Roteiros homiléticos

NATAL DO SENHOR – Missa da noite – 24 de dezembro

Por Zuleica Aparecida Silvano

“Hoje nasceu para vós um Salvador” (Lc 2,11)

I. Introdução geral

A solenidade do Nascimento de Cristo é a celebração da salvação de Deus. Nesta noite, somos envolvidos pelo esplendor da luz da glória divina, que se manifesta na fragilidade de uma criança (I leitura), e escutamos o alegre anúncio: “Nasceu hoje o Salvador, que é o Cristo, o Senhor” (evangelho). Sua salvação é oferecida a todos (II leitura). Que nesta noite possamos contemplar profundamente o que nos diz o prefácio do Natal II: Jesus Cristo, “no mistério do Natal que celebramos, invisível em sua divindade, tornou-se visível em nossa carne. Gerado antes dos tempos, entrou na história da humanidade [...]. Restaurando a integridade do universo, introduziu no Reino dos céus o homem redimido”.

II. Comentário dos textos bíblicos 1. I leitura Is 9,1-6 Isaías 9,1-6 pode ser dividido em dois temas: o fim da opressão (cf. vv. 1-4) e o anúncio do nascimento do príncipe da justiça e da paz (cf. vv. 5-6).

Ao lermos o texto da profecia de Isaías, notamos tratar-se de um povo oprimido por algum império potente, tanto que é descrito, simbolicamente, como “um povo que caminha nas trevas”, símbolo do caos e da morte (v. 1). A “luz intensa” indica nova criação e remete-nos ao texto de Gn 1,3 e ao fim do caos. De fato, a profecia de Isaías anuncia o fim da opressão política, social, econômica (cf. v. 3) e bélica (cf. v. 4), e a alegria da libertação, expressa por meio de duas imagens: a alegria por uma colheita abundante e por repartir os despojos, após a vitória numa guerra (cf. v. 2).

O “dia de Madiã” (v. 3) refere-se à vitória de Gedeão (cf. Jz 7,16-22), quando as luzes das tochas amedrontaram os inimigos. É, portanto, o fim da guerra, que marca novo início com o anúncio do nascimento de um menino, destinado a governar. Ele é descrito por meio de vários títulos, indicativos de que é um soberano escolhido por Deus. Será conselheiro dotado de sabedoria única e de poder sobre-humano, ao qual é garantida vida longa, e também será portador de uma paz eterna. Da forma como é descrita essa pessoa, podemos deduzir que exercerá um papel messiânico, porque será o salvador de todos. Esse texto é uma profissão de fé do povo de Israel num soberano divino que substituirá todos os reis infiéis, entre os quais o rei Acaz.

2. Evangelho: Lc 2,1-14

Em Lc 2,1-14, temos a narrativa do nascimento de Jesus (2,1-7) e o anúncio aos pastores (2,8-14).

A narrativa se inicia dando-nos algumas informações sobre a existência de um decreto de César Augusto, que ordena o recenseamento de toda a terra, obrigando José, habitante de Nazaré, a se deslocar com Maria, grávida, para sua cidade natal: Belém. Esse decreto mencionado por Lucas tem uma intenção teológica: inserir o nascimento de Jesus na história universal, por ser ele portador de salvação para toda a humanidade.

César Augusto, a figura mais poderosa do mundo, que exerce seu poder recenseando toda a terra, com a finalidade de expor a grandeza do seu domínio e de cobrar impostos, contrasta com o nascimento do verdadeiro Salvador e Senhor de toda a terra, Jesus Cristo, nascido numa manjedoura em Belém, na pobreza e na fragilidade de uma criança.

No v. 4, o autor insiste que José é da família e da casa de Davi (Belém). Isso reforça a ascendência davídica de Jesus, já apresentada na liturgia do quarto domingo do Advento (Ano A).

A narrativa do nascimento de Jesus é sóbria (cf. v. 6). O filho é designado como “primogênito”. Portanto, será o filho consagrado a Deus, conforme a tradição judaica (cf. Ex 12,3; Nm 3,13). O primeiro elemento que nos chama a atenção é a salvação vir de um pobre filho de migrantes (cf. v. 3) e Maria dar à luz fora de casa – isto é, fora do aconchego dos familiares e amigos –, tendo por perto somente José.

A segunda parte da narrativa (vv. 8-14) descreve o anúncio do nascimento de Jesus aos pastores. A figura dos pastores pode ser interpretada de duas formas. A primeira é influenciada pelo texto de Mq 4,8, ao relacionar a promessa da origem do Messias com Belém e ao recordar que Davi era um pastor (cf. 1Sm 17,15.28.34). A outra interpretação parte da constatação de que os pastores eram pessoas simples, pobres, de classe social menosprezada por não respeitar a propriedade alheia, considerados incapazes de ser testemunhas e não aptos ao papel de juiz. Mesmo assim, são escolhidos para ser os primeiros a receber a notícia do nascimento de Jesus e testemunhar essa Boa-Nova.

Essa narrativa da infância de Jesus é um relato teológico da história, que nos conduz para o ponto central: o anúncio da realização da salvação (cf. 2,11). O autor, além de enquadrar o nascimento de Jesus no contexto do mundo romano, descreve-o à luz do evento central de nossa fé, o mistério pascal. De fato, há vários pontos de afinidade entre o nascimento e a morte de Jesus (cf. Lc 2,7 e 23,53).

O autor, nos vv. 9-10, serve-se de aspectos típicos das teofanias, como a presença de anjos e a manifestação da “glória do Senhor”, que envolve os pastores de luz, para indicar a comunicação de Deus (cf. Ex 40,34). A glória de Deus sempre aparece de forma luminosa (cf. Ex 16,10; Ex 13,21) e indica a proteção divina que guia seu povo. Essa manifestação divina é confirmada pela expressão “não tenhais medo” (v. 10).

A narrativa termina com a alegria (cf. v. 10), tema característico de Lucas e da era messiânica. A alegria tem como motivo a intervenção salvífica de Deus na história e o cumprimento da esperança messiânica no nascimento de Jesus, o Salvador. O cumprimento da esperança messiânica e a salvação são reforçados com o uso do termo “hoje” (v. 11; 4,21; 19,9; 23,43). No Evangelho segundo Lucas, esse termo indica o dia da intervenção de Deus na história.

O v. 11 segue o estilo da proclamação de nascimento ou entronização de reis, príncipes ou imperadores, dirigida aos nobres da sociedade na cultura helênica. O autor utiliza esse estilo com a finalidade de proclamar o nascimento de Jesus, condensando nos títulos “Cristo Senhor” a confissão de fé cristã, e manifestar a intenção teológica de não separar a realidade messiânica de Jesus da ressurreição (cf. At 2,36). No entanto, os destinatários não são os nobres da cidade, e sim os pobres (os pastores). Isso deixa transparecer outra dimensão teológica de Lucas, que considera a pobreza como o lugar da revelação da realeza divina e da potência de Deus.

Assim, a salvação nasce e vem de onde menos se espera (cf. v. 12). Percebe-se também a harmonia entre o sinal dado aos pastores para irem adorar o Salvador e a presença jubilosa dos anjos, ao manifestarem a identidade daquele menino envolvido em faixas, deitado numa manjedoura. Isso mostra que ele é a manifestação da glória de Deus e traz gratuitamente a paz ao mundo (cf. I leitura).

O hino no v. 14 estabelece relação entre glória e paz, Deus e homens, céu e terra. O fio condutor desses elementos é o nascimento de Jesus. Portanto, a potência salvífica de Deus (glória) se revela no menino que traz a salvação e a paz, sinais do tempo messiânico (cf. Is 9,5.6).

A expressão “aos homens por ele amados” põe o acento não na disposição humana (como o faz a tradução “aos homens de boa vontade”), mas no comportamento de Deus. Nessa perspectiva, todos são chamados a experimentar a gratuidade de Deus, sua benevolência, seu amor infinito que se revela na fragilidade do menino Deus: o Messias Jesus, nosso Salvador.

3. II leitura: Tt 2,11-14

Essa carta é considerada tritopaulina, também chamada de carta pastoral. Ela é atribuída a Paulo, mas provavelmente não foi escrita por ele.

No v. 11, o autor afirma que a manifestação da graça de Deus (evangelho) se revelou na obra salvífica realizada por Jesus Cristo (cf. v. 14). Essa graça tem três características: provém de Deus, é salvífica e universal. Sua pedagogia apresenta duplo aspecto: um negativo, por sugerir a renúncia às paixões mundanas, e um positivo, constituído pelo novo estilo de vida. Daí provém um convite à conversão, fundamentado na autodoação do Messias Jesus (cf. Is 53,12) por fidelidade ao projeto do Pai, libertando o batizado do mal, consagrando-o totalmente a Deus e constituindo-o como seu povo (cf. v. 14; Ex 19,5). A expressão “nosso grande Deus e Salvador” remete à experiência exodal, quando Deus resgata seu povo da escravidão e estabelece com ele uma aliança (cf. Ex 6,2-8; Ex 15). Com Jesus, o cristão também é resgatado do mal, é purificado, libertado, consagrado, e também é estabelecida uma nova aliança, marcada pela gratuidade de Deus. Desse modo, o cristão é convocado para dispor-se a um processo de conversão, que consiste em ser libertado da escravidão do pecado e viver na graça, cultivando os valores da sabedoria, da piedade, da justiça, na espera da vinda definitiva de Jesus no fim dos tempos.

Abandonar a impiedade significa rejeitar toda espécie de idolatria, definida como a atitude de substituir o verdadeiro Deus, revelado em Jesus Cristo, por pessoas ou coisas (dinheiro, poder, status, projeção social). As paixões mundanas se expressam na injustiça, no egocentrismo, na ganância, no orgulho, enfim, em tudo aquilo que nos faz perder o equilíbrio e nos impede de viver de forma sábia e justa. Por conseguinte, o cristão é convidado a viver a ética cristã, baseada na pobreza, no esvaziamento (evangelho), tornando visível, por meio de sua vida, a manifestação da graça e da glória de Deus.

III. Dicas para reflexão Neste Natal, festa da alegria, somos convidados a avaliar os vários acontecimentos de 2019 à luz da encarnação de Jesus e do alegre anúncio da liturgia: “Hoje nasceu para nós um Salvador, que é o Cristo, o Senhor”. Assim, renovamos nossa esperança e a certeza de que Deus nos ama profundamente e deseja uma sociedade marcada pela paz. Ao sermos envolvidos pela luz de Cristo nesta noite, possamos vivenciar a alegria de ter nossas trevas dissipadas, conforme o anúncio do profeta Isaías na I leitura.

Zuleica Aparecida Silvano

Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte.