Publicado em setembro/outubro de 2024 - ano 65 - número 359 - pp. 48-51
6 de outubro – 27º Domingo do Tempo Comum
Por Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*
O que Deus uniu, o homem não separe
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia deste domingo tem como temática fundamental o matrimônio. Da ordem natural à ordem teológica, o casamento é dom e graça para aqueles que são chamados a essa nobre vocação de gerar vida e possibilitar a realização e a felicidade de outrem. Na primeira leitura, Deus deseja ao homem uma companheira, que sane a solidão de seus dias. Na segunda leitura, na cristologia de Hebreus, podemos testemunhar Jesus como iniciador da fé e mediador de nossa salvação. No Evangelho, vemos que foi a dureza dos corações humanos que impetrou o fim das relações e o divórcio. Contudo, Deus criou o ser humano para se relacionar e amar. O Reino deve ser acolhido como dom, como presente do Senhor para que dele façamos parte.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Gn 2,18-24)
O texto sobre a criação da pessoa humana – Gn 2,4b-25 –, originário da tradição javista, apresenta-nos Deus Adonai, que cria o ser humano do pó da terra (Gn 2,7). No v. 18, o Senhor evoca a preocupação com sua criatura, a fim de que não fique só, sem uma companheira: “Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”. A solidão não é virtude para Deus, mas dificuldade que solucionará, criando para o homem uma auxiliar. Deus cria a pessoa para a relação, para a vida comum, para ser um companheiro para sua auxiliar, a mulher. Pode-se dizer que Gênesis teologiza a lei natural, fazendo dela uma expressão da vontade de Deus: o casamento, que, posteriormente, na tradição cristã, será conhecido como matrimônio.
No v. 19, o Senhor, que também forma todos os animais do pó da terra, os traz a Adão – que, em hebraico, significa “vermelho” ou “terra” –, para que ele os nomeie. Todo ser vivo, assim, teria um nome que Adão lhe concedesse. Pelo uso de sua razão, ele dá nome a todos os seres vivos e os classifica. O Criador divide com sua criatura a capacidade de nomear a criação. Deus não quer tudo para si só, mas inclui a participação do ser humano em sua obra criadora.
Nos v. 20-21, com o sono profundo de Adão, Deus gera Eva, a vivente. Ele a faz da costela do primeiro homem. Tsela, em hebraico, significa “lado” – do lado de Adão, o Criador gera sua companheira para caminharem juntos, revelando seu plano de igualdade entre homem e mulher. Adão exclama: esta é “osso dos meus ossos e carne da minha carne” (v. 23). Assim, ele torna-se cocriador: Eva é derivada dele e ambos se reconhecem como companheiros. No v. 24 culmina a narrativa: “por isso”, em sentido explicativo e conclusivo, “o homem deixará sua casa e se unirá à sua mulher”, e ambos serão uma só carne, na complementaridade que lhes é comum.
2. II leitura (Hb 2,9-11)
A epístola aos Hebreus é um tratado de fé em Jesus Cristo, o sumo sacerdote, aquele que se entregou na cruz para a remissão dos pecados. Esse texto, que pode ser caracterizado como uma grande homilia, evoca a imagem de Jesus coroado de glória e honra, por ter sofrido a morte (v. 9). A afirmação: “Ele provou a morte em favor de todos”, como está no original grego, expressa a finalidade da vida do Senhor: sua consagração como sumo sacerdote, em preparação para sua morte sacrifical, como é a opinião do exegeta H. Strathmann. Jesus é o iniciador da fé (v. 10); ele nos leva à relação com Deus, o Pai, por quem todas as coisas foram feitas. Tal conceito de Deus como Criador, ligado à primeira leitura, faz-nos encontrar a missão de Jesus Cristo: “conduzir muitos filhos à glória”. Tais palavras nos fazem recordar 1Cor 8,6: “Para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para o qual caminhamos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e para quem caminhamos”.
No v. 11, o autor de Hebreus afirma que tanto Jesus, o santificador, quanto os por ele santificados descendem do mesmo ancestral, Adão. Por essa razão, Jesus não se envergonha de chamar todos de irmãos. Em Cristo, somos todos irmãos e irmãs. Ele fez de todos uma grande e única fraternidade.
3. Evangelho (Mc 10,2-16)
O Evangelho deste domingo nos apresenta o ensinamento de Jesus sobre o casamento e o divórcio. Trata-se de dois desafios adicionais às pessoas que desejam segui-lo: primeiro, viver casados e cultivar o amor conjugal, viver numa só carne a indissolubilidade do matrimônio; segundo, compreender que o divórcio deixa sequelas difíceis e põe fim à relação conjugal, não sendo para Jesus a melhor opção.
