Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2021 - ano 62 - número 338 - pág.: 44-47

4º Domingo da Quaresma – 14 de março

Por Izabel Patuzzo

Deus é misericordioso e cheio de compaixão

I. INTRODUÇÃO GERAL A liturgia do 4º domingo da Quaresma tem como tema central a misericórdia e a compaixão de Deus. Por isso, este é também chamado de o domingo da alegria. As leituras nos apresentam Deus como um Pai amoroso, cheio de ternura para com a criatura humana. Nossa salvação vem pela graça e pelo amor; Jesus, em suas ações e palavras, externou, de modo muito visível e concreto, esse amor misericordioso. A liturgia deste dia nos recorda que Deus se faz muito próximo de nós, dialoga conosco, como no encontro de Jesus com Nicodemos. No Evangelho, João faz um paralelo da serpente levantada por Moisés no deserto, para curar os sofrimentos de seu povo, com a paixão e morte de cruz de Jesus. O evangelista apresenta Jesus como o novo Moisés que se oferece a si mesmo na cruz como dom de amor e misericórdia. Por isso, foi exaltado e glorificado. Essa é a fé que a comunidade de João vive e anuncia. Em nossa observância quaresmal, somos chamados a entrar nesse profundo mistério da graça de Deus, de sua infinita misericórdia, a qual nos refaz e nos transforma em discípulos que acolhem a salvação oferecida por ele como dom gratuito. II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (2Cr 36,14-16.19-23) Na primeira leitura, o cronista faz uma releitura de parte da história de Israel, retratando as infidelidades e sofrimentos do tempo da monarquia e do exílio na Babilônia. O texto recorda as infidelidades dos reis e sacerdotes desse período histórico. As infidelidades dos líderes são as injustiças e a recusa a acolher os mensageiros e profetas enviados por Deus. De acordo com a leitura, os sofrimentos causados pela dominação violenta e opressora do poder estrangeiro foram consequências dos pecados, dos desvios das lideranças políticas e religiosas de Israel. No entanto, o Senhor Deus, com sua misericórdia, possibilita ao povo reconhecer seus erros e retomar a vida com base em seus preceitos. Para tanto, surpreendentemente, Deus faz de um rei estrangeiro, Ciro, um instrumento de libertação política, reconduzindo os exilados de volta à sua terra. A concepção de misericórdia e compaixão nesta leitura apresenta ainda traços da crença na retribuição, presente no Antigo Testamento, segundo a qual Deus era bom somente para aqueles que fossem fiéis a ele. A bênção ainda era vista como fruto de méritos e esforço humano. No Evangelho, Jesus, porém, vai revelar o pleno sentido do amor misericordioso de Deus, que nos ama infinitamente como filhos, e não somente quando nos esforçamos para sermos bons. Deus propõe o caminho do bem para evitar sofrimentos, mas não negocia nossa fidelidade; como Pai amoroso, espera nossa livre adesão à sua proposta de vida. Ele não contabiliza nossos débitos, para devolver suas bênçãos segundo nossos méritos, pois sua misericórdia não está condicionada ao nosso agir, mas exprime sua grande capacidade de amar e perdoar. Ainda que a visão do cronista seja limitada, ao ver Deus como aquele que ensina por meio de castigos – uma concepção restrita da misericórdia no seu tempo –, ele aponta para algo muito importante: quando o ser humano abandona os caminhos divinos, faz escolhas erradas que podem lhe trazer grandes sofrimentos. O egoísmo, a autossuficiência, as ambições desmedidas trazem como consequência um futuro marcado pela dor e pela morte. Assim, a releitura que o cronista faz da história do povo de Deus é um convite para escutar o Senhor e pautar nossas escolhas em suas diretivas. A misericórdia divina expressa nesta leitura é o fim do exílio, pois Deus escolheu seu povo para a liberdade, para a fidelidade e a obediência. Ele aponta para os pecados cometidos, mas sempre dá nova oportunidade aos seus filhos de se converterem, de retomar a caminhada de fé. De modo semelhante, a Quaresma é um tempo de esperança que nos é proposto para corrigirmos nossos erros e nos deixarmos transformar pelo amor de Deus. 2. II leitura (Ef 2,4-10) A segunda leitura, retirada da carta do apóstolo Paulo dirigida à comunidade de Éfeso, retoma o tema da misericórdia na perspectiva da fé cristã. A carta aos Efésios contém duas partes: a primeira, de forma dogmática, aponta para os elementos essenciais da fé cristã; a segunda apresenta, em forma de exortações, a unidade da Igreja. O texto deste domingo, assim como a primeira leitura, também faz uma leitura do passado, quando os discípulos ainda eram pecadores e não tinham abraçado a fé em Jesus Cristo. Contudo, o momento presente é moldado pela atividade criadora de Deus, que, em seu grande amor, nos concede uma vida nova, marcada pela graça. Esta leitura destaca a caminhada de conversão da vida pagã para a vida em Cristo. A vida antes da fé em Jesus é descrita como uma vida de morte, e a vida em Cristo, como ressurreição dos mortos. Os ensinamentos da leitura revelam que o amor salvador e libertador de Deus não é condicional, não é concedido apenas às pessoas que se convertem; antes, é incondicional, oferecido ao ser humano mesmo ainda quando este percorre os caminhos do pecado. Cristo, por sua morte de cruz e por sua ressurreição, conduziu-nos à vida plena. O texto recorda à comunidade que Deus escolhe amar, salvar e dar a vida por nós. O propósito divino é este: amar a criatura