Roteiros homiléticos

8 de setembro – 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Pe. Johan Konings, sj

A SABEDORIA E O REINO

I. INTRODUÇÃO GERAL 
O tema de hoje é a sabedoria evangélica. Esta não se deve confundir com a sabedoria do mundo, que, muitas vezes, é uma “safadoria”: calcular e safar-se... A sabedoria do evangelho é ponderar o nosso empenho pelo Reino de Deus. Não é uma posse segura, conquistada de uma vez para sempre. Até o sábio rei Salomão teve de pedi-la a Deus, mas ele a via muito em função do reinado dele. A nós cabe procurá-la em vista do reinado de Deus.
 
II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS 
1. Leitura (Sb 9,13-19)
A 1ª leitura é uma parte da prece da Salomão pela sabedoria, dom indispensável de Deus para ser um bom rei.
O livro da Sabedoria é, na realidade, uma obra escrita por um judeu de língua grega, contemporâneo de Jesus. Foi posto sob o nome do grande rei Salomão, que tinha fama de sábio porque soube fazer julgamentos prudentes, construir o Templo e responder às perguntas da rainha do Sul (cf. 1Rs 3,1-18; 5,9-14; 8,22-61; 10,1-13 etc.). Sua sabedoria é o dom do discernimento e ponderação outorgado por Deus. Foi o que ele pediu a Deus (1Rs 3,9).
Também no livro da Sabedoria, Salomão pede esse dom e ensina a pedi-lo (9,1-19). O esforço de nossa inteligência, por si, não é o suficiente. As faíscas do Espírito de Deus não se deixam programar; devem ser recebidas como dádivas.
O mundo de hoje carece de sabedoria. Nem mesmo respeita suas próprias fontes de subsistência, sacrificando tudo à sustentação de obscuros poderes e lucros, com a cumplicidade de praticamente toda a sociedade, deixando-se envolver no jogo da competição e do consumo...
 
2. Evangelho (Lc 14,25-33)
O evangelho nos coloca numa nova realidade, que tem como marco zero a cruz de Cristo. Essa nova realidade exige também uma nova sabedoria. Muitos pretendem seguir Jesus, mas será que sabem que seu caminho conduz ao Gólgota? Daí as duras exigências formuladas por Jesus: abandonar a família, o sucesso, a vida até (Lc 14,25-27), e ponderar sobriamente sua força e disponibilidade (14,28-32). Em resumo: o discípulo deve largar tudo (14,33). Como isso se realiza na vida de cada um, não é dito aqui. Ora, uma coisa é certa: Jesus não pede o impossível, mas a gente deve preparar-se para tudo o que for possível.
A sabedoria ensina a dar a tudo seu devido lugar, a ponderar o que é mais e o que é menos importante. Isso pode conduzir a conclusões que, aos olhos de pessoas superficiais, parecem loucura. As exigências do seguimento de Jesus parecem loucura: “Odiar (=não preferir) pai e mãe, mulher, filhos, irmãos e irmãs” (14,26), por causa de Cristo e seu evangelho, não é isso uma loucura? Não. É a consequência da sabedoria cristã, da ponderação do investimento necessário para o Reino de Deus. Começar a construir a torre sem o necessário capital, isso é que é loucura, pois todo mundo ficará gozando da cara da gente porque não conseguiu concluir a obra! A alusão à torre de Babel, símbolo da vaidade e da confusão humana, é evidente. O homem sábio faz seu orçamento e decide quanto vai investir. No caso do cristão, o único orçamento adequado é o do investimento total, já que se trata do supremo bem, sem o qual os outros bens ficam sem valor.
A sabedoria cristã consiste em ousar optar radicalmente pelo valor fundamental, mesmo se isso exige uma escolha dolorosa contra pessoas muito queridas, realidade que se repetia diariamente na Igreja no tempo de Lucas. E observe-se que essas palavras foram dirigidas às “grandes multidões” que seguiam Jesus (14,25), não a monges e ascetas. Além disso, formam a sequência da exortação ao convite gratuito e da parábola do grande banquete, em que Jesus ensina a dar a preferência às pessoas “não gratificantes” em vez dos familiares e amigos (14,7-14; evangelho de domingo passado). Assim, “odiar” seus familiares pode referir-se, concretamente, a duas realidades: 1) num primeiro sentido, muito atual no tempo de Lucas: a perseguição, que obriga o cristão a preferir o Cristo acima dos laços de parentesco e até acima da própria vida (sentido primeiro); 2) num sentido mais geral, atual também hoje: a preferência (por causa do Evangelho) por categorias de pessoas pouco estimadas, excluídas, mesmo se isso nos custa o afastamento de nossos círculos sociais preferidos.
Ouve-se, em nosso ambiente, muitas vezes, a observação de que é preciso ter “bom senso” em questões de justiça e direito, mas esse “bom senso”, geralmente, não significa outra coisa senão o medo, ou até a covardia. Quando é claro que o amor de Cristo está em jogo, a sabedoria cristã exige um investimento radical. Porém, radicalidade não é imprudência. É liberdade perante aquilo que nos pode desviar do que é importante. A sabedoria cristã nos ajuda a estabelecer as opções preferenciais certas. E depois, é preciso realizar na prática essas opções sabiamente feitas.
Quem acha que seguir Cristo é fundamental, deve fazê-lo, custe o que custar. Assim, o sábio cristão não é o sofista brilhante que explica tudo sem jamais se comprometer. É o homem que, ao mesmo tempo lúcido e convicto, investe tudo no que julga ser o sentido último da vida e da História, à luz da fé em Cristo Jesus. O sábio não é aquele que hesita quando se trata de saltar, mas aquele que salta; o que hesita é o que cai...
 
3. II leitura (Fm 9b-10.12-17)
A 2ª leitura não foi escolhida em função do tema principal, que determina a 1ª leitura e o evangelho, mas não destoa dele. A carta de Paulo a seu discípulo Filêmon gira em torno do incidente do escravo Onésimo. Este fugira de seu dono, Filêmon, para ficar cuidando de Paulo, aprisionado (provavelmente) em Éfeso, não muito longe de Colossas, a cidade de Filêmon. Agora Paulo manda-o de volta a Filêmon, não mais na qualidade de escravo (um escravo fugido poderia ser punido de morte), mas, como ele recebera o batismo, na qualidade de irmão, “filho” de Paulo, como era o próprio Filêmon (v. 10). Filêmon o deve receber não mais como escravo, mas como irmão (v. 16).
No mundo escravocrata daquele tempo, o que Paulo propõe deve ter parecido loucura; porém, é a mais pura sabedoria cristã. Mesmo se Paulo não pensava numa sociedade sem escravos, ele aboliu mentalmente a diferença entre senhor e escravo, judeu e grego, homem e mulher (cf. Gl 3,28), diante da perspectiva do encontro com Cristo na Parusia (cf. 1Cor 7,20-23). Espiritualmente falando, “em Cristo”, ambos, Onésimo e Filêmon, pertencem a uma nova realidade e são irmãos.
 
III. PISTAS PARA REFLEXÃO 
Os cristãos e as estruturas sociais: “Se Deus só serve para deixar tudo como está, não precisamos dele”, palavras de uma agente da educação popular. O Deus que é apenas o arquiteto do universo, mas fica impassível diante da injustiça dos habitantes de sua arquitetura, não tem relevância alguma. O cristianismo serve ou não para mudar as estruturas da sociedade?
São Paulo tinha um amigo, Filêmon. Este – como todos os ricos de seu tempo – tinha escravos, que eram como se fossem as máquinas de hoje. Um dos escravos, sabendo que Paulo tinha sido preso, fugiu do dono, Filêmon, para ajudar Paulo na prisão. Paulo o batizou (“o fez nascer para Cristo”). Depois, mandou-o de volta a Filêmon, recomendando que este o acolhesse não como escravo, mas como irmão. Mais: como se ele fosse o próprio Paulo!
Essa história é emocionante, mas nos deixa insatisfeitos. Por que Paulo não exigiu que o escravo fosse libertado, em vez de acolhido como irmão, continuando escravo? Aliás, a mesma pergunta surge ao ler outros textos do Novo Testamento (1Cor 7,21; 1Pd 2,18). Por que o Novo Testamento não condena a escravidão?
A humanidade leva tempo para tomar consciência de certas incoerências, e mais tempo ainda para encontrar-lhes remédio. A escravidão, naquele tempo, podia ser consequência de uma guerra perdida ou uma forma de compensar as dívidas contraídas. Imagine que se resolvesse desse jeito a dívida do Brasil! Seríamos todos vendidos (se já não é o caso...).
Na Antiguidade, a escravidão fazia parte da estrutura econômica. Na Idade Média, com os numerosos raptos praticados pelos piratas mouros, surgiram até ordens religiosas para resgatar os escravos e, se preciso, tomar o lugar deles. Apesar disso, ainda na Idade Moderna, a Igreja foi conivente com a escravidão dos negros. A consciência moral cresce devagar, e mudar alguma coisa nas estruturas é mais demorado ainda, porque depende da consciência e das possibilidades históricas. As estruturas manifestam lentamente, com clareza, a sua injustiça, e então levam séculos ainda para transformá-las.
Porém, a lição de Paulo nos ensina que, não obstante essa lentidão histórica, devemos viver desde já como irmãos, vivenciando um espírito novo que vai muito além das estruturas vigentes e que – como uma bomba-relógio – fará explodir, cedo ou tarde, a estrutura injusta. Novas formas de convivência social, voluntariados dos mais diversos tipos, organismos não governamentais, pastorais junto aos excluídos – a criatividade cristã inventa mil maneiras para viver já aquilo que as estruturas só irão assimilar muito depois.
Essa é uma forma da sabedoria do Reino, não para construir um templo ao modo de Salomão, mas o templo de pedras vivas, fundamentado em Cristo.

Pe. Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e licenciado em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Leuven (Lovaina). Atualmente, é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail: [email protected].