Roteiros homiléticos

Publicado em janeiro-fevereiro de 2022 - ano 63 - número 343 - pág.: 62-64

8º DOMINGO DO TEMPO COMUM – 27 de fevereiro

Por Izabel Patuzzo

A boca fala do que o coração está cheio

I. INTRODUÇÃO GERAL

As leituras desta liturgia destacam algumas virtudes e qualidades que deveriam caracterizar a vida de todo cristão. É o testemunho da fé em Jesus Cristo que deve encher nosso coração, e não os critérios humanos, movidos pela busca pessoal de visibilidade.

A primeira leitura chama a atenção para o cuidado que precisamos ter para não avaliar as pessoas pelas aparências, e sim pela sabedoria de vida que revelam. Como o texto diz: a pessoa demonstra quem é pelo seu discurso. Não devemos nos impressionar pela habilidade teatral ou pela retórica de uma pessoa, e sim por sua sabedoria de vida.

Na segunda leitura, Paulo nos recorda que em Cristo Jesus todos alcançamos a vitória da vida plena. Por isso não devemos nunca esmorecer no testemunho de nossa fé, para que a vitória de Jesus Cristo não seja vã em nossa vida. A coragem de anunciar Cristo ressuscitado, por meio de uma vida cristã, fortalece nossa fé e nos ajuda a construir comunidades novas, que caminham na esperança da vida eterna.

No Evangelho, Jesus nos ensina que a qualidade de nosso coração determina a qualidade de nossas palavras e ações. O bem que se guarda no coração transborda nas atitudes. A boca fala daquilo que o coração está cheio.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Eclo 27,5-8)

O livro do Eclesiástico faz parte da literatura sapiencial que surgiu por volta do século II a.C. Nessa época, o povo judeu vivia sob o domínio dos selêucidas. O povo de Deus se encontra em uma situação difícil, seja pela dominação política e econômica do poder estrangeiro, seja pela imposição religiosa e cultural. Tudo isso põe em risco a identidade de povo escolhido. É nesse contexto que Ben Sirac, um escriba preocupado com a degradação dos valores morais, éticos e da tradição religiosa do povo, escreve sua mensagem de sabedoria, com o objetivo de ajudar a comunidade a refletir e resistir perante a cultura helênica. O texto da leitura deste domingo é um clássico da literatura sapiencial. Apresenta o sábio como aquele que fundamenta sua vida nas Escrituras.

O autor sagrado recorre a três imagens, retiradas do cotidiano da vida do povo: o crivo agitado, o forno onde o oleiro prepara o vaso, os frutos de uma árvore. Aqueles que agem pela aparência podem fingir, enganar, disfarçar, representar, encenar como num teatro, mas as palavras de sabedoria só podem brotar de corações sinceros. Além disso, são os comportamentos que revelam o íntimo de uma pessoa. A leitura conduz para uma conclusão óbvia: não nos deixemos impressionar pelas aparências ou pela exterioridade das palavras, e sim pelo bem, que é expressão do coração. Na verdade, o verdadeiro sábio, na visão do autor sagrado, é aquele que se inspira nas Escrituras, que orienta sua vida à luz dos princípios divinos.

2. II leitura (1Cor 15,54-58)

O texto escolhido para a segunda leitura conclui o ensinamento de Paulo sobre a crença na ressurreição. Essa doutrina era de difícil compreensão, visto que estamos no início do cristianismo. Os pilares da fé cristã estavam sendo ainda erigidos; não havia ainda uma tradição. Além disso, as comunidades cristãs fora da Palestina acolhiam pessoas de diversas tradições religiosas e culturais. Muitas comunidades eram formadas por cristãos gentios, convertidos do mundo grego, e judeus, que viviam na diáspora. Eram comunidades heterogêneas, inclusivas, que acolhiam a todos os que abraçavam a fé. Contudo, no que se refere à doutrina, tinham suas dificuldades e conflitos para chegarem a uma mesma concepção.

Ao chegar ao ponto final de sua catequese, Paulo faz afirmações decisivas, particularmente sobre a morte, que perdeu seu poder diante da ressurreição de Jesus Cristo. O mais importante não é como isso acontecerá, e sim a certeza da vida eterna prometida por Jesus a todos os que nele creem. Por isso, nossa ressurreição é incontestável. Pelo batismo, fomos purificados do pecado, do egoísmo, da escravidão, da violência e do ódio. Cristo nos libertou da vida de morte. E a palavra final do apóstolo é o convite para permanecermos firmes e inabaláveis, cada vez mais diligentes na obra do Senhor. Enquanto esperamos pela ressurreição, cabe-nos trabalhar a cada dia para vencer as obras da morte. O cristão deve se empenhar sempre para verdadeiramente se transformar em nova criatura e entrar nessa vida nova inaugurada pela vitória de Cristo.

3. Evangelho (Lc 6,39-45)

O texto do Evangelho é a conclusão do discurso que Jesus dirige aos seus discípulos na planície. Eles foram chamados por Jesus para conduzir o povo como guias. Por isso, não podem ser guias cegos, que não conhecem ou não reconhecem o caminho a seguir. Dito em um contexto de não julgar, o ensinamento de Jesus refere-se, em primeiro lugar, ao tipo de cegueira que impede que se enxerguem os próprios limites ou defeitos. Seus discípulos não podem agir como os falsos mestres ou profetas. O verbo “guiar” ou “conduzir” se aplicava às lideranças que serviam de guias para o povo. Aquele que se propõe como guia deve ter clara visão de como conduzir os outros a uma direção certa. Caso contrário, as implicações serão desastrosas tanto para aquele que guia como para aqueles que são conduzidos por cegos.

Um segundo tema da leitura diz respeito à atitude de julgar os outros. Na comunidade dos discípulos, não há lugar para aqueles que se fazem juízes dos irmãos e irmãs. A intolerância e a intransigência não são atitudes que contribuem para o bem comum, pois abrem caminho para a condenação dos outros, muitas vezes por falhas insignificantes. Quem não está em uma atitude permanente de conversão tende a olhar mais para os pequenos defeitos dos outros e não enxergar os próprios defeitos. Com facilidade, toma a posição de quem se sente apto para julgar e condenar os demais. Somente Deus tem autoridade para julgar e condenar; no entanto, ele age com misericórdia.

A bondade é apresentada como um tesouro. O evangelista Lucas faz uma ligação entre bondade e os bons frutos, produzidos igualmente por boas árvores. O verdadeiro discípulo, que segue Jesus na fidelidade, produz bons frutos. Assim, o texto apresenta os critérios para discernir quem está apto para ser guia dos outros. Todos aqueles que acolheram a proposta de Jesus são como árvores boas que produzem bons frutos. O discurso conclui com o dito de que a boca fala daquilo de que o coração está cheio. Os discípulos devem ser bons guias de seu povo; devem orientar a comunidade dos fiéis por meio de suas ações, mas também por meio das palavras que ensinam. Os falsos mestres e profetas tentam confundir as comunidades cristãs com discursos que desviam as pessoas do bom caminho. No contexto desse ensinamento, as palavras têm uma relação profunda com o ato de conduzir. Quem segue Jesus tem de testemunhar a coerência entre o falar e agir.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Todo batizado, de uma forma ou de outra, é chamado a dar testemunho de sua fé em Jesus Cristo. Ser falso guia não é um risco apenas para quem tem responsabilidades na Igreja. O Evangelho, portanto, faz um convite para sermos verdadeiros em nosso testemunho. Jesus deixou claro que nem todos aqueles que o chamam de “Senhor” entrarão no Reino dos céus (Mt 7,21). Ele se opõe a qualquer atitude de seus discípulos que se fundamente apenas em aparências. A coerência entre o falar e o agir segundo seus ensinamentos é sinal de autenticidade. Aquele que, de fato, adere a Jesus Cristo está apto para entrar no Reino dos céus.

As leituras deste domingo são um convite para termos cuidado em como ensinamos ou conduzimos aqueles que o Senhor nos confia. Podemos ser tentados a apresentar-lhes uma doutrina ou um ensinamento que reflitam muito mais nossa visão e nossas teorias do que o Evangelho de Jesus Cristo; ou, ainda, atribuir a Jesus nossas próprias exigências, desvirtuando seu verdadeiro ensinamento.

O questionamento de Jesus deve nos levar a séria avaliação: Quais traves não estou enxergando em meus olhos? Por que o cisco no olho do outro me incomoda mais que a trave que está no meu? É fácil enxergar as falhas dos outros, tornarmo-nos exigentes, arrogantes, intolerantes com elas e, ao mesmo tempo, sermos tão condescendentes com nós mesmos, convencidos que estamos da verdade. Somos convidados a ter consciência da necessidade de estarmos em contínuo processo de conversão.

Izabel Patuzzo

pertence à Congregação Missionárias da Imaculada – PIME. É assessora nacional da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB. Mestre em Aconselhamento Social pela South Australian University e em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É licenciada em Filosofia e Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. E-mail: [email protected]