humana com amor imensurável. E os discípulos de Jesus são chamados a essa vida na graça; são convidados a viver uma vida digna, para corresponder a esse amor gratuito. Salvos pela graça divina, os cristãos são chamados a viver como filhos e filhas redimidos. A leitura nos convida a reconhecer que necessitamos da graça divina. Fomos salvos pela bondade divina e chamados a viver em conformidade com Cristo. O modelo de comunidade de discípulos apresentado na carta é o de uma Igreja que nasce da graça, da misericórdia, sendo, portanto, portadora desse amor universal. Segundo o apóstolo Paulo, os discípulos, como membros da comunidade de fé, tornam-se servidores, portadores da graça e da misericórdia. Unidos a Cristo, vivem o tempo presente como criaturas ressuscitadas; imersos na finitude deste mundo, passam pelas provações, mas com esperança, testemunhando e anunciando a vida nova oferecida por Deus. 3. Evangelho (Jo 3,14-21) O texto do Evangelho proposto para este domingo é a narrativa do encontro de Jesus com Nicodemos. Nessa narrativa, parece que João recorda sua própria caminhada de diálogo com seu Senhor e Mestre, sua profunda relação com Jesus ao longo de seu discipulado. Nicodemos é descrito como um fariseu notável; possivelmente, membro do grande conselho judaico, o sinédrio (Jo 7,50). O personagem aparece em outros textos do Evangelho segundo João para defender Jesus perante os chefes dos fariseus. Também está presente quando Jesus é descido da cruz e colocado no sepulcro. Nicodemos se dirige a Jesus como seu Mestre, porém à noite, sinal de sua resistência inicial a abraçar a fé cristã e deixar-se iluminar por Jesus. Não se trata de simples encontro, mas do diálogo de um discípulo que deseja construir uma relação cada vez mais profunda com Jesus. Em seu diálogo com Nicodemos, um judeu conhecedor das Escrituras, Jesus cita o texto de Nm 21,19, que se referia à praga das serpentes venenosas. Moisés, por indicação divina, fez uma serpente de bronze e a levantou numa haste. Quem fosse picado pelas serpentes seria curado ao olhar para a serpente suspensa na haste. Retomando esse texto antigo, Jesus estabelece um paralelo entre a vida transitiva deste mundo e a vida eterna que ele oferece ao seu interlocutor. A serpente do deserto libertou o povo da morte física; Jesus, levantado na cruz, oferece a vida eterna, a salvação definitiva. Como enviado do Pai, sua missão é salvar o mundo. Jesus destaca que Deus enviou seu Filho com o único propósito de salvar, e não condenar. A comunidade joanina reconhece nele o Messias enviado como dom, como prova do amor de Deus. E Nicodemos, que nos versículos anteriores tinha objetado nascer de novo, nascer do alto, aceitar Jesus como o Salvador, morto e ressuscitado na cruz, aos poucos entra no caminho do discipulado, construindo uma relação profunda com Jesus. João narra a experiência de fé da comunidade que representa. Jesus é a luz que brilha no meio das trevas. A luz tem sua raiz no modo de agir que se opõe às ações das trevas. As ações das trevas se realizam na escuridão, porque são más. A prática do bem não tem medo de se expor à luz do dia. Segundo a tradição dos mestres judaicos, a Lei era vida e luz. Então, Nicodemos pode entender o sentido profundo dos ensinamentos de Jesus nesse diálogo e passa a testemunhá-lo em plena luz do dia. O evangelista, ao narrar como Jesus acolhe Nicodemos, ressalta que a salvação é oferecida a todos; a escolha de aceitar essa oferta depende de cada um. Quando a pessoa aceita a proposta de Jesus, põe-se no caminho do discipulado, construindo uma relação cada vez mais próxima com o Mestre, como Nicodemos. Quem adere a ele tem a vida eterna. Nesse sentido, as leituras deste domingo nos ensinam que a salvação ou a condenação não são uma escolha divina, mas uma resposta pessoal a Deus. Na perspectiva do Evangelho segundo João, o amor de Deus é incondicional; acreditar em Jesus e tornar-se seu discípulo não consiste em uma adesão intelectual ou teórica a respeito das verdades da fé, mas em segui-lo como Mestre e Senhor, em estabelecer com ele uma relação tão profunda, a ponto de agir como ele. O discípulo é chamado a viver nessa intimidade com Jesus, a qual o leva a assemelhar-se a ele. III. PISTAS PARA REFLEXÃO A misericórdia e a compaixão divina reveladas em Jesus Cristo nos convocam para sermos acolhedores. O amor de Deus é incondicional, universal; é perdão e compaixão. Caminhar na fé em Jesus Cristo supõe estar disposto a essa reciprocidade no amor de Deus e dos irmãos. Nascer da água e do Espírito requer que trilhemos contínuo processo de conversão e renovação do coração e que nos libertemos das amarras dos maus hábitos, como condenar e julgar aqueles que temos dificuldades de acolher porque pensam diferente de nós. Jesus não veio para julgar e condenar. Também nós devemos nos inserir nessa dinâmica fraterna de corrigir os erros sem julgar e condenar as pessoas. A pedagogia divina não desiste de chamar o pecador à conversão. Com muita frequência, presenciamos atitudes de intolerância em nossa sociedade, que condenam e até matam por questões ideológicas. A exemplo de Jesus, o cristão é chamado a viver o acolhimento, a misericórdia, a compaixão, o perdão e ser tolerante diante de quem é diferente.

Izabel Patuzzo

pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. É assessora nacional da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]