Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2021 - ano 62 - número 338 - pág.: 40-44

3º Domingo da Quaresma – 7 de março

Por Izabel Patuzzo

Jesus, o novo templo

I. INTRODUÇÃO GERAL O texto do Evangelho deste domingo nos aproxima do contexto da celebração da Páscoa. O evangelista João nos relata a primeira Páscoa em que Jesus sobe para o templo de Jerusalém em sua missão. As leituras apresentam forte convite a viver a fé em Deus na fidelidade radical. A caminhada quaresmal nos recorda a profunda experiência exodal de Israel, que se encontra com Deus no deserto e recebe os Mandamentos. A Quaresma é tempo propício para reconhecermos que precisamos ser conduzidos por Deus; é tempo de renovar o coração e nos convertermos. Os Dez Mandamentos nos direcionam para uma vida nova, como Israel rumo à terra que Deus lhe reservou. O Decálogo é o grande dom de Deus ao seu povo liberto, e sua observância é sinal do compromisso com a Aliança que Deus estabelece com Israel. Essa orientação divina é oferecida ao povo escolhido para obter a felicidade verdadeira, praticar a misericórdia e experimentar as bênçãos do Senhor. A primeira leitura e o Evangelho nos apontam caminhos para construir nossa relação com Deus. Dessa relação depende como nos relacionamos com as pessoas e com os demais aspectos de nossa vida. Os Mandamentos e o templo são dons de Deus inegociáveis. Não podem se tornar mercadoria. São fonte de vida, e não de lucro. O povo de Deus sempre manteve viva a memória do seu passado, sua tradição religiosa e cultural. O Evangelho relata o incidente da indignação de Jesus diante dos líderes religiosos do templo, que transformaram o lugar sagrado num mercado religioso-econômico. Esse era um sinal evidente de que os Mandamentos não estavam sendo observados. O Decálogo estabelece que tudo aquilo que se refere a Deus deve estar em primeiro lugar. Para Israel, a montanha sagrada e o templo eram lugares de encontro de Deus com seu povo. Esses lugares não poderiam ter outra função que não fossem o culto e a oração. II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Ex 20,1-17) A primeira leitura nos recorda que, na caminhada do êxodo pelo deserto, o Senhor Deus estabelece os preceitos que irão nortear a vida nova de seu povo liberto. Os Dez Mandamentos e sua observância são condição essencial da Aliança selada entre o Senhor e seu povo escolhido. Israel recebe a Lei como o grande dom de Deus no deserto e reconhece que depende e precisa da orientação divina. Os preceitos recebidos são apresentados a toda a comunidade, para que estabeleça um vínculo com o Senhor, como seu único Deus, e para que não volte à condição de escravidão. Israel recebe todas as instruções para deixar para trás as relações de opressão da casa do faraó e se lançar na missão de construir novas, fundamentadas na prática da justiça. Dessa forma, os três primeiros mandamentos estabelecem a relação de senhorio de Deus com seu povo, e os demais se vinculam à relação com o próximo. Na narrativa do Sinai, a observância desses preceitos é fundamental para Israel, porque a Aliança pressupõe a prática de todos os Mandamentos. A Lei entregue a Israel é também diretiva para a construção de relações humanas e justas dentro da comunidade. Os Mandamentos exigem que a legitimidade dos direitos individuais e sociais básicos dos membros da comunidade possa ser respeitada. Os limites instituídos são essenciais para que cada pessoa se torne um membro responsável pela proteção de todos. O conjunto de normas e restrições visa não somente ao cuidado da dignidade das pessoas, mas também de seus pertences. Os valores expressos no Decálogo garantem a construção de relações sociais sólidas para verdadeira prática da justiça social. E posteriormente, quando Israel vier a se estabelecer na Terra Prometida, o Decálogo será o fundamento que norteará todos os princípios éticos e judiciários (Ex 23,1-8) – por exemplo, no cultivo da solidariedade com os mais necessitados, na hospitalidade com o estrangeiro e com outras categorias marginalizadas. Em momentos de dificuldade, o povo de Deus sempre se inspirava na Torá, que tinha como fundamento o Decálogo. Para Israel, a Lei de Deus sempre foi sinal e expressão da vontade divina, a qual deveria ser cumprida na sua totalidade. Era o caminho de justiça, de santidade, de vida, aquela que, por excelência, preexistia perante Deus. Segundo a fé do povo escolhido, a Torá – entregue ao povo por Deus por intermédio de Moisés – era o centro da educação dos descendentes em todos os âmbitos da vida. A educação judaica diferia da educação das culturas circunvizinhas, porque prezava pela sabedoria divina e pela virtude acima de qualquer outro conhecimento. Assim, aprender o caminho de Deus descrito na Torá e observar todos os seus mandamentos era o que havia de mais importante. A Quaresma é tempo em que buscamos nos reconciliar com Deus e com os irmãos, e os mandamentos do Decálogo são colocados diante de nós como princípios orientadores que contêm a sabedoria divina. Escritos com clareza, com uma linguagem que todos podem compreender, eles devem ser apreciados e observados como regra de ouro. Grande parte das Escrituras deriva da prática concreta dos Mandamentos nas diversas circunstâncias da vida. Israel reinterpretou os preceitos divinos em todos os momentos de sua história. E, muitas vezes, percebeu que havia sido infiel, que havia transgredido a Lei divina. Como Israel, o tempo quaresmal requer de nós um discernimento: deixamo-nos de fato guiar, conduzir por Deus? 2. II leitura (1Cor 1,22-25) A segunda leitura deste domingo é retirada da carta que o apóstolo Paulo escreve à Igreja de Corinto. Esse texto apresenta uma reflexão fundamental sobre a essência da fé cristã. Ele prega o Evangelho da cruz, recordando que Jesus Cristo é a plenitude da sabedoria divina. A cidade de Corinto, assim como as demais cidades gregas, prezava pelo saber lógico da filosofia. Infelizmente, porém, os gregos se deixavam facilmente enganar pela sabedoria deste mundo, sendo incapazes de reconhecer o amor de Deus revelado na cruz. Os judeus, por sua vez, esperavam pelos sinais da chegada do Messias enviado, Filho de Deus, mas também não conseguiram reconhecer os sinais de Deus nas obras realizadas por Jesus. Paulo ensina aos cristãos do mundo grego e judaico que suas expectativas acerca do poder da sabedoria e dos sinais divinos são limitadas, pois Deus se manifesta na fraqueza e na loucura da cruz para redimir a humanidade. Apresentar o Cristo, morto na cruz, naquele contexto era desafiante, era como andar na contramão, uma vez que os gregos esperavam um Deus glorioso e os judeus esperavam um Messias poderoso. O apóstolo, que fez a experiência de se encontrar com o Ressuscitado e ser transformado por ele, com muita convicção afirma que o amor redentor de Deus manifestado na cruz é loucura aos olhos do mundo, mas não aos olhos de quem abraçou a fé em Jesus Cristo. Ao falar da morte de Jesus na cruz, Paulo chama a atenção para o fato de que as ideias preconcebidas que temos sobre os sinais de Deus em nossa vida às vezes precisam ser reexaminadas. O caminho do discipulado passa pelo serviço, e não pelo poder; pela sabedoria dos valores evangélicos, mais que pela ciência que não favorece a vida. A Quaresma é tempo favorável para a renovação e avaliação de nossa vida espiritual. 3. Evangelho (Jo 2,13-25) Jesus, como os judeus piedosos de seu tempo, tinha grande respeito pelo templo como lugar sagrado para prestar culto a Deus, orar, celebrar as festas litúrgicas importantes e receber as bênçãos divinas. Sua indignação, apresentada no Evangelho de hoje, não é consequência de uma explosão de raiva; é, antes de tudo, um zelo pelas tradições sagradas e pelo templo. Primeiramente, o evangelista nos dá uma informação importante: o evento se desenvolve próximo da “Páscoa dos judeus” (e não da Páscoa do Senhor), pois, no Evangelho de João, a Páscoa do Senhor se realiza no contexto da paixão, morte e ressurreição. A peregrinação dos fiéis piedosos a Jerusalém, por ocasião da Páscoa, fomentava intenso comércio no templo. Segundo a tradição judaica, o templo, a sinagoga e a Torá eram sagrados. Tornar o templo num lugar de comércio significava desprezo pela tradição. Significava retirar do povo a sacralidade do templo e a oportunidade de fazer suas orações e prestar culto, como expressão da fé judaica. É diante dessa realidade que Jesus é tomado de indignação para purificar o templo, já no início de sua missão. Os vendedores são apresentados como coletividade que comercializava toda sorte de animais; juntamente com eles, o texto também menciona os cambistas, que lucravam com essa festa litúrgica. Para Jesus, a atividade comercial era incompatível com a função religiosa do templo. O comércio é o lugar onde se busca o lucro econômico e a satisfação das necessidades materiais. O mercado deveria ter seu lugar próprio, pois tem finalidades específicas. A atitude de Jesus assemelha-se ao zelo profético pelas coisas de Deus. O chicote era símbolo proverbial para designar as dores que marcariam o tempo inaugural da era messiânica. Dessa forma, João, ao descrever a cena de Jesus usando o chicote para purificar o templo, quer expressar que tal atitude é necessária para lhe devolver a real função sagrada; indiretamente, o texto quer afirmar que Jesus é o Messias esperado. Ele cumpre a profecia de Zc 14,21, que diz: “Não haverá mais vendedor na casa de Javé dos exércitos, naquele dia”. Os gestos de Jesus estão em sintonia com a denúncia dos profetas acerca dos cultos e sacrifícios que não agradavam a Deus justamente porque compactuavam com a exploração dos pobres. Ao expulsar do templo aqueles que desvirtuavam a função sagrada do templo, bem como seus materiais de sacrifício, as ovelhas e bois, Jesus evidencia que aquele tipo de culto não agrada a Deus. Ele age como Filho zeloso que recupera o sentido original do culto, da oração e do lugar sagrado. Sua frase aos comerciantes do templo é, na verdade, uma exortação, forte apelo a não transformar a casa do Pai em casa de comércio. Além disso, dá-lhes a oportunidade de se converterem da prática da injustiça, que implicitamente estava relacionada com a exploração comercial e cambial daqueles que atuavam no templo. Em resposta aos judeus, que pedem um sinal como prova de que ele de fato é o Messias enviado, Jesus indiretamente indica que o sinal será sua morte de cruz. O texto faz alusão à sua ressurreição, que ocorrerá três dias depois de sua morte, quando Jesus se tornará o novo templo. Seus discípulos irão compreender esses fatos somente depois de sua ressurreição. Simbolicamente, as atitudes de Jesus nesse texto anunciam sua missão de libertar, de purificar seu povo. Assim, ele recupera o verdadeiro sentido do culto a Deus e das tradições sagradas. III. PISTAS PARA REFLEXÃO As leituras deste domingo nos convidam a seguir Jesus em sua missão de guardião da casa do Pai. Nós também devemos ser guardiões, não somente dos Mandamentos, dos lugares sagrados, mas das tradições e de todas as instituições que são sagradas porque estão a serviço da vida – como a família, a educação, a saúde e as instâncias jurídicas. A fé cristã supõe que o sagrado não pode ser comercializado. As Escrituras nos apontam muitas formas de comercializar os bens sagrados. Os Dez Mandamentos e o templo, apresentados hoje, recordam-nos que o sagrado é inegociável. O comércio no templo simboliza qualquer atitude de desrespeito por tudo que há de sagrado em nosso meio. Não podemos negociar os bens que estão em função da vida. Atualmente assistimos ao fenômeno de certos líderes religiosos que fazem da religião uma prática comercial. Jesus nos ensina, porém, que tal prática é inaceitável para o cristão. As instituições sagradas têm seu devido lugar e valor em nossa vida, e respeitá-las é condição essencial para o bem comum.

Izabel Patuzzo

pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. É assessora nacional da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]