Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2022 - ano 63 - número 344 - pág.: 55-58

5º DOMINGO DA QUARESMA – 3 de abril

Por Marcus Mareano

Contemplando a realidade na perspectiva de Deus

I. INTRODUÇÃO GERAL

Já nos aproximamos da semana mais importante do ano litúrgico. Os textos deste domingo nos recomendam deixar as coisas passadas e acolher o novo que Deus nos dá. Uma atitude de fé em que novos horizontes, maiores e melhores, surgem com a ação divina.

A primeira leitura fala da libertação ocorrida no passado e mostra que Deus está para realizar algo melhor, superior ao que se recorda como tempo glorioso de Israel. Paulo reflete, na segunda leitura, a respeito da própria experiência de considerar a vida de perseguidor da Igreja como um nada diante da meta da ressurreição, que ele persegue. No Evangelho, lemos a cena da adúltera perdoada por Jesus, uma história de vida ressurgida na misericórdia oferecida por ele a partir daquele encontro.

Portanto, celebremos a novidade de Deus em nossa vida e em nosso meio. Já é tempo de contemplar, de novas maneiras, o que temos visto com frequência. Deixemo-nos surpreender com o que desponta no mistério deste domingo. 

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Is 43,16-21)

Na altura em que essas palavras do livro de Isaías foram escritas, o povo de Israel se encontrava em uma situação muito difícil. Jerusalém, o centro cultural e religioso, fora destruída e grande parte da população fora deportada e forçada a viver no exílio (587 a.C.-538 a.C.). O antigo reino se tornara pequena e insignificante parte do Império Babilônico.

O trecho da primeira leitura recorda a antiga experiência, bem anterior ao exílio, do cativeiro no Egito. Foi Deus quem abriu um caminho no mar para que o povo passasse e superasse os perseguidores, destroçados nas águas (v. 16-17; Ex 14,21-29). Contudo, esses feitos grandiosos do passado serão pequenos diante do que está para acontecer com os judeus. Deus promete fazer coisas novas, e elas já estão despontando (v. 19). A passagem desperta a esperança dos ouvintes e os convida a contemplar a realidade, na qual Deus continua a agir como outrora.

O passado glorioso de Israel causava nostalgia nos exilados, em vista da situação em que se encontravam. Então, a profecia fala de um caminho novo no deserto, rios em lugares ermos e feras selvagens louvando o Senhor (v. 19-20). A novidade que se realiza em meio ao sofrimento supera as primeiras experiências do povo com Deus.

Enfim, da mesma maneira que a travessia do mar Vermelho serviu de referência para aquela gente se tornar povo de Deus, a experiência de restauração, como “novo êxodo”, constitui novo povo, formado para o louvor de Deus (v. 21). As pelejas do exílio preparam a glória que há de vir para os judeus.

As adversidades são ocasiões oportunas para acolher a novidade de Deus. Ele sempre está a fazer coisas novas, para que olhemos o presente mais do que o passado e contemplemos o que desponta.

2. II leitura (Fl 3,8-14)

Conforme já falamos no roteiro para o 2º domingo da Quaresma, o capítulo 3 da carta aos Filipenses se caracteriza pela crítica violenta contra os falsos mestres que pretendiam reintroduzir elementos do judaísmo na comunidade. O apóstolo evoca a própria experiência para confrontar aquela gente, apegada às instituições antigas. Paulo foi rigoroso cumpridor das normas e se tornou ardente evangelizador.

O trecho da leitura se inicia com a afirmação do autor de que considera as coisas antigas como perda diante do bem mais precioso que ele encontrou: o conhecimento de (relação com) Cristo (v. 8; 1Cor 15,45; 2Cor 3,17). Não é desprezo pelo passado ou fingimento, como se aquele não existisse, mas enaltecimento do presente e do futuro novos a partir de Cristo. Se antes Paulo se apoiava na observância da Lei mosaica, agora se sustenta na fé em Cristo (v. 9).

Continuando a narrar a própria experiência, Paulo destaca a força da ressurreição de Cristo, experimentada no seu processo pessoal (v. 10; At 9,3-9). Essa força o impulsiona a seguir adiante, a fim de alcançar a ressurreição dos mortos (v. 11). Ele reconhece não ter se aproximado da meta ainda (v. 12), contudo prossegue firmemente, porque Jesus o alcançou primeiro no caminho de Damasco. Enquanto o apóstolo se empenha em prol de um objetivo, o Senhor se antecipa para guiá-lo adiante.

Por fim, os versículos seguintes (v. 13-14) retomam a ideia inicial de se importar menos com o passado e avançar adiante. A metáfora da corrida e do prêmio está subjacente na mensagem de Paulo. Entretanto, ele pensa além, na realidade transcendente, na eternidade da comunhão com Deus em Cristo. A meta não é uma recompensa material ou um status social, mas um prosseguimento espiritual até o fim.

