Roteiros homiléticos

Publicado em janeiro – fevereiro de 2020 - ano 61 - número 331 - pág.: 44-47

BATISMO DO SENHOR – 12 de janeiro

Por Francisco Cornélio Freire Rodrigues

Jesus de Nazaré, ungido por Deus para fazer o bem

I. Introdução geral

Com a festa do Batismo de Jesus, que conclui o tempo do Natal, a Igreja celebra mais uma epifania, mais uma manifestação de Deus, desta vez apresentando Jesus como o Filho amado, enviado para salvar a humanidade e, assim, reconciliar a criação inteira com seu Criador. O batismo de Jesus é o momento inaugural do seu ministério messiânico. Ele não necessitava passar por esse rito, pois não tinha pecado, e João pregava um “batismo de conversão”, destinado aos pecadores. Jesus submeteu-se ao batismo em solidariedade à humanidade pecadora, como fez no cumprimento de toda a Lei.

A ênfase desta liturgia é a apresentação de Jesus como o enviado de Deus para realizar seu projeto de salvação. A primeira leitura apresenta a figura do “Servo do Senhor”, eleito e enviado por Deus para promover a justiça no mundo. Sustentado pela força do Espírito, esse Servo cumprirá sua missão com fidelidade, rejeitando toda forma de violência e voltando-se para os mais necessitados: cegos, encarcerados e oprimidos em geral. A missão do Servo prefigura a missão de Jesus, aquele que é mais que servo, pois é o “Filho amado”, no qual o Pai pôs todo o seu agrado e confiança, como mostra o evangelho. A segunda leitura é uma síntese da missão de Jesus, iniciada depois do batismo: ungido com o Espírito Santo, ele fez somente o bem por onde passou, libertando os oprimidos e vencendo todo tipo de mal.

Ao recordar e celebrar o batismo de Jesus, recordamos também nosso próprio batismo, mediante o qual somos chamados a continuar a missão de Jesus no mundo, fazendo o bem como ele fez e praticando a justiça que agrada a Deus.

II. Comentários dos textos bíblicos

1. I leitura: Is 42,1-4.6-7

A segunda parte do livro de Isaías, chamada de “Livro da consolação” (Is 40-55), é obra de um profeta anônimo, denominado “Segundo Isaías”, que exerceu seu ministério na Babilônia, no final do exílio. A primeira leitura deste dia é retirada dessa obra, especificamente do trecho que corresponde ao primeiro dos quatro cânticos do “Servo do Senhor”.

O texto apresenta, antes de tudo, a iniciativa de Deus: é ele quem escolhe, chama, envia seu Servo para realizar seu projeto de salvação no mundo, começando pela implantação da justiça, e o torna luz das nações (cf. vv. 1.6). Julgar as nações, aqui, não significa condená-las, mas oferecer-lhes a justiça de Deus, até então conhecida somente por Israel e agora manifestada também a todos os povos. A maneira de o Servo estabelecer a justiça no mundo é descrita nas formas negativa e afirmativa (cf. vv. 2-4). Ao descrever a missão do Servo, o profeta está também denunciando as práticas abusivas de todos os sistemas de dominação que fazem uso da força e da violência.

O Servo do Senhor é um agente de paz: não se impõe pelo grito (cf. v. 2) e não usa a força sequer para “quebrar uma cana rachada, nem para apagar um pavio que ainda fumega” (v. 3), expressão que significa a mansidão. Por meio da missão do seu Servo, Deus quer instaurar nova ordem no mundo, marcada pela justiça, solidariedade e amor. Os destinatários primeiros da missão do Servo são os mais necessitados, representados pelas figuras dos cegos e encarcerados (cf. v. 7), como síntese dos preferidos de Deus em todas as épocas. Sustentado pelo Espírito e pelo poder de Deus (cf. vv. 1.6), o Servo cumprirá sua missão com perseverança e fidelidade, até que toda a humanidade conheça a justiça e a verdade divinas (cf. v. 3-4).

A identidade do Servo é misteriosa; provavelmente é a figura do próprio Israel personificado, especificamente o resto do povo que sobreviveu ao exílio e se manteve fiel à aliança com Deus. Os primeiros cristãos identificaram o Servo da profecia com Jesus, o Filho amado de Deus.

2. II leitura: At 10,34-38

A segunda leitura é um trecho do discurso de Pedro na casa de Cornélio, o primeiro pagão aceito oficialmente no cristianismo sem passar pelo rito judaico da circuncisão, junto com toda a sua família. O discurso começa com uma declaração solene de Pedro, mostrando que ele compreendeu que a proposta de salvação de Deus realizada por Jesus é destinada a todas as pessoas, sem distinção de raça, cultura e religião (cf. vv. 34-35).

A conclusão de Pedro de que Deus não faz distinção de pessoas (cf. v. 34) é fruto de reflexão pessoal e de revelação divina (cf. At 10,9ss). A única exigência para alguém tornar-se agradável a Deus é o temor e a prática da justiça (cf. v. 35). Temor a Deus não é medo, mas o reconhecimento da sua soberania; é a aceitação de que somente no seu Reino o ser humano encontra vida em plenitude e esse Reino começa já na terra. Praticar a justiça é fazer a vontade de Deus, e esta consiste em gestos concretos de solidariedade em favor dos mais necessitados. Deus se agrada, portanto, de quem faz o bem, independentemente da religião ou da cultura às quais pertença.

Da declaração sobre a imparcialidade de Deus, Pedro passa ao anúncio do querigma, apresentando Jesus Cristo como o Senhor de todos os povos, embora Israel tenha sido o primeiro destinatário da sua Boa-Nova (cf. v. 36); em seguida, ele faz uma retrospectiva, realizando a mais completa síntese da vida de Jesus em todo o Novo Testamento (cf. At 37-42), embora a leitura  contemple apenas os primeiros versículos dessa síntese (cf. vv. 37-38). O batismo foi o ponto de partida do ministério de Jesus (cf. v. 37); ungido por Deus com o Espírito Santo, sua vida foi marcada pela prática do bem, libertando e curando quem padecia dos mais diversos males, incluindo as doenças, os preconceitos e todas as formas de ameaça à vida digna e plena (cf. v. 38).

A prática do bem foi a principal característica do ministério salvífico de Jesus; os pobres e marginalizados foram seus principais destinatários. Todos os batizados e batizadas recebem a missão de conformar-se a ele e, por isso, também devem fazer somente o bem.

3. Evangelho: Mt 3,13-17

O batismo marca a conclusão da vida oculta de Jesus em Nazaré e o início da sua vida pública. É um evento narrado pelos três evangelhos sinóticos (cf. Mt 13,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22), o que atesta sua importância. A versão de Mateus, lida nesta liturgia, é, sem dúvida, a mais rica, como veremos a seguir. Além de ser o marco inaugural do ministério de Jesus, o batismo é um evento salvífico e programático. Nesta cena tão curta, o evangelista revela a identidade de Jesus e antecipa as principais diretrizes da sua missão.

Ao dizer que Jesus foi da Galileia para o Jordão a fim de ser batizado (cf. v. 13), o evangelista não pensa apenas num movimento físico, mas na essência da missão do Messias. Ora, o batismo de João era destinado aos pecadores, e Jesus não tinha pecado. Indo ao encontro de João para ser batizado, Jesus está sendo solidário com os pecadores de todos os tempos e antecipando quais serão os destinatários primeiros da sua missão: os pecadores, as pessoas mais necessitadas e marginalizadas, sobretudo pela religião.

Mateus é o único evangelista que relata o diálogo entre João e Jesus no momento do batismo (cf. vv. 14-15), e isso imprime uma riqueza ímpar à sua obra. Nesse diálogo, cada um reconhece a vocação e a missão do outro, e ambos se sentem inseridos num mesmo projeto de salvação. O protesto de João é o reconhecimento de que Jesus não tinha pecados e de que é ele o autor do verdadeiro batismo (cf. v. 14). As palavras de Jesus, suas primeiras no Evangelho de Mateus, contêm a síntese programática da sua missão: o verbo “cumprir” e o substantivo “justiça” (v. 15). Essas duas palavras sintetizam o projeto de salvação de Deus que Jesus veio realizar. “Cumprir” não significa simplesmente executar ações, mas levar à plenitude, fazendo bem-feito; “justiça”, biblicamente, é a conformidade à vontade de Deus, levando sempre em consideração sua predileção pelos pobres e marginalizados.

A abertura do céu e a descida do Espírito Santo pousando sobre Jesus (cf. v. 16) significam a comunhão plena entre o divino e o humano que o Cristo veio realizar; é a reconciliação entre o céu e a terra, ou seja, entre Deus e a humanidade pecadora. A voz do Pai que ressoa do céu é a confirmação disso (cf. v. 17). O Pai pôs seu agrado no Filho porque sabe que este realiza plenamente sua vontade. Toda a vida de Jesus foi caracterizada pela solidariedade e pelo amor, sobretudo para com os pecadores, e é nisso que consiste o cumprimento da justiça e da vontade do Pai.

III. Pistas para reflexão

Destacar a unidade entre as leituras: o projeto de salvação confiado ao Servo de Deus para fazer a justiça chegar a todos os povos (I leitura) é plenamente realizado pelo Filho amado, que veio ao mundo para “cumprir toda a justiça” (evangelho). Jesus cumpriu toda a justiça, para o agrado do Pai, porque fez somente o bem por onde passou, promovendo sobretudo libertação e vida em abundância em favor dos mais necessitados (II leitura).

Recordar que a missão de todos os batizados é continuar a missão de Jesus, ou seja, fazer o bem e combater todos os tipos de preconceitos, já que Deus não faz distinção de pessoas.

Francisco Cornélio Freire Rodrigues

é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).