Roteiros homiléticos

Publicado em setembro-outubro de 2023 - ano 64 - número 353 - pp.: 50-52

8 de outubro – 27° DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Junior Vasconcelos do Amaral*

Somos “frutos bons” na vinha do Senhor!

I. INTRODUÇÃO GERAL
  Neste domingo a liturgia nos convida à genuína conversão, a fim de que possamos produzir frutos para o Reino, a vinha do Senhor. O Evangelho, em forma de parábola – gênero literário muito utilizado por Jesus –, impele-nos a refletir sobre nosso próprio destino na história da salvação. Jesus é o Filho do proprietário da vinha, Filho daquele que a plantou com muito amor. Contudo, os agricultores, o povo de Israel, não quiseram compartilhar da salvação que o Filho lhes veio oferecer. Essa vinha nova, agora, é a Igreja, que oferece o Filho de Deus ao mundo inteiro, a todas as pessoas que desejam a salvação. A primeira leitura, de Isaías – profeta da realidade esperançosa –, motiva-nos a contemplar Israel como a vinha do Senhor, plantada com amor neste mundo. Essa vinha, porém, recusou-se a dar frutos bons e saudáveis; ao contrário, ofereceu frutos ruins, fétidos, a Deus. Israel será deportado para a Babilônia: essa é a consequência teológica para sua recusa em oferecer frutos de justiça ao mundo e a Deus. A segunda leitura exorta a comunidade eclesial de Filipos e a todos nós, hoje, a viver na concórdia (união de corações) e na alegria – dons do Espírito Santo.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Is 5,1-7)
  Com uma linguagem figurada, a primeira leitura nos apresenta o cântico de alguém para seu amado, o cântico de um amigo seu, sobre sua vinha. O amado é Deus; sua vinha é Israel; seu povo e esse amigo são os ouvintes e leitores de ontem e de hoje do profeta Isaías. Isaías de Jerusalém viveu aproximadamente por volta dos anos 700 a.C. Era filho de Amós e estava fortemente ligado às tradições teológicas do Reino do Sul (Judá), sobretudo àquelas de influência davídica (da dinastia de Davi). O livro de Isaías está dividido em três partes: o Proto-Isaías (Is 1-39), o Dêutero-Isaías (Is 40- 55) e o Trito-Isaías (Is 56-66). Respectivamente, essas partes são expressões literárias do período pré-exílico (invasão dos assírios), exílico (deportação para a Babilônia e vivência no exílio) e pós-exílico (restauração do povo). A passagem deste domingo está inserida no Proto-Isaías, nos oráculos ligados ao reinado de Acaz (que governou no período de 732-716 a.C.). O cântico é uma parábola que retrata um amor não correspondido: contrasta o cuidado excessivo por parte de Deus-Adonai e a resposta pecaminosa por parte de seu povo – uma espécie de amada que não está apta a amar à altura desse amor. O termo “amado”, em hebraico Yadid ou dôd, é frequentemente encontrado no livro do Cântico dos Cânticos. Isaías está falando de Adonai, o amado, que infelizmente é traído por seu povo. Ele devotou cuidado e carinho ao seu povo (v. 2), removeu pedras, plantou na vinha cepas escolhidas, edificou uma torre, cavou um lagar. Esperou frutos bons, mas vieram uvas podres (termo que, em hebraico, se relaciona ao verbo “feder”). Essa parábola leva todos os moradores de Jerusalém a emitir um juízo (v. 3). Em contrapartida, os v. 5-6 descrevem aquilo que o locutor da parábola (o próprio Deus) deverá fazer. Esses versículos mostram a futura devastação que espera a nação, certamente antevendo os trágicos momentos do exílio na Babilônia, no qual essa vinha não conseguirá gerar frutos, pois estará fora de seu terreno, de seu habitat natural.
2. II leitura (Fl 4,6-9)
  Paulo exorta a comunidade de Filipos a viver a concórdia (união de corações) e a alegria. Ele inicia dizendo aos seus que não se preocupem com nada, mas apresentem a Deus orações e súplicas, acompanhadas de agradecimentos (em grego, eucharisthós), pois a paz de Deus guardará o coração e os pensamentos dos membros da comunidade. Paulo admoesta que não haja na comunidade reclamações e que todos colaborem para a harmonia. Cristo é, para os cristãos, o crivo pelo qual todos os sentimentos devem ser ajuizados. Suplica, ainda, no v. 8, que se ocupem em pensar em tudo o que é digno, respeitoso, verdadeiro, justo, puro, amável, virtuoso e louvável – ou seja, pensar em tudo segundo um modelo cristológico. Já no v. 9, o apóstolo conclui que a comunidade de Filipos deve praticar tudo o que dele aprendeu, recebeu e ouviu – o que dele pôde observar. E finaliza dizendo que o Deus da paz estará com a comunidade. Essa passagem, bem como todo o conjunto dessa afável carta, leva a comunidade cristã a refletir sobre suas atitudes, à luz de Cristo. Cristo é a régua pela qual devem ser medidas todas as nossas atitudes, grandes ou pequenas, tendo por base aquilo que ele nos prescreve – essencialmente, o amor. Este deve ser o epicentro no qual gravitam os cristãos: o amor de Deus, o próprio Deus, porque ele é amor.
