Roteiros homiléticos

IMACULADA CONCEIÇÃO – 8 de dezembro

Por Zuleica Aparecida Silvano

“Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra” (Lc 1,38)

I. INTRODUÇÃO GERAL

            Junto com Isaías e João Batista, Maria é uma das figuras centrais do Advento, por ser o modelo do ser humano que espera o nascimento do Salvador. Neste ano, temos a oportunidade de celebrar, no segundo domingo do tempo do Advento, a solenidade da Imaculada Conceição. Esta festa já era celebrada antes de se tornar um dogma. O mistério da “imaculada conceição” foi considerado verdade de fé em 1439, no Concílio de Basileia, sendo confirmado por Sisto IV em 1477. Contudo, somente no dia 8 de dezembro de 1854 foi proclamado o dogma da Imaculada Conceição por Pio IX, com a bula Ineffabilis Deus. Atualmente, esse dogma deve ser compreendido no horizonte da teologia da graça, apoiado na certeza de que toda iniciativa é de Deus, que age gratuitamente e por amor. No entanto, para que o projeto salvífico de Deus seja realizado, deve ser acolhido pela pessoa. O ser humano deve dar sua resposta, como aconteceu com Maria (evangelho). Por isso, Maria pode ser considerada imaculada, porque manteve sua comunhão com Deus e com o outro, sendo guiada pelo Espírito. Celebrar a solenidade da Imaculada Conceição é celebrar o triunfo do amor, da graça, da bondade. Assim, do seio virginal de Maria surge a esperança da salvação e da vitória da vida.

II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura: Gn 3,9-15.20

            A passagem escolhida para a liturgia está inserida nas narrativas sobre a origem do pecado ou do mal. O autor tenta elucidar como o ser humano buscou para si a ruína, ao transgredir a ordem dada por Deus ou ceder à tentação de desejar ser deus, conforme a “propaganda enganosa” da serpente, recusando o limite estabelecido pelo Criador e tornando-o seu rival. O texto diz que, após o pecado, Adão e sua mulher escutam o som dos passos de Deus e se escondem de sua presença por medo, exprimindo uma mudança no relacionamento entre Deus e o ser humano. Embora saiba do ocorrido, Deus deseja que o ser humano confesse sua culpa. Adão expõe seu medo de encontrar-se com o Criador, pois tem consciência de tê-lo ofendido. Apesar de admitir seu pecado, não assume a responsabilidade pelo ato, tentando se desculpar ao acusar a mulher, a qual, por sua vez, acusa a serpente. Essas desculpas, em última instância, acabam acusando o próprio Deus, por ter criado a mulher e a serpente. Tal narrativa ressalta que o pecado não deve ser atribuído a Deus, e sim ao mau uso da liberdade humana.

            A sentença pronunciada contra a serpente pode ser entendida como uma narrativa etiológica, isto é, que objetiva justificar por que a serpente rasteja e não caminha como os outros animais, dado que rastejar sobre o ventre e comer a poeira eram interpretados como sinais de humilhação, de inferioridade. Porém, é também utilizada como símbolo da luta entre o bem e o mal. Isso é explicitado na frase: “Porei hostilidade entre ti e a mulher” (v. 15), confirmando a luta que a humanidade deve travar contra os poderes do mal.

            O v. 20 apresenta o novo nome dado à mulher – Eva – e o significado desse nome: “mãe de todos os viventes”. O nome Eva, neste contexto, provavelmente indica que aquela que, por causa da transgressão, foi instrumento de morte juntamente com Adão será também a causa da vida.

2. Evangelho: Lc 1,26-38

            O evangelho escolhido para esta solenidade da Imaculada Conceição segue os moldes das narrativas de nascimento de uma pessoa importante eleita por Deus para uma missão específica (cf. Lc 1,5-25; Jz 13,2-7). Assim, a intenção do evangelista não é fazer uma crônica dos acontecimentos, mas produzir um texto com profunda reflexão teológica. O evangelista descreve Maria como alguém que vive em Nazaré da Galileia, foi desposada por José, da casa de Davi, e é virgem. Não fornece nenhum outro dado que poderia saciar nossa curiosidade. Traz, porém, os elementos essenciais para situar essa mulher na história da salvação.

Olhando primeiramente para a localização, percebemos tratar-se de uma cidade desprezada, de uma região humilhada no passado, que será, porém, o lugar da manifestação da glória de Deus. Maria é uma mulher simples, uma israelita que espera a vinda do Messias. É uma mulher de fé, que confia na manifestação de Deus e na realização de suas promessas. O anjo Gabriel a saúda com a expressão: “Alegra-te!” Como interpretá-la? Alguns comentadores afirmam que é uma saudação cordial, comum na época, mas com uma carga teológica significativa, visto ser expressão que abre todos os anúncios de salvação e de exultação diante da manifestação de Deus. Quando é pronunciada pelos profetas, como uma mensagem de Deus, é dirigida à filha de Sião. Maria fica perturbada, pois sabe que essa saudação anuncia a ação de Deus e a alegria messiânica, explicitada após a saudação do anjo. Ela tenta compreender, meditar, dialogar, dando ao mensageiro de Deus a oportunidade de revelar a missão do menino que irá nascer. Ele será o Messias e receberá o nome de Jesus, revelará a salvação de Deus para todos e reinará eternamente. Como isso acontecerá? Essa criança será concebida por meio da força vital do Espírito de Deus. Maria somente deve confiar nessa palavra de Deus anunciada, pois nenhuma palavra divina é ineficaz. Assim, ela dá seu “sim”. Por meio desse “sim”, cumpre-se a promessa de Deus e é realizada a esperança do povo. Deste modo, Maria é identificada com o povo de Israel, com a filha de Sião que aguarda, com esperança, a libertação prometida pelo Senhor. Pelo seu “sim”, torna-se a representante de todo o povo de Israel, grávido pela graça de Deus e agraciado pela salvação.

            Em Lucas, a anunciação é uma das múltiplas manifestações da fidelidade de Deus para com o povo. Maria é a nova “arca da aliança”, é o lugar da morada, da habitação de Deus. Lucas ressalta que Maria concebe Jesus pelo poder criador de Deus, pelo poder de sua palavra e pela ação do Espírito Santo, revelando a soberania divina que atribui ao ser humano uma dignidade profunda. Portanto, o nascimento virginal de Jesus evidencia a gratuidade e a iniciativa de Deus, que inaugura a nova humanidade (cf. Jo 1,13), a nova criação em Cristo pela ação do Espírito, o qual faz brotar a vida onde isso seria impossível (cf. Ez 37,12-14; Is 32,15-17); além disso, revela, pelo mistério da encarnação, o amor gratuito e a proximidade de Deus, que se inclina para a humanidade desejosa do Messias, e reforça não só a filiação divina de Jesus, inserida na história (divindade/humanidade de Jesus), como também o sentido soteriológico (salvífico) do seu nascimento. A anunciação está no coração do querigma pascal, pois indica que o Crucificado, o filho de Maria concebido pelo Espírito, é o Ressuscitado e o Santo (cf. Lc 1,35). Salienta, também, o caráter pneumatológico da virgindade de Maria, pois nela há a intervenção santificadora do Espírito, a qual marca o momento culminante de sua ação na história da salvação.

            O anúncio do nascimento de Jesus nos mostra que Deus não atua sozinho. Ele toma a iniciativa, mas aguarda a resposta livre e gratuita da pessoa. Portanto, a narrativa enfatiza, por um lado, o caráter gratuito da salvação, que é pura graça, não envolve mérito humano, e, por outro, o respeito de Deus pela liberdade humana. Por meio do seu “sim”, Maria se entrega totalmente a Deus, num abandono incondicional, na fé, aos desígnios divinos. Deste modo, o corpo de Maria torna-se o espaço da vida em plenitude e, diante da gestação de Jesus, torna-se possível proclamar a fé no Deus da vida, que se manifesta na pobreza, na impotência, na simplicidade de uma moça proveniente de uma cidade desprezada, chamada Nazaré. Maria, por conseguinte, é o modelo de todos aqueles que desejam estar totalmente disponíveis para servir o Reino de Deus, é o modelo da discípula atenta, é “imaculada” porque realizou aquilo que Deus sonhou para a humanidade: ser santa e irrepreensível, por sermos todos predestinados a ser amados e a amar, conforme veremos ao aprofundar a segunda leitura.

