Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2021 - ano 62 - número 338 - pág.: 50-53

DOMINGO DE RAMOS E DA PAIXÃO DO SENHOR – 28 de março

Por Marcus Mareano

Uma entrada pouco triunfante

I. INTRODUÇÃO GERAL

O final de algum evento – uma viagem, um relacionamento, uma visita, por exemplo – sempre causa um espanto pela novidade que virá e pelo que ficará do que se passou. Muito mais expectante seria o fim de uma existência plenamente vivida, como foi a de Jesus.

A celebração de Ramos nos introduz na semana final da vida humana de Jesus. A entrada em Jerusalém, centro político e religioso dos judeus daquele tempo, já representava um risco para Jesus e seus seguidores. Sua mensagem, propagada desde a Galileia, região periférica do Império, chegara à audição dos líderes religiosos que se situavam no templo. Eles procuravam uma ocasião favorável para eliminar esse mestre que arrebanhava pessoas para seu seguimento.

A liturgia se compõe também com o símbolo dos ramos. Naquele tempo, eram usados para a aclamação do Messias que vinha assumir sua posição perante seu povo. Hoje, recordamos essa entrada triunfal de Jesus para entrarmos com ele e participarmos do mistério de sua oferta de si.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Is 50,4-7)

O terceiro cântico do “servo sofredor” (Is 50,4-7) demonstra a confiança de um servo em Deus. O trecho de Isaías se dirige ao povo exilado em uma terra estrangeira, apresentando esse servo que, em meio às dificuldades sofridas até no corpo, não hesita em querer consolar, dizer uma palavra do Senhor a seus conterrâneos e oferecer-se aos escárnios alheios.

O servo resiste aos sofrimentos por meio da fé, mantém a confiança no Senhor e acredita que não será confundido (v. 7). É um representante da fidelidade à Aliança com o Deus de Israel, que instiga o povo a perseverar diante dos desafios e aguardar o socorro divino.

Assim como o povo que outrora viveu as turbulências do exílio da Babilônia e como Jesus, diante dos riscos que sofria por causa do anúncio do Evangelho, a comunidade que ouve essa palavra exercita a confiança em meio às adversidades.

2. II leitura (Fl 2,6-11)

Na segunda leitura, lê-se um antigo hino cristológico, elaborado anteriormente às narrativas da infância de Jesus, apresentando sua existência na relação com Deus.

Ele, sendo de condição divina, esvazia-se e assume nossa carne como um servo de todos e para todos, obedecendo (dando ouvidos, estando atento) a Deus até a morte (na cruz). Por conseguinte, Deus o exaltou, ressuscitando-o dentre os mortos e dando-lhe uma posição superior (um nome acima de todo nome). Por isso, todos reverenciam Jesus como Senhor, o qual desceu até nós para subirmos, por meio dele, até Deus. A oferta de amor de Jesus na cruz é respondida por Deus com sua exaltação e seu senhorio sobre a humanidade e toda a criação.

O “esvaziamento” (kenose) de Jesus até a cruz nos propõe uma via diferente da que geralmente é buscada para obter sucesso. Em vez de honrarias, status social e bens materiais, Jesus percorreu um caminho de doação, que culminou na cruz. Assim, também cada cristão pode descobrir a beleza do “esvaziamento” de si, a exemplo do Filho de Deus.

3 Evangelho (Mc 11,1-10; 15,1-39)

A narração da paixão de Jesus assume o ponto alto da liturgia da Palavra na Eucaristia deste domingo. A longa leitura nos motiva para a interioridade e o silêncio do evento e provoca em nós um sentimento próprio por ouvirmos o relato da morte de alguém, cujo sentido compreendemos pela fé.

Os discípulos subiam com seu mestre Jesus para o templo de Jerusalém, lugar de aglomeração de pessoas, por causa das peregrinações, e centro da religião judaica daquele tempo. A entrada “triunfante” acontece de maneira irônica: um jumentinho em vez de cavalo, alguns seguidores em vez de um exército, pessoas humildes em vez de poderosos destacados e ramos e hosanas para aclamar o Rei-Messias que vem (11,1-10). Um rei diferente, correspondente ao reinado por ele anunciado!

No Evangelho de Marcos, Jerusalém representa a resistência e a oposição à mensagem de Jesus. Lá, após a entrada na cidade para a Páscoa, ele sofre um processo estranho e pouco autêntico por constituir-se de um motivo religioso levado pelos membros do sinédrio, mas executado pelo poder político (Pilatos – governador) com a pena mais cruel. A propósito, o costume referido na narrativa de Mc 15,6 (soltar um preso na Páscoa) é questionável historicamente, por não ser citado nas fontes judaicas e romanas. Pilatos é recordado por Flávio Josefo, um historiador judeu do século I, como um governador muito inclemente. O povo, cúmplice no processo, prefere a anistia de Barrabás (literalmente, “filho do pai”) e a condenação de Jesus.

A humilhação sofrida por Jesus da parte dos soldados ironiza a realeza dele. Eles o vestem com um manto de púrpura, cor dos dignitários e das insígnias de realeza (1Mc 10,20; 11,58). Além das vestes, outros atos para a ridicularização são feitos: uma coroa (de espinhos), a saudação ao rei, prostração satírica e cuspes contra Jesus (15,16-20).

Em seguida, levam-no para o destino da execução, um lugar chamado Gólgota. No caminho (15,21), certo Simão, pai de membros de conhecidos da comunidade cristã (Rm 16,13; At 19,33; 1Tm 1,20; 2Tm 4,14), ajuda Jesus no carregamento da haste transversal da cruz até o lugar da crucifixão. Dão-lhe vinho com mirra, como um anestésico entorpecente, mas Jesus não aceita e sofre silenciosamente as penas da cruz desde a hora terceira (9 horas) até a hora nona (15 horas), quando exclama: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (15,34; cf. Sl 22,1). Uma profunda desolação, a ponto de sentir-se abandonado, mas confiante por clamar e ser ouvido. Jesus realiza a figura do servo sofredor, apresentada na primeira leitura, como quem confia no Pai até o fim. Um grito e a expiração final, culminando com o silêncio total (15,37).

O véu que cobria o “Santo dos santos”, lugar mais sagrado do templo, rasga-se de cima a baixo como sinal de que a separação entre Deus e o ser humano já não existe. A cruz dá acesso a Deus e revela quem é Jesus: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus” (15,39), confessa um centurião. A identidade misteriosa de Jesus se esclarece na cruz, ele é o servo sofredor que dá a própria vida como Filho de Deus. O Messias “diferente” revelado na morte de Jesus aponta para o mistério divino anunciado desde o início do Evangelho (1,1).

De um lado, a alegria da entrada triunfante em Jerusalém com a qual iniciamos as leituras; de outro, a trama do processo e do final da vida de Jesus, esvaziada de honras e privilégios e plena de amor, realização e confiança em Deus. A subida de Jesus para Jerusalém representa sua descida aos mais profundos dramas humanos: a dor, o sofrimento e a morte. Jesus encara essas realidades convicto na ação do Pai, sem recuar ou se acovardar diante dos desafios e ameaças.

As leituras nos fazem pensar na seriedade do seguimento de Jesus. Assumir seu itinerário de vida é dispor-nos para as possíveis consequências, atualizadas para a sociedade de nossos tempos, sofrendo outros processos e outras condenações, reconhecendo outras cruzes e crucificados da contemporaneidade, tantas injustiças e mortes que clamam aos céus. A fé se torna o ingrediente indispensável no processo, como foi para Jesus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

A liturgia segue recordando o desfecho da vida de Jesus e faz pensar também em nossa peregrinação existencial: para onde vamos? Quais têm sido nossas escolhas e que consequências elas têm trazido para nós e para outras pessoas?

Uma vida realizada é possível quando fitamos o essencial e ousamos olhar para além das aparências. O final da vida de Jesus demonstra o contraste entre modelos diferentes de realezas, reinos e projetos de vida. Ele opta pelo mistério do amor de Deus oculto nas coisas e pessoas, tornando esse amor visível em sua humanidade (Jo 5,20; 14,9; 1Jo 4,9-10). Portanto, quem o segue deve igualmente demonstrar esse amor (Jo 14,12; 1Jo 3,16.18), causa de uma existência e sentido de vida.

Finalmente, o Salmo 22(21), rezado na liturgia, propõe, em forma de oração, nossa entrega confiante a Deus, mesmo se não o sentimos presente. Nem sempre temos sensibilidade para a presença de Deus, porém a fé nos ajuda a acreditar em sua ação amorosa. Deus está além do que sentimos e percebemos dele.

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará. Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. Professor de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da Paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]