-la e, como Samuel, responder: “Fala, Senhor, que teu servo escuta”.

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj

graduada em Filosofia e em Teologia, cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje (MG). Atualmente, leciona na pós-graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco – Unicap. E-mail: [email protected]