Podemos encontrar diferentes paralelos entre o testemunho de Paulo acerca de si e nossa vida pessoal. No entanto, todos nos assemelhamos nessa experiência de fé pelo encontro com Cristo, pela transformação que ele provoca em nossa vida e pelo propósito de seguir até o fim. Ninguém julgue ter alcançado a meta, sigamos firmes para a eternidade.

3. Evangelho (Jo 8,1-11)

A cena do Evangelho deste domingo foi inicialmente transmitida fora do Evangelho de João e mais tarde integrada nele. Ela interrompe a coerência entre Jo 7,37-52 e 8,12. A mensagem corresponde mais ao gosto lucano do que ao joanino, mas encontra certa coerência com a teologia do Quarto Evangelho.

O lugar de ocorrência do episódio é o templo, onde o povo se reunia ao redor de Jesus para aprender seus ensinamentos (v. 2). Ele passara a noite no monte das Oliveiras, lugar de encontro com Deus na oração e de discernimento (v. 1; Mc 13,3; Lc 22,39). Então, os escribas e os fariseus trazem uma mulher apanhada em adultério e colocam-na no meio de todos. Ela se torna o centro das atenções e gera uma expectativa pela atitude do mestre Jesus. O que haveria de fazer?

Os religiosos judaicos, escribas e fariseus, anunciam a acusação contra a mulher. Ela foi flagrada cometendo adultério, e Moisés, na Lei, ordena apedrejar tais mulheres (Lv 20,10; Dt 22,22-24). A referência à Lei é usada como forma de julgamento e condenação da mulher. Por isso provocam Jesus, querendo que ele declare algo. Era uma armadilha para terem mais motivos para opor-se a ele e levá-lo à prisão.

Jesus reage com a paciência e a sabedoria de um sábio, superior ao fechamento de mente deles (v. 7). Escreve no chão, com o dedo, coisas escritas no pó, que o vento leva logo. Entretanto, também ensina de forma consistente, para ficar na memória de todos os presentes. “Quem dentre vocês não tiver pecado atire a primeira pedra!”, exclamou, com força, Jesus (v. 7). E continuou a escrever no chão coisas não sabidas.

A reação dos ouvintes foi saírem pouco a pouco, a começar pelos mais velhos (v. 9). A mensagem ensinada pelo Mestre era clara. Quanto mais velho, mais pecado acumulado e, no caso dos escribas e fariseus, maior aptidão para a condenação por apedrejamento. Eles desistem do apedrejamento.

Jesus fica sozinho com a mulher no meio. Ele se põe de pé, como um profeta ou um juiz a proclamar uma sentença (v. 10). Questiona, primeiramente, onde estavam os que a condenavam. Eles fugiram! Então Jesus declara: “Eu também não te condeno. Vai e, de agora em diante, não peques mais” (v. 11). O medo da mulher se converteu na alegria de uma vida nova a partir daquele novo ensinamento. A determinação do juiz foi a misericórdia e a liberdade no amor de Deus.

Há um contraste entre o gesto de Jesus e o daqueles escribas e fariseus. Jesus sozinho age com a justiça divina, com o perdão restaurador de Deus, que produz vida nova no ser humano. Os escribas e fariseus só entendiam da letra da Lei e se achavam melhores do que a pecadora por esse motivo. Por fim, as surpresas da passagem: quem peca ganha nova chance pelo perdão, e Deus não é um juiz carrasco, mas Pai misericordioso.

O julgamento de Jesus não foi uma reação proporcional ao erro cometido pela mulher. De igual modo, o agir de Deus em relação a nós não se equipara ao nosso merecimento. Ele procede de forma muito melhor do que imaginamos e nos surpreende com seu amor e misericórdia, dando-nos mais do que aquilo de que somos dignos.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Felizmente, muitos de nós não experimentamos as circunstâncias difíceis enfrentadas pelo povo judeu no exílio, por Paulo, no primeiro século, ou pela adúltera prestes a ser condenada. No entanto, esses relatos nos ajudam a enfrentar as grandes e pequenas dificuldades da vida cotidiana. Podem existir momentos em que sentimos que nossa vida, nossa sociedade ou nosso planeta estão em ruínas.

Nada se compara com a grandiosidade do amor de Deus por nós, manifestado em Cristo. Nessa ótica, nenhuma circunstância difícil supera o agir divino por nós. Por isso, confiantemente, olhamos mais para o presente do que para o passado e aguardamos o futuro a que a fé nos faz aspirar. O novo de Deus já se realiza entre nós.

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]