3. Evangelho (Mt 21,33-43)
  A “parábola dos vinhateiros homicidas”, conhecida também como “dos arrendatários perversos”, apresenta elementos literários e teológicos semelhantes aos do cântico de Isaías, a primeira leitura deste domingo. Ambas as vinhas são plantadas por seu proprietário, que cuida delas com carinho distinto. Há, porém, algumas diferenças entre as duas parábolas. Em Mateus, o dono da vinha a arrenda e viaja para o estrangeiro, enviando seus servos para tratar diretamente com os agricultores. Aqueles são espancados, mortos e apedrejados (v. 35). Por fim, depois de enviar outros, em maior número (v. 36), o dono da vinha envia o próprio filho, que será a vítima fatal dos assassinos que lá estão. Já a parábola de Isaías traduz as consequências nefastas para a própria vinha, Israel. Os que simbolizam a vinha de Israel, que deveriam produzir uvas boas e doces, produzem, pelo contrário, uvas ruins, e por isso essa vinha será arrancada e levada para o exterior, em alusão direta ao exílio na Babilônia. Ambas as parábolas proclamadas convidam seus ouvintes, os interlocutores de Isaías e de Jesus, a um juízo. No v. 40 se diz: “Pois bem, quando o dono da vinha voltar, que fará com esses agricultores?” Os interlocutores respondem: “Dará triste fim a esses criminosos e arrendará a vinha a outros agricultores, que lhe entregarão os frutos no tempo certo”. Tanto para Isaías quanto para Mateus, em suas teologias, os que sofrem são sempre os mesmos: o povo – e especialmente, no caso de Mateus, também o Filho, que é a cabeça do povo de Deus, sua Igreja, agora o novo Israel. Para Benedict Viviano, 4 o termo “proprietário” seria uma palavra predileta de Mateus, usada para designar uma espécie de dono de terras que se ausenta, que viaja para longe. Segundo o exegeta, há uma alusão imprecisa a Is 5,1-7. Contudo, a nosso ver – uma vez que Mateus guarda no seu expediente literário muitas memórias judaicas para sua comunidade, que está em processo de ruptura com o judaísmo formativo dos fariseus –, pôr na boca de Jesus essa parábola, aludindo a Isaías, era algo muito importante para preservar a experiência e a tradição de que Jesus ressignifica os principais elementos teológicos da ancestralidade judaica, da qual Isaías foi grande contribuidor. Essa parábola, encontrada, na obra de Mateus, na seção das controvérsias na Judeia e em Jerusalém, pode ser compreendida por nós, seus leitores, como uma alegoria da história da salvação. Os servos enviados são os profetas, que foram hostilizados e mortos pelo povo de Israel, num processo que culminou em Jesus, o Filho. Mencionado no v. 43, o Reino de Deus – matéria teológica que conclui a parábola – poderia significar algo como a posse atual do favor e da proteção divina, dons que, porém, serão retirados e entregues a outro povo. Para Mateus, esse outro povo pode significar, como afirma Viviano, a Igreja, composta primordialmente de judeus crentes, mas também de gentios convertidos. Juntos, ambos os grupos formariam o novo povo, o Israel renovado em Cristo. Essa conclusão é mais branda que na parábola. Como observa Viviano, “os vinhateiros não são assassinados [como o Filho], mas a promessa lhes é tirada”. 5
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
  Perceber a ligação literário-teológica entre o profeta do Antigo Testamento – Isaías – e o evangelista Mateus em sua parábola: ambos suscitam em nós a percepção de que Deus “plantou” neste mundo seu povo, a fim de que este possa produzir frutos de justiça e amor. Fomentar nos irmãos e irmãs o desejo de viverem unidos de coração, expurgando a comunidade de toda desunião, desafeição e arbitrariedade. A comunidade cristã é chamada a viver a expressão do amor de Deus: a alegria. Refletir com nossas assembleias sobre se estamos todos empenhados na busca do Reino, gerando frutos de fé, esperança e caridade.

Junior Vasconcelos do Amaral*

*Pe. Junior Vasconcelos do Amaral é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG. Doutor em Teologia
Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo Horizonte), realizou parte de seu doutorado
na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Bélgica). É
professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e publicou vários artigos sobre o Evangelho de Marcos
e a paixão de Jesus em perspectiva narratológica. E-mail: [email protected]