Roteiros homiléticos

CRISTO, REI DO UNIVERSO – 24 de novembro

Por Zuleica Aparecida Silvano

“Senhor, lembra-te de mim, quando entrares em teu reinado” (Lc 23,42)

I. Introdução geral

Hoje celebramos a solenidade de Cristo Rei do Universo e o último domingo do ano litúrgico. A I leitura nos narra a unificação do Reino de Israel por meio de Davi, e as características do líder que cumpre a vontade de Deus. No evangelho, contemplamos a realeza de Cristo, a qual se revela na fidelidade de Jesus ao Reino do Pai e na sua total doação na cruz. Sua realeza unifica toda a humanidade, alcançando a salvação para todos. Essa unidade é sintetizada no hino cristológico de Cl 1,12-20, ao apresentar Cristo como o princípio unificador da criação, como o reconciliador, como o Senhor da Igreja; enfim, como a plenitude da revelação e da soberania de Deus.

II. Comentários dos textos bíblicos

1. I leitura: 2Sm 5,1-3

Depois da morte de Saul, Davi é ungido rei sobre Judá (Reino do Sul), residindo em Hebron (cf. 2Sm 2,1-4). O texto escolhido para a liturgia deste domingo, 2Sm 5,1-3, narra a unção de Davi como rei e o reconhecimento de seu reinado sobre as tribos de Israel (Reino do Norte). Esse é um dos acontecimentos fundamentais da história de Israel, pois, com essa unção, temos o cumprimento da promessa da unificação de todo o povo (cf. 1Sm 16,1.13).

O texto se inicia dizendo que o povo do Reino do Norte se apresentou a Davi para expressar o desejo de se unir a ele. No diálogo entre as tribos de Israel e Davi, são delineadas as características fundamentais do verdadeiro líder. A primeira característica consiste em saber liderar o povo e ajudá-lo a libertar-se de seus sofrimentos ou de alguma situação de opressão. Nesse sentido, o rei é aquele que julga com justiça (cf. Ez 34,17.20.22) e luta pelos anseios do povo. O segundo aspecto presente no texto é que o rei deve apascentar. O verbo “apascentar”, “pastorear”, e o substantivo “pastor” são carregados de significados no Antigo Testamento. Esse verbo geralmente é utilizado para designar os dirigentes do povo, o rei ideal (cf. Jr 23,18), o futuro rei messiânico (cf. Sl 78; Ez 37,24) ou o próprio Deus (cf. Sl 23,1; Is 40,11; Jr 31,9). Também é utilizado em Ez 34 para denunciar os falsos pastores. A primeira característica do pastor, na literatura bíblica, é “guiar”, “conduzir” o povo ao bom caminho (cf. Eclo 18,13), para que possa suprir suas necessidades. Nessa perspectiva, temos a segunda função do “pastor” ou do líder, que é prover o necessário para a vida do rebanho (cf. Sl 23; Is 14,30; 49,9-10; Sf 3,13) e reuni-lo. Isso indica que não somente Deus provê e reúne, mas também os dirigentes, a fim de cuidar do seu rebanho. Portanto, o rei é aquele que não só se preocupa com a realidade do povo (cf. Ez 34) – tendo, porém, a consciência de que o povo não lhe pertence (cf. v. 2b), mas pertence a Deus –, como também sabe delegar, partilhando seu poder com as outras lideranças (cf. v. 3).

2. Evangelho: Lc 23,35-43

Em Lc 23,35-43 há a narrativa da crucificação, a reação dos chefes e dos soldados e o diálogo de Jesus com os malfeitores crucificados com ele (vv. 39-43). Em Lc 23,35, o autor apresenta os chefes, que, apesar de reconhecerem o poder de Jesus como taumaturgo (“a outros salvou”, v. 35), zombam dele, por não compreenderem o verdadeiro sentido de suas ações salvíficas e sua fidelidade ao projeto do Pai, a qual se manifesta justamente na opção por não salvar a si mesmo.

 Os soldados também caçoam de Jesus, sobretudo do seu título de rei e do seu messianismo, por entenderem como rei e Messias aquele que tem poder de realizar ações em benefício de si mesmo, para satisfazer os próprios interesses. Esse modo de pensar é diferente do conceito e da postura de rei, adotados por Jesus. O verdadeiro Messias, rei de Israel, entende-se como aquele que entrega a vida em favor das pessoas. Este é o verdadeiro significado da festa que recordamos nesta liturgia: Cristo Rei do Universo é aquele que doa a vida e, com sua vida doada, unifica toda a humanidade.

Após a reação dos chefes e dos soldados, temos o diálogo com os malfeitores que sofrem a mesma condenação de Jesus, a crucificação. O primeiro malfeitor repete o escárnio dos chefes, pondo em dúvida o messianismo de Jesus. O segundo inicia sua fala apresentando a necessidade de temer a Deus e compreender a manifestação divina naquele que está sendo crucificado com eles, pois este é o verdadeiro enviado de Deus, o seu Filho, o Messias. Nesse diálogo, o segundo malfeitor declara a inocência de Jesus e reconhece sua realeza, desprezada pelos chefes e soldados. Trata-se de realeza que não segue os moldes dos grandes impérios – os quais massacram o povo para fazer prevalecer os próprios interesses –, mas se revela na salvação da humanidade. Essa salvação não consiste numa intervenção espetacular, mas na manifestação de poder mediante a total doação da própria vida, na entrega em favor dos irmãos. É com base nessa compreensão que o segundo malfeitor professa a fé na ressurreição e no triunfo do Reinado de Deus, ao pedir que Jesus se recorde dele quando entrar no seu Reinado. É também o momento de reafirmar a fidelidade de Deus em cumprir as promessas e manter a aliança estabelecida com o povo (cf. Lc 1,72). Tal malfeitor esperava uma salvação futura, no fim dos tempos, mas Jesus lhe garante que a salvação já está presente. Desse modo, o chamado “bom ladrão” se apresenta como o protótipo daquele que percebe que, com Jesus, se inaugura a manifestação do Reinado, da soberania de Deus. Por isso, o estar com Jesus “hoje no paraíso” não pode ser interpretado como algo futuro, como a ressurreição no fim dos tempos, mas o paraíso é o reconhecimento do Reino inaugurado na encarnação de Jesus (cf. Lc 2,22), no seu ministério público, por meio de suas palavras e gestos (cf. Lc 4,21). O paraíso significa, portanto, essa comunhão com o projeto de Cristo (“estarás comigo”, v. 43). O texto também reafirma que a salvação é dada a todos, basta acolhê-la.

Ao concluir, podemos dizer que o segundo malfeitor declara a vitória sobre a morte, pois, ao contemplar Jesus crucificado, professa a fé no triunfo da vida e na soberania divina.

3. II leitura: Cl 1,12-20

A carta aos Colossenses foi escrita por algum discípulo de Paulo, sendo considerada, portanto, deuteropaulina. Colossas era uma pequena cidade na Ásia Menor. Na comunidade, formada praticamente por pessoas provenientes das religiões pagãs e da cultura judaica, prosperavam algumas concepções não condizentes com o seguimento de Jesus. Uma delas é que Jesus seria inferior aos anjos, pois os anjos sempre permaneceram diante do trono de Deus, enquanto Jesus assumiu a condição humana. Eles também acreditavam que os anjos e as forças cósmicas tinham um papel fundamental no destino das pessoas. Por isso, era necessário realizar várias práticas religiosas, como a observância das leis relativas aos alimentos, jejum, práticas ascéticas, para garantir a benevolência desses seres considerados celestes.

O hino descrito em Cl 1,12-20 provavelmente provém da liturgia batismal. No contexto da comunidade de Colossas, ele ilumina o cristão e o ajuda a se orientar em direção ao Reinado de Deus, do qual é participante por meio do batismo.

 Podemos dividir o hino em três partes. A primeira apresenta Cristo como a imagem de Deus e como o primogênito da criação (cf. vv. 15-16). Desse modo, Cristo Jesus é o princípio unificador da realidade cósmica com a humana. É ele que unifica toda a obra de Deus, pois é o mediador da criação, o reconciliador e salvador. O autor, portanto, afirma que Cristo é a plenitude do divino e do humano, e todos os chamados seres intermediários entre Deus e a humanidade (tronos, dominações, soberanias, poderes, anjos) submetem-se ao seu poder. Assim, a salvação é obtida por meio da fé em Jesus Cristo, pois ele é o centro da criação, o fundamento da história da salvação, a revelação do Deus invisível, o primogênito da criação. A segunda parte confirma a soberania de Cristo sobre todas as criaturas (cf. vv. 17-18a). Também indica que ele é o Senhor da Igreja e esta se encontra sob sua autoridade. Na terceira parte, o autor declara que Cristo é o primogênito dos mortos, pois foi o primeiro a ressuscitar e é o fundamento da ressurreição. Enfim, Cristo é o lugar no qual a plenitude de Deus se manifesta, é a plenitude da revelação divina e o princípio vital que gera a vida nova entre os cristãos. Assim, a vida e o destino dos cristãos dependem da fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, o Ressuscitado, o Messias.

III. Pistas para reflexão

Ao celebrar Cristo Rei do Universo, somos convidados a contemplar a realeza de Jesus narrada pelo evangelista Lucas, deixar-nos afetar pela forma surpreendente com que Deus mostra seu poder e ver o que essa revelação da majestade divina sugere ao nosso modo de viver como cristãos. Outros temas que perpassam as leituras, além da soberania e da majestade de Deus, são a unificação dos povos (I leitura), a reconciliação (II leitura), a experiência da misericórdia de Deus ao contemplar Jesus crucificado e a fidelidade de Jesus ao projeto do Pai (evangelho). Isso nos aponta uma das características fundamentais do Reinado de Deus: a comunhão e a certeza da vitória da vida. Considerando as várias reações das pessoas diante de Jesus crucificado, também podemos nos questionar: qual é minha concepção da realeza de Jesus? Assemelha-se à dos chefes e dos soldados – ou seja, aquela que se expressa no “salvar a si mesmo” – ou é análoga àquela manifestada na prática de Jesus, como expressão da fidelidade ao projeto do Pai? Na solenidade de Cristo Rei, o que significa testemunhar o Reinado de Deus, que se manifesta na comunhão e na reconciliação? Jesus Cristo é o Senhor da minha vida e da vida da minha comunidade?

Zuleica Aparecida Silvano

Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte.