Roteiros homiléticos

Assunção de Nossa Senhora – 18 de agosto

Por Zuleica Aparecida Silvano

A minha alma engrandece o Senhor

I. Introdução geral

A assunção de Maria, como dogma, foi definida em 1950, durante o pontificado de Pio XII, numa bula papal intitulada Munificentissimus Deus. O fim da vida de Maria não aparece nos textos bíblicos, razão pela qual esse dogma não é aceito pelos ortodoxos nem pelas igrejas de tradição evangélica (os protestantes). A exaltação de Maria ao céu foi difundida no século VI, no Oriente, por meio da celebração da chamada “dormição de Maria” – uma forma de mencionar a sua morte e dizer que ela ressuscitou em corpo e alma, isto é, em sua totalidade como pessoa, não seguindo a antropologia grega neoplatônica que defendia a separação entre corpo e alma. Durante séculos, o povo celebrou essa devoção baseada nos textos chamados apócrifos, ou seja, em escritos que a Igreja Católica Apostólica Romana não considera inspirados e, por isso, não fazem parte da lista dos livros presentes em nossa Bíblia. Em tais textos, há o relato de que Maria teria recebido, por meio de Jesus, o anúncio de sua morte com antecedência e todos os apóstolos se reuniram em torno de seu leito. Maria morre, é sepultada, e Jesus a ressuscita, sendo elevada ao céu. A palavra “assunção” significa ser assumida por alguém; assim, Maria é assumida por Deus em sua glória, estabelecendo-se estreita união entre Jesus e sua mãe, com o compartilhamento também do mesmo destino (a ressurreição). Nesta solenidade da Assunção, no mês vocacional, também recordamos todos os religiosos e religiosas. Que eles e elas possam ter Maria como modelo de discípula, de seguimento no amor a Deus e de serviço ao próximo, sendo sinais proféticos na sociedade, denunciando tudo que é ligado à morte e anunciando a vitória da vida.

II. Comentários dos textos bíblicos

1. I leitura: Ap 11,19a; 12,1.3-6a.10ab

 O livro do Apocalipse não tem a intenção de retratar o que acontecerá no fim do mundo, mas foi escrito para animar as comunidades, que, em tempos de crise, duvidavam se deviam ou não continuar no seguimento de Jesus, tendo em vista a perseguição e a comodidade oferecida àqueles que seguissem a mentalidade do império. Portanto, este livro tem a finalidade de animar as comunidades e, ao mesmo tempo, recordar as exigências do seguimento de Jesus, bem como sua incompatibilidade com a mentalidade opressora.

O trecho escolhido para esta liturgia pertence à seção dos três sinais. Ap 11,19 menciona o templo celeste que revela a arca da aliança, lugar da manifestação divina e símbolo da proximidade e do encontro com Deus. Ao mencionar a arca da aliança, provavelmente o autor visa mostrar que Deus se manifesta quando estamos dispostos a cumprir a sua vontade.

A mulher que aparece em Ap 12 pode ser interpretada como a comunidade perseguida ou o povo de Deus. Houve, na história da interpretação deste texto, a identificação da mulher com Maria, ao relacionar Ap 12,1 com Is 7,14. Por isso, essa leitura é escolhida nesta festa da Assunção. Nos estudos atuais, porém, essa relação parece forçada, pois os outros elementos apresentados no decorrer do capítulo não encontram ressonância no texto de Isaías mencionado.

Aparece um grande sinal, que indica que algo importante deve acontecer. Esse sinal aparece no céu, ou seja, na esfera divina. Surge a mulher, que representa o povo de Deus. Essa mulher é envolvida pela presença de Deus, pela proteção divina, por sua luz (cf. Is 60,1), por sua glória (“vestida de sol”), mas ainda caminha na história humana (“lua debaixo dos pés”). A coroa com 12 estrelas nos remete às 12 tribos de Israel e aos apóstolos; portanto, pode representar a junção entre o povo da antiga e o da nova aliança, o povo de Deus em sua totalidade. Essa mulher está grávida, o que provavelmente é uma alusão ao Messias, e está ligada a Deus (simbolismo das vestes).

Aparece outro sinal, o dragão, que simboliza o mal, o caos, as trevas, a morte e é o contrário da glória, da luz que envolve a mulher. Também pode ser interpretado como satanás, ou seja, como tudo o que é hostil ao Reino de Deus. Possui poder (sete cabeças, sete diademas), mas é limitado (dez chifres). A cauda que varre as estrelas do céu pode ser tanto aqueles que se afastam do seguimento de Jesus, dado que as estrelas pode representar o povo de Deus, como o seu poder de matar. O dragão, símbolo do poder e da morte, coloca-se diante da mulher bonita, esperando devorar o Messias, que é o símbolo do serviço, da vida, mas também é aquele que tem autoridade sobre as nações, sendo apresentado como um Messias rei (cf. v. 5; Sl 2). O Filho levado para junto de Deus e de seu trono simboliza a vitória sobre a morte, a ressurreição, o triunfo da vida. A mulher levada para o deserto representa a proteção de Deus, mas também alude à experiência do êxodo e à libertação do povo opressor. Diante dessa vitória da vida e da libertação da opressão, o autor termina com um grande louvor a Deus por sua salvação e anuncia a sua soberania e a realeza de Cristo (cf. v. 10).

2. Evangelho: Lc 1,39-56

A narrativa começa com Maria se dirigindo apressadamente à casa de Isabel, num povoado da Judeia.

O encontro das duas mulheres grávidas prefigura a relação estreita entre os filhos que carregam: Jesus e João, o Messias e seu precursor. A saudação de Maria faz João pular de alegria no ventre da mãe. Com este sinal, e ao receber o Espírito Santo, Isabel torna-se capaz de compreender e de interpretar o significado daquilo que está ocorrendo. Sente-se privilegiada e compreende profundamente a graça de Deus, presente nesse encontro, pois intui que aquela que tem diante de si é a mãe do Messias. De fato, Maria carrega o Santo em seu ventre, aquele que é a fonte de todas as bênçãos, e traz a alegria prometida para os tempos messiânicos. Ela é, portanto, a portadora da presença salvífica dentro da casa do casal Zacarias e Isabel e para toda a humanidade.

A resposta de Isabel à saudação de Maria é composta de várias frases do AT. A primeira frase nos remete a Jt 13,17-20 e a segunda pode nos remeter à expressão de Davi diante da arca da aliança em 2Sm 6,9 ou 2Sm 24,21. Ao considerar a segunda frase e 2Sm 6,9, podemos afirmar que Isabel a vê como a arca santa que carrega a misteriosa presença do Senhor em seu seio. Apesar de ser uma interpretação sugestiva, alguns estudiosos a criticam porque a arca é levada por Davi pelo seu poder de matar. Outra possibilidade de interpretação é considerar o texto de 2Sm 24,21, em que Davi compra o terreno de Areúna, que será depois o local do Templo de Jerusalém, e então ver Jesus como o lugar da presença de Deus. Assim, Maria é bendita, porque carrega em seu seio aquele que é Bendito, o seu Senhor, mas também porque é fiel e porque acredita e acolhe a Palavra de Deus (cf. Dt 28,1.4). Ao mesmo tempo, Maria confirma a eficácia da palavra do anjo Gabriel (cf. Lc 1,26-38).

A bem-aventurança destinada a Maria (cf. v. 45) é também destinada a todos os cristãos, que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática (cf. Lc 8,21; 11,27-28).

O Magnificat é um canto de agradecimento pelo agir salvífico de Deus na história de Israel, tendo seu ápice no envio do seu Filho, Jesus Cristo.

O canto inicia-se com a proclamação da grandeza do Senhor, ao sintetizar as maravilhas que ele realizou em Maria e a misericórdia divina, que abarca toda a história, todo o tempo (sempre) e toda a humanidade (de geração em geração).

No v. 47, Deus é nomeado como o Salvador. Esse título, no Antigo Testamento, está relacionado com as ações realizadas por ele na história, sobretudo quando liberta o seu povo (cf. Is 45,15.21) e na criação. No período pós-exílico, foi vinculado à era messiânica (cf. Is 45,17; 49,6; 62,1). No Evangelho segundo Lucas, refere-se à realização das promessas feitas no AT por meio de Jesus Cristo (cf. Lc 2,11).

Maria, no v. 48, apresenta o motivo do seu louvor a Deus: o olhar deste para a sua humildade. Essa expressão nos remete à anunciação (cf. Lc 1,38) e reafirma a atitude dessa mulher, totalmente disponível ao dom de Deus. Maria é a representante tanto dos pobres do Senhor, aqueles que depositam a sua confiança em Deus, por acreditarem na sua gratuidade, como de Israel, resgatado por Deus ao enviar o Messias, manifestando a sua potência e misericórdia.

No Evangelho segundo Lucas, Maria é “bem-aventurada” por causa da maternidade (cf. Lc 1,42; 11,27; Gn 30,13), por acreditar na Palavra de Deus e praticá-la (cf. Lc 1,45; 11,28) e por fazer experiência e participar da instauração do Reinado iniciado com Jesus (cf. Lc 6,20-23; Sl 72,17 e Ml 3,12). Esses elementos também estão presentes na expressão “fez por mim grandes coisas”, no v. 49 (cf. Lc 1,35.37).

O cerne do canto encontra-se nas expressões “misericórdia de Deus” e “santo é o seu nome”. O termo “nome” indica a presença de Deus, que se volta ao ser humano, como acontece na revelação a Moisés (cf. Ex 3,13-15), e está relacionado com a benevolência e a potência divina manifestadas na libertação de Israel. Por sua vez, “santo”, um atributo divino, indica o agir de Deus de forma prodigiosa e com potência contra os inimigos, bem como seu agir misericordioso (cf. Is 41,8-20; Sl 99).

A palavra “misericórdia” pode ser traduzida também por “bondade” ou “fidelidade”; ela perpassa toda a história da salvação e se revela em Jesus Cristo.

Nos vv. 51-53, temos três categorias, vistas de forma negativa: os soberbos, os poderosos e os ricos. Para o evangelista, os soberbos são aqueles que não têm justa relação com Deus: não reconhecem seus pecados, não aceitam a soberania divina nem se abandonam totalmente à graça. A arrogância está enraizada na sede da vida intelectual, emocional e da vontade (cf. v. 51 e a palavra “coração”). Eles são incapazes de reconhecer Deus como Criador e Senhor.

Os poderosos são aqueles que possuem autoridade política e econômica. No terceiro evangelho, são os que se comportam inadequadamente na relação com o outro, explorando-o e dominando-o (cf. Lc 22,25-26). Por isso, contrapõem-se aos humildes, que estão totalmente a serviço do outro.

Os ricos, embora constituam uma categoria do campo social, são aqueles que desenvolvem uma relação imprópria com os bens (cf. Lc 12,16-21; 16,13).

Essas três categorias de pessoas são vistas de forma negativa, porque não se abrem à misericórdia de Deus a fim de restaurar a sua aliança com ele e com os outros.

Os vv. 54-55 descrevem a relação existente entre Deus e Israel, marcada pela aliança. Tais versículos unem a misericórdia, a promessa dada aos pais, a Abraão e à sua descendência (cf. Gn 12,2-3; 18,18; 22,18; 26,4; 28,14), e recordam a Israel uma história marcada pela fidelidade de Deus. Essa história tem o seu ápice na entrega do seu Filho, que conduzirá a história à sua plenitude.No final do canto, é estabelecida uma relação entre Maria e Abraão. Do mesmo modo que, por meio da fé (cf. Rm 4,20-22), Abraão se torna o pai de todos, servo de Deus, e com ele se inicia a antiga aliança entre Deus e Israel, também por Maria – que, ao crer na promessa do anjo, se torna a fiel filha de Abraão, serva de Deus, a mãe de todos aqueles que seguem a Jesus – começa a nova e definitiva aliança entre Deus e todas as nações.

3. II leitura: 1Cor 15,20-27a

Essa passagem da primeira carta aos Coríntios está inserida na resposta de Paulo sobre as questões referentes à ressurreição dos mortos. Na comunidade de Corinto, havia pessoas provenientes da cultura grega, das religiões politeístas e dos “chamados mistérios” – práticas religiosas ligadas aos mitos gregos. Por serem recém-inseridas na comunidade cristã, carregavam algumas concepções das religiões e dos cultos que até então frequentavam, o que criava algumas dificuldades para compreenderem em que realmente consistia o seguimento de Jesus. Por isso, esses cristãos pensavam que, ao passar pelo batismo e participar da ceia do Senhor, já eram ressuscitados, e assim não existiria ressurreição após a morte, mas após o batismo. Paulo afirma que existe ressurreição dos mortos e não aceitá-la é negar a ressurreição de Cristo. É importante sublinhar que a ressurreição de Cristo não é só um caso que confirma a possibilidade da ressurreição, mas o princípio dinâmico que fundamenta a ressurreição de todos os mortos. Para provar a ressurreição dos mortos, o apóstolo procura exemplos no AT e na experiência cristã, como veremos no trecho escolhido para esta liturgia.

Paulo diz que a ressurreição de Cristo é redenção e reconciliação, nos dá a certeza da remissão da infidelidade ao Deus fiel e confirma que os mortos serão ressuscitados.

O apóstolo inicia apresentando Jesus como primícias (cf. v. 20) daqueles que adormeceram (morreram). Primícias são uma imagem tirada da vida agrícola. São os primeiros frutos que amadurecem e são oferecidos em consagração a Deus, servindo como garantia de colheita posterior. Desse modo, a ressurreição é a antecipação e a garantia da nossa ressurreição. Cristo é chamado de primícias por ser o primeiro e o único a ressuscitar, dado que, para Paulo, iremos ressuscitar no fim dos tempos. Temos, porém, por meio de Cristo, a garantia de que podemos acreditar na ressurreição, pois ele venceu a morte.

Outro argumento é a contraposição entre Adão e Cristo, representando a dúplice história da humanidade. Adão é o símbolo da fragilidade humana (morte), da humanidade que se deixou corromper pelo pecado (cf. Gn 2,16; 3,17-19). Assim, temos duas concepções de morte: a morte física, que faz parte da condição humana, dado que somos criaturas e não deuses; a morte relacionada à desobediência de Adão, por desejar ser deus. A solidariedade com Adão e a morte relacionada à transgressão ocorrem nos textos da tradição judaica, que não fazem parte dos textos canônicos.

Cristo é o símbolo da vida, da nova humanidade, libertada da morte e do pecado. A ressurreição é resultado da obediência e fidelidade de Cristo e é agora a meta final da humanidade. Com isso, Jesus inaugura novo tempo, o tempo messiânico. Num cenário apocalíptico (cf. vv. 23-24), Paulo apresenta a ordem da ressurreição e dos eventos escatológicos: 1) a ressurreição de Cristo; 2) a ressurreição daqueles que são de Cristo, ou seja, dos fiéis solidários com o seu destino, que morreram até o evento da parusia. A ressurreição dos fiéis, portanto, está ligada à parusia (a vinda definitiva de Cristo, no fim dos tempos), quando ocorrerá a salvação definitiva. Por fim, o Filho entregará o Reino a Deus Pai. Assim, teremos a soberania divina sobre todo o mundo criado, a vitória definitiva sobre todas as potências hostis, sobre todo o mal, sobre tudo que se opõe ao Reino de Deus (cf. v. 26). O significado do senhorio de Cristo é explicitado mediante dois salmos, Sl 110,1 e Sl 8,9. No Sl 110,1, o Senhor convida o rei messias para sentar-se à sua direita até que ele coloque todos os seus inimigos como escabelo dos seus pés. Numa releitura cristã, Cristo deve exercitar sua realeza, até o triunfo final sobre o mal. O senhorio vitorioso de Cristo é necessário porque é o cumprimento da palavra profética da Escritura. Jesus Cristo ressuscitado participa do poder de Deus, da sua realeza, do seu reinado e da sua soberania. Ele reina, porém, à direita de Deus, ou seja, com poder compartilhado, poder recebido pelo Pai. O Sl 8,7 é utilizado para exprimir a dimensão universal e cósmica do senhorio de Cristo. Deus é o protagonista do processo salvífico, mas este se realiza por meio de Cristo. A finalidade de todo processo é a absoluta soberania de Deus.

III. Pistas para reflexão

As três leituras da solenidade da Assunção de Maria trazem como tema central a vitória da vida sobre a morte, pois acreditamos que nosso Deus é o Deus da vida. Diante do canto de Maria, podemos nesta festa nos perguntar: como Maria apresenta Deus no Magnificat? Qual é a imagem de Maria apresentada nesse canto de louvor? Como é o agir de Deus em nossa vida? Como ele age e se manifesta hoje? Se escrevêssemos um canto de agradecimento relacionado à nossa história, à história do nosso povo, de nossa comunidade, o que diríamos de Deus? Quais acontecimentos destacaríamos? Quais esperanças os textos do Apocalipse e de 1 Coríntios trazem para a nossa realidade social, política, eclesial e comunitária? Ao ter como modelo Maria, como ser sinal profético em nossa sociedade?

Zuleica Aparecida Silvano

Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte. E-mail: [email protected]