Moisés permitiu escrever uma carta de divórcio. Jesus considera o ensinamento de Dt 24,1-4 uma concessão à fraqueza humana e uma dispensa do plano original do Criador para o casamento, a união entre homem e mulher. Deus uniu, mas as pessoas insistem em se separar; em outras palavras, é isso que Jesus quer dizer à comunidade que o segue. Nos v. 13-16, vemos que trazem a Jesus criancinhas para que as toque e abençoe. O Senhor diz que quem não receber o Reino dos Céus como uma criança nele não entrará: para ele, a alegria de receber o Reino como dom e presente é fundamental.
O v. 2 começa com uma questão proposta pelos fariseus, que põem Jesus à prova: “É lícito ao marido repudiar a mulher?” Em outras palavras: divorciar-se da mulher é algo lícito? A questão diz respeito à legalidade do divórcio, não às causas que levam a ele (Mt 19,3). Os questionadores parecem saber da proibição, por parte de Jesus, em relação à separação. Tal questão pode ter sido levantada para criar maior animosidade entre Jesus e a família de Herodes, na qual havia muitas separações. No v. 3, Jesus evoca o que disse Moisés: o texto de Dt 24,1-4 toma a instituição do divórcio como algo comum, quando o marido decide divorciar-se de sua esposa, proibindo-a de uma segunda união. A resposta dos fariseus (v. 4) afirma que Moisés permitiu escrever à mulher uma carta de divórcio e despedi-la. A lei era favorável ao homem, o detentor dos direitos. Contudo, para Jesus, foi por causa da dureza do coração deles que Moisés escreveu esse mandamento.
A dureza de coração é aquilo que contradiz o mandamento primeiro (v. 5). Para Jesus, é preciso voltar à criação (v. 6), na qual Deus fez a pessoa humana. Então, o homem deixará sua casa, pai e mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne (v. 7). Para o Senhor, esse é o verdadeiro mandamento de Deus e todo o resto corresponde à ressignificação desse mandamento à luz dos interesses do homem e do endurecimento de seu coração.
Para a tradição bíblica, o termo Lev – em hebraico, “coração” – é o lugar em que se originam o bem e o mal. O coração, para o judaísmo, tem competências como o próprio cérebro, levando o ser humano ao discernimento e à ação. O v. 8 repete: “não são dois, mas uma só carne”. A repetição é intencional, pois forja o sentido mesmo da união esponsal, garantindo a indissolubilidade da união. A quebra desse vínculo ameaça a vitalidade das duas partes, que se permitiram forjar-se em um só. O v. 9 corresponde ao desfecho: “o que Deus uniu, o homem não separe”. Tal imperativo se transforma também em possibilidade de condicionalidade: será que de fato Deus uniu? Pois a união perfeita, o amor, só perdura quando Deus se faz presente na união desejada pelo casal: havendo a ruptura da presença divina, que une, divisões são instauradas e permitem ao fim chegar.
O v. 10 apresenta o cenário da casa, onde os discípulos voltam ao mesmo assunto. Já nos v. 11-12, há a resposta por parte de Jesus: “Quem se divorciar de sua mulher e casar-se com outra, cometerá adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e casar-se com outro, cometerá adultério”. Também o homem pode se tornar adúltero em uma sociedade que o privilegia. Para Jesus, tanto o homem quanto a mulher estão sujeitos ao pecado do adultério. O peso não recai somente sobre um deles.
Nos v. 13-16, as pessoas trazem crianças a Jesus a fim de que ele as abençoe. O Senhor diz que quem não receber o Reino como essas crianças não poderá nele entrar. Ele então as abençoa, impondo-lhes as mãos. É importante notar que receber o Reino como uma criança é deixar-se alegrar com ele. O Reino é um presente, um dom de Deus para todo ser humano. Isso significa deixar-se encantar e alegrar por ele.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Evidenciar que a comunidade cristã é lugar da aliança com Deus. O matrimônio é dom que leva o casal à santificação, ao serviço ao Reino de Deus. Levar a comunidade a crer em Jesus Cristo como mediador universal da salvação. Compreender que o matrimônio é dádiva que deve ser vivida. O divórcio, porém, é fruto da incompreensão da indissolubilidade, no qual as intransigências ganham força, minando o amor.
Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seus estudos de doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: [email protected].