Roteiros homiléticos

Publicado em janeiro-fevereiro de 2021 - ano 62 - número 337 - pág.: 41-45

BATISMO DO SENHOR – 10 de janeiro

Por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj

Jesus de Nazaré foi ungido por Deus

I. INTRODUÇÃO GERAL A festa do Batismo do Senhor marca o fim do tempo do Natal e o início do Tempo Comum no ciclo litúrgico. As liturgias do Tempo Comum nos lembram as implicações contínuas do nosso batismo: aquele momento em que Deus nos ungiu com seu Espírito e nos autorizou e enviou para continuar a missão de Jesus. A celebração do Batismo do Senhor é um momento ímpar, em que seremos novamente convocados por Deus, ungidos pelo Espírito Santo, declarados filhos amados dele e enviados a ser luz do mundo, para efetivar a justiça, curar os feridos da alma e ajudar a evitar que as luzes tremeluzentes da esperança se apaguem. II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. Evangelho (Mc 1,7-11) As pessoas se aglomeravam para ouvir João Batista, mas ele redirecionou o foco das atenções para outra pessoa, que – embora seja, no relato, um desconhecido da multidão – os leitores do Evangelho sabem que é Jesus. João o identifica como alguém “mais forte”, alguém com uma missão mais importante do que a sua. O precursor reforça isso mediante a afirmação de que não é digno de “desamarrar-lhe a correia das sandálias”, significando que a distância entre ele e Jesus era maior do que a distância entre um senhor e seu escravo. Essas palavras devem ter deixado a multidão atônita. Quem poderia, naquele momento, ter uma missão e um carisma maiores que os de João? Nenhum profeta tinha sido enviado ao povo de Israel por mais de três séculos, até que João veio preparar aquela geração para a vinda do Messias. O povo não poderia pensar em ninguém que fosse maior que João. Obviamente todos esperavam o Messias, mas este seria um descendente de Davi, um novo rei, e jamais um rei seria maior que um profeta. Os profetas eram aqueles que enfrentavam os reis quando estes se desviavam de Deus. Portanto, o povo ficou em dúvida a respeito desse alguém “maior”. As comparações continuam e destacam as diferenças entre dois batismos: o praticado por João e um batismo futuro, a ser realizado pelo “mais forte”. O primeiro é em água, o novo batismo será no Espírito Santo. Isso era algo surpreendente, porque, após séculos de história sem profetas, ou seja, sem derramamento do Espírito, João estava anunciando que aqueles penitentes seriam batizados no Espírito Santo. Ao ouvir essas palavras, o povo se recordou do livro do profeta Isaías, no qual se afirma que, durante o êxodo, Deus havia enviado seu Espírito aos hebreus (Is 63,11). Recordou-se também do anúncio profético de que ocorreria um segundo êxodo, como um tempo no qual haveria novo derramamento do Espírito (Is 32,15; 44,3). As palavras do Batista indicavam que havia chegado esse tempo anunciado pelas profecias. E aquele que João tinha descrito como “o maior” seria o doador do Espírito Santo, mediante novo tipo de batismo. O Evangelho de Marcos continua esse tema com novo relato, que se inicia com a frase:  “aconteceu naqueles dias” (v. 9a). Essas palavras servem de transição, afirmando que já chegou “aquele que estava por vir”, aquele que foi indicado como “o maior”. Então Jesus faz sua entrada na narrativa. Não uma entrada triunfal, como se esperava do rei Messias. Seu surgimento não foi na capital, Jerusalém. Essa cidade era o local onde se encontrava o templo e, portanto, estava associada à presença de Deus. Além disso, era a cidade do grande rei Davi, e ali o rei Messias deveria se manifestar. No entanto, Jesus vem de Nazaré. A menção ao lugar de sua origem é um escândalo para aquela época. Nazaré era uma vila insignificante, e a região onde se encontrava, a Galileia, era famosa como local com grande concentração de rebeldes e onde a religião não era vivida de forma ortodoxa, pois o contato com pagãos havia favorecido o sincretismo. Naquele tempo, informar que Jesus vinha de Nazaré da Galileia não indicava que tivesse boa reputação. João, ao contrário, desenvolvia sua atividade na região da Judeia, não muito distante de Jerusalém. E Jesus foi “foi batizado por João no rio Jordão”. Tudo isso levava a crer que João era mais importante que Jesus. Jesus não veio para tomar o poder político; seu batismo no Jordão é uma profecia sobre o que acontecerá no final do Evangelho. Ele assume nossa condição de pecadores para nos libertar do pecado e nos fazer filhos de Deus. Seu batismo no Jordão é uma prefiguração de sua morte. Após o batismo, o Espírito Santo realiza a unção messiânica sobre Jesus. Assim, ele pode dar início à sua missão de resgatar os pecadores. Jesus e o Espírito Santo estiveram juntos para realizar essa missão. Por isso, no final de sua missão, Jesus pôde batizar a todos com o Espírito Santo. O texto afirma que Jesus “viu os céus abertos”. Para compreendermos essa expressão, devemos nos reportar a uma oração que está no livro do profeta Isaías. O autor roga a Deus que rasgue os céus e desça (Is 64,1). Essa oração pede a Deus que rompa a distância e se aproxime da humanidade. Desta forma, o evangelista claramente pretende indicar que, no batismo de Jesus, Deus responde à oração do livro de Isaías. O evangelista também afirma que o Espírito desceu sobre Jesus como pomba. O Espírito não é uma pomba. Ele é invisível como o vento e pode ser representado por vários símbolos. A menção à presença do Espírito “como uma pomba” pretende simplesmente nos ajudar a visualizar sua descida, já que o ponto principal desse trecho do Evangelho de Marcos é a afirmação de que o Espírito Santo ungiu Jesus para a missão messiânica. Por fim, Deus confirma a identidade de Jesus como Filho amado de Deus, cuja fidelidade agrada ao Pai. “Tu és meu Filho amado”; “tu és minha filha amada.” Da mesma forma que Jesus assumiu nossa condição de pecadores, nós, agora, por sua ressurreição, assumimos sua condição de Filho; agora participamos de sua condição divina, como ele participou de nossa condição humana. 2. I leitura (Is 42,1-4.6-7) No final do exílio, Deus chamou os judeus para serem seus servos e lhes deu uma missão inesperada. Era o tempo em que os judeus tiveram permissão do rei persa para voltar à Terra Prometida e reconstruir sua nação. O profeta interpretou esse acontecimento à luz do fim dos tempos, como se Deus estivesse acabando o mundo e o recriando a partir do retorno dos judeus para sua terra. O profeta descreveu a relação de Israel com o Senhor com ênfase na atribuição de uma missão ao servo. O Senhor escolhe o servo, apoia-o, agrada-se dele e lhe dá o Espírito Santo. A missão do servo, o que ele deve realizar, é estabelecer a justiça na terra, abrir os olhos dos cegos, libertar os prisioneiros e os que estão nas trevas. O servo não deve gritar, não pode quebrar a cana rachada ou apagar o pavio fumegante – imagens de gentileza, compreensão e paciência nas relações do servo com aqueles a quem for enviado. Com efeito, sua missão vai além do povo de Israel, é muito mais ampla. Ele é enviado a “países distantes”, como “luz para as nações”. Então, Israel estava sendo desafiado a sair de si mesmo e se tornar instrumento de Deus em uma missão junto a outros povos. Trata-se da consequência lógica das descobertas ocorridas durante o exílio, a saber: como o Senhor de Israel é o único Deus, deveria então ser conhecido de todas as pessoas, de todos os povos que ainda estavam adorando ídolos, e os exilados seriam as únicas pessoas qualificadas para mostrar essa verdade aos pagãos. Na mente do autor original, o servo provavelmente era um símbolo do povo de Israel ou de um remanescente fiel em meio ao povo. Às vezes, porém, o servo é descrito como um profeta cujo sofrimento traria benefícios para o povo. E ainda como uma figura misteriosa, que falava em primeira pessoa e a quem Deus se dirigia. Os Evangelhos mostram claramente que tanto Jesus quanto a Igreja primitiva viam aspectos da vida e missão de Jesus prefigurados nos cânticos do servo do livro de Isaías. Também podemos atualizar este texto para nossa vida: “Eis o meu servo, meu eleito, sobre o qual coloquei meu Espírito. Ele não levanta a voz. Não quebra a cana rachada nem apaga o pavio que ainda fumega. Não esmorecerá nem se deixará abater. Eu, o Senhor, te chamei e te tomei pela mão; eu te formei e te constituí como luz das nações”. 3. II leitura (At 10,34-38) Em visões separadas, Deus chamou Pedro, o apóstolo judeu-cristão, e Cornélio, o centurião romano, para se encontrarem. Trata-se de encontro sem precedentes, porque os judeus tinham muito preconceito contra os demais povos, que eram politeístas e famosos por seu comportamento liberal em relação a questões morais. Outro agravante é que o Império Romano era uma potência política que havia conquistado o mundo daquela época e dominava os povos com violência e opressão, tendo os centuriões a tarefa de coagir as massas para evitar lutas pela libertação nacional. Não sendo diferente dos demais judeus, Pedro provavelmente detestava Roma e os centuriões. O texto bíblico destaca que tanto Pedro, escolhido por Jesus para a primazia na comunidade cristã, quanto Cornélio, o centurião pagão, receberam uma mensagem de Deus por meio de visões sobrenaturais simultâneas, que os preparavam para o encontro. O encontro entre ambos tornou-se um fato marcante para a Igreja, porque, a partir dele, Deus revelou que a comunidade cristã deveria ser constituída de todos os tipos de pessoas. Esse acontecimento, porém, só foi possível porque Pedro se tornou dócil à voz de Deus. Foi o relacionamento com Jesus, desde o início do ministério público na Galileia até sua ressurreição, que fez Pedro perceber, na oração e na prática, que deveria renunciar aos próprios preconceitos com relação aos pagãos e aos chefes do exército romano. O Evangelho anunciado por Pedro a Cornélio é a vida de Jesus, essa é a boa notícia. Sem uma experiência pessoal de amizade com Jesus, é impossível anunciar o Evangelho. Quando não há essa experiência, anunciamos nossas próprias ideias, não a boa notícia do Reino de Deus. Para Pedro, a grande revelação foi que Deus não mostra parcialidade em relação às pessoas. Todos são bem-vindos à comunidade cristã, todos devem receber o Evangelho, e os seguidores de Jesus devem romper com suas ideias preconcebidas a respeito dos outros e constituir uma Igreja em saída, sendo luz para as nações. III. PISTAS PARA REFLEXÃO Quando celebramos a festa do Batismo do Senhor, também celebramos nossa própria identidade de filhos de Deus, ungidos pelo Espírito Santo e enviados em missão a todas as nações como luz do mundo. O que aconteceu com Jesus acontece conosco. Ele assumiu nossa condição de pecadores para que nos tornássemos filhos no Filho. Somos continuadores da missão de Cristo, até que ele venha. Tornamo-nos e somos filhos e filhas amados do Pai. Isso é o que o sacramento do batismo faz em nós, e é isso que devemos experimentar em nossa vida. Tal compreensão não significa que Deus não ame todas as pessoas, que não seja Pai de quem não foi batizado – ele é Pai de todos e ama a todos. É isso que vemos na segunda leitura. No batismo, todavia, assumimos nossa filiação e recebemos o Espírito Santo, que nos capacita para vivermos como filhos muito amados do Pai dentro da comunidade dos eleitos. Somos filhos amados de Deus por causa de Jesus, e o Espírito Santo nos capacita para vivermos como Cristo viveu. Isso significa entrar em um processo de conversão, no qual, a exemplo de Pedro, vamos renunciando a tudo que nos afasta do modo como Jesus viveu. A vida de Cristo é o padrão da nossa vida e missão. A vida de Cristo é a Boa Notícia, o Evangelho.

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj

graduada em Filosofia e em Teologia, cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje (MG). Atualmente, leciona na pós-graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco – Unicap. E-mail: [email protected]