3. II leitura: Ef 1,3-6.11-12

            A carta aos Efésios não é de Paulo; provavelmente foi escrita por um discípulo do apóstolo ou por um líder de alguma comunidade por ele fundada. Portanto, é considerada uma carta deuteropaulina.

Ef 1,3-14 condensa toda a história da salvação. É um louvor a Deus pelo plano salvífico realizado por meio de Jesus Cristo e levado a cumprimento pelo Espírito Santo. O hino se inicia com um louvor ao Pai de Jesus Cristo e termina mencionando a ação santificadora do Espírito, mas tudo vem por meio de Jesus Cristo. Ele é o amado, por meio dele o Pai revela o desígnio de salvar a todos. Cristo é o centro do plano divino do Pai e o centro de toda a obra salvífica de Deus. Ele é a mediação (cf. vv. 5.7), o redentor (cf. vv. 7.14) e a plena realização do plano do Pai. Por meio de Cristo, o cristão é redimido (cf. vv. 7.14), é santo (cf. v. 4), é filho (cf. v. 5), é destinado a receber a revelação do mistério de Cristo, a ser guiado pelo Espírito Santo e responder a Deus por meio da fé (cf. v. 13), da esperança (cf. v. 12) e da caridade (cf. vv. 4.5.14). Dessa forma, o hino apresenta quem é Deus para o ser humano e quem é o ser humano para Deus.

As bênçãos espirituais, mencionadas em Ef 1,3, são dadas para que o cristão possa compreender o sentido das coisas e conhecer os mistérios divinos. A expressão “nos céus”, típica de Efésios (cf. 1,3.20; 2,6; 3,10), associa o eleito ao triunfo de Cristo, pois o céu é o lugar em que Cristo se encontra, após a ressurreição e a ascensão. Assim, o batizado torna-se participante da vitoriosa ressurreição de Cristo.

Em Ef 1,4-6, o autor apresenta vários aspectos teológicos, ao afirmar que Deus Pai estabeleceu o plano de salvar a humanidade desde o início da criação, elegendo-a gratuitamente, em Cristo (dimensão cristológica), para ser santa (cf. Ex 19,6) e irrepreensível (dimensão redentora); enfim, para participar da santidade de Deus (dimensão escatológica).

Em Ef 1,11-12 temos a perspectiva histórico-salvífica e a retomada de conceitos bíblicos da eleição, como ser propriedade de Deus (cf. Dt 7,6; 14,2; 32,9), herança (cf. Dt 9,29; 32,9; Sl 78,71) e aliança. O ser humano, portanto, é predestinado a amar, a ser filho no Filho e destinado a fazer resplandecer o louvor e a graça de Deus (santidade e filiação). Para o autor, portanto, tudo procede da benevolência do amor do Pai.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Celebrar a Imaculada Conceição faz-nos refletir sobre o sonho de Deus para o ser humano e desperta em nós o compromisso de assumir nossa identidade e vocação de filhos de Deus, voltando-nos para a defesa da vida, conscientes de que somos predestinados, desde antes da criação, a amar e sermos amados. Essa solenidade nos leva a refletir ainda sobre o sentido do pecado em nossos dias: não somente o pecado individual, que consiste na ruptura da relação com Deus e com o outro, expressa de diversas formas, mas também o pecado social, legitimador de determinado padrão de comportamento social que fere constantemente a dignidade humana. Assim, ao contemplarmos Maria como representante da esperança do seu povo, na qualidade de mulher de fé, de serva totalmente disponível a Deus, que possamos também avaliar nosso modo de agir e nos perguntar: somos testemunhas do louvor e da glória de Deus e de sua ação salvífica em nossa sociedade?

Zuleica Aparecida Silvano

Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte.