Roteiros homiléticos

Natal do Senhor – Missa do dia 25 de dezembro

Por Zuleica Aparecida Silvano

I. Introdução geral

O Natal nos convida a contemplar, na fragilidade de uma criança, a plena revelação do amor de Deus (evangelho), do Salvador prometido pelos profetas (I leitura). De fato, as leituras deste dia nos conduzem a reconhecer Jesus Cristo como a Palavra encarnada (evangelho), o ápice da criação e da história (II leitura), a responder a essa revelação por meio de nossa adesão e a ser testemunhas deste Deus que habita entre nós.

II. Comentário dos textos bíblicos
  1. I leitura: Is 52,7-10

Nos vv. 7-8, há um elogio dirigido ao mensageiro que leva a boa-nova a Sião. A imagem da sentinela (v. 8), geralmente, caracteriza a missão profética (cf. Jr 6,17; Os 5,8; 6,5; Hab 2,1; Ez 13,5; 33,1-9).

No v. 7, predominam verbos de comunicação, tendo como tema central o anúncio a Jerusalém de sua libertação e o resgate de seu esplendor, visto que é o lugar da morada de Deus. Os verbos “proclamar” e “evangelizar” são usados para indicar um anúncio público de algo novo ou que acontecerá (cf. Is 40-48). O verbo “dizer”, no Segundo Isaías (Is 40-55), é empregado para introduzir um conteúdo positivo, como no v. 7, ao proclamar a realeza de Deus (cf. Is 40,9; 44,26; 41,13; 51,16; 62,11). Esses verbos são utilizados para o anúncio de um evento acontecido no passado, em lugar diverso daquele no qual está sendo anunciado, e que tem repercussão junto aos interlocutores. De modo geral, são notícias positivas, e, no sentido teológico, seu conteúdo é a vitória do Senhor e o advento da salvação. O verbo “anunciar”, mormente, tem como sujeito um mensageiro enviado por Deus (cf. Is 41,27). Essa missão tem um caráter universal. Tal anúncio é como um sacrifício de ação de graças, que consiste na proclamação da ação salvífica, sob a forma de agradecimento, restrita a uma assembleia cultual.

Os termos traduzidos por “bem” e “paz” podem ser entendidos como consequência do evento histórico salvífico – o retorno dos exilados – no qual o povo é liberto de seus adversários (cf. Na 2,1). A paz também tem o significado de bem-estar e segurança nas dimensões política e econômica (cf. Gn 26,29; Dt 23,7; Esd 9,12; Jr 8,15).

A salvação, no v. 7, assume o significado de administração da justiça (cf. Is 60,16; 63,5.8.9) na defesa do povo (cf. Is 41,14; 44,6; 49,7; 63,8; 61,8-10).

Assim, há o convite a anunciar a salvação, isto é, as manifestações da potência divina, por intervenção de ações concretas, realizadas na criação e na história de Israel.

As nações (v. 10) podem ser entendidas como os responsáveis pelo povo (os soberanos das nações) e pelos tribunais (os juízes). O convite a reconhecer o poder de Deus e celebrar sua soberania, portanto, é direcionado a todos, não só ao povo de Israel.

A mensagem a ser transmitida (“teu Deus reina”) é uma espécie de profissão de fé. Além do monoteísmo, essa expressão reafirma a realeza de Deus explicitada nas manifestações salvíficas e tem como consequência o restabelecimento ético, por meio dos termos “paz” e “bem”, trazendo a estabilidade, o bem-estar e o controle das forças cósmicas hostis a fim de manter a ordem que, não obstante tenha sido instaurada nos inícios, se encontra em processo de contínua restauração.

O exultar de alegria (v. 8), provavelmente, tem como motivo a vitória de Deus, o seu julgar com retidão (cf. Sl 51,16; 67,5; 145,7; Dt 32,43), e a alegria pelo cumprimento das promessas monárquicas à comunidade dos pobres (cf. Sl 132,9.16). Esse convite certifica a realização da redenção prometida pelo Deus de Israel, a qual todos poderão contemplar (v. 10), e revela os efeitos da inauguração do Reino de Deus (v. 7; cf. Sl 72).

O louvor hínico, explícito no v. 9, tem como motivação o ser consolado e resgatado. Após a mudança da condição de Jerusalém, o v. 10 abre um horizonte universal, no qual o Senhor mostra a salvação para todas as nações.

A expressão o “braço do Senhor” (v. 10) retrata seu poder como autor da salvação (cf. Is 51,9-11). Percebe-se que a santidade de Deus consiste em se voltar para a humanidade de multíplices maneiras, a fim de libertá-la, salvá-la e conduzi-la (vv. 9-10).

A presença divina plenifica Jerusalém (v. 10) e a torna lugar por excelência da revelação teofânica da santidade a todas as nações. De fato, todos os povos são chamados a contemplar a revelação do mistério e da santidade do Deus único e Senhor, que comunica seu mistério na história do povo de Israel.

A experiência da santidade está vinculada à ação de resgatar o povo (v. 9) e de reconhecer a realeza divina (v. 7). O conteúdo da consolação e da redenção é histórico e político, marcado pela reconstrução da cidade e pela mudança política e religiosa.

  1. Evangelho: Jo 1,1-18

O prólogo do Evangelho segundo João (Jo) se assemelha a um hino e, ao mesmo tempo, é uma síntese introdutória, ao condensar vários elementos teológicos que serão desenvolvidos no decorrer do evangelho. As várias menções ao AT permitem articular várias tradições teológicas, como a da criação, a do êxodo, a teologia da presença, a sapiencial e a da aliança. Os vv. 1-18 podem ser estruturados em três partes: a origem da Palavra divina (vv. 1-5), seu destino (vv. 6-13) e a encarnação e sua acolhida pela comunidade (vv. 14-18).

O Evangelho segundo João, diferentemente dos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc), não se inicia com as atividades de Jesus ou com as narrativas de sua infância, mas nos remete a Gn 1,1, o relato da criação (v. 1), afirmando a força criadora da Palavra, que dá vida. O v. 1 também nos remete ao texto de Pr 8,22-36 (cf. também Eclo 24,3 e Is 55), a Sabedoria criadora. Desse modo, a Palavra existia antes da criação e participava da criação do mundo, sendo mediadora da criação (v. 3). Essa Palavra geradora (que dá a vida e é a vida) é também luz que ilumina nossos passos para a vida, dissipando as trevas (cf. 12,35), pois Jesus é a luz do mundo (cf. 8,12; 9,5), a luz que ilumina todos (v. 5). Desse modo, a luz e a vida são dons da salvação, por se contraporem às trevas. Esses pontos de contato, provavelmente, têm a intenção de apresentar Jesus como a Sabedoria criadora de Deus, que gera vida (vv. 3-4), mas também, progressivamente, apresentar a vinda da Palavra divina, que se encarna e entra na história.

Nos vv. 6-13, num estilo mais narrativo, o autor evoca a figura de João (vv. 6-8), precursor e testemunha da luz; ele não é a luz, ou seja, não é o Messias. Ser testemunha, em Jo, equivale a suscitar a fé em Jesus. Essa luz testemunhada provoca nas pessoas uma tomada de posição. Assim, ela pode ser tanto rejeitada (vv. 9-11) como acolhida (vv. 12-13). Todos aqueles que acolhem a luz, ou seja, acreditam na luz que é Jesus Cristo, são considerados filhos de Deus (vv. 12-13). Provavelmente, trata-se de uma alusão ao batismo, pois os batizados são aqueles que acreditam que Jesus é o Messias e seguem seus ensinamentos.

Essa Palavra geradora de vida, que existia junto de Deus, encarna-se em nossa história (v. 14); e, pela primeira vez, é afirmado que a Palavra é Jesus Cristo. O v. 14 se reveste de uma densidade teológica, sendo influenciado pela tradição do êxodo, quando apresenta a encarnação de Jesus em nosso meio (cf. Ex 40), para nos revelar o Pai e ser o ponto de encontro de Deus com a humanidade. Cristo Jesus é a manifestação da glória divina; ou seja, por meio de sua humanidade, manifesta-se a glória de Deus. Assim, o Filho de Deus preexistente (existente antes da criação) assume a condição humana ao se encarnar na história. O termo “carne” designa a totalidade da pessoa e também a humanidade em sua condição de fragilidade.

A expressão “e estabeleceu morada entre nós”, provavelmente, está relacionada às tradições do Antigo Testamento, sobretudo com a festa das Tendas (cf. Lv 23,34-36; Nm 12,5; 29,12-38; Dt 16,13-15; Esd 3,4; Zc 14-16), com o fato de armar a tenda como manifestação da glória de Deus (cf. Ex 25,8-9; 40,34-35; 1Rs 8,10-13; Ez 44,4) e com a tenda do encontro (cf. Ex 26,1s; 33,7-11.18; 2Sm 7,1-13; 1Rs 5,15-19; Nm 7,89). O “fazer morada” nos remete à presença de Deus, que acompanhava o povo no deserto, à morada da sabedoria (cf. Eclo 24,7-10), e pode também significar a presença definitiva de Deus (cf. Jl 4,17-18; Zc 2,14; Ez 3,37; Eclo 2,48).

A expressão “graça e verdade” ocorre na revelação de Deus a Moisés, quando este pede que Deus mostre a sua glória (cf. Ex 34,5-7). A palavra “graça” pode ser entendida no sentido de compadecer-se, aproximar-se de alguém com benevolência. Tais palavras também são utilizadas na liturgia do povo de Israel. A verdade não é um atributo abstrato, mas significa que Jesus é alguém fiel, no qual é possível confiar.

O termo “Palavra”, no v. 14, encerra em si todo o significado expresso nos versículos anteriores, a saber: o ser/estar dessa Palavra com o Pai na eternidade (vv. 1-2); sua participação na obra da criação (v. 3); sua importância para as pessoas e para seu destino (vv. 4-5). Palavra testemunhada por João Batista (vv. 6-8) com o objetivo de suscitar a fé em Jesus Cristo, que revela o Pai, é Criador, Senhor do universo, Salvador (vv. 9-12).

Por meio da encarnação do Filho, Deus torna possível à comunidade (“nós”) a contemplação da glória divina; isto é, a comunidade experimenta a manifestação da presença de Deus (cf. Ex 33,11.18). Assim, por meio da fragilidade (encarnação) e da extrema vulnerabilidade humana (morte), é manifestada a glória de Deus. A cruz, desse modo, é o lugar da revelação, do encontro entre Deus e a humanidade (cf. Jo 6,51; 11,51-52; 12,24; 18,14).

Portanto, no prólogo joanino, somos conduzidos a conhecer Jesus Cristo – encarnação da Palavra na história humana –, responder a esse anúncio por meio da nossa fé e ser também testemunhas deste Deus que se faz carne e habita em nós e entre nós.

  1. II leitura: Hb 1,1-6

Os vv. 1-4 introduzem a chamada “carta aos Hebreus”, porém o conteúdo desse livro se assemelha a uma homilia litúrgica. O objetivo destes versículos é apresentar Jesus Cristo como o centro da história, como a definitiva Palavra reveladora de Deus, e o seu papel na ação salvífica. Em Cristo, as revelações e intervenções divinas descritas no AT são plenificadas. Ele é a expressão máxima da comunicação de Deus com a humanidade (v. 1).

No v. 2, o autor anuncia a identidade de Jesus, ou seja, aquele a quem Deus constituiu herdeiro universal e por meio de quem criou o universo. Esses elementos estão em harmonia com o texto do evangelho desta liturgia (Jo 1,1-18). A menção à herança nos remete ao AT e sintetiza as esperanças messiânicas (cf. Sl 2,8).

A estreita relação existente entre o Pai e o Filho é descrita no v. 3 por meio de metáforas retiradas do livro da Sabedoria (cf. Sb 7,26; 8,1). Jesus é o reflexo da glória do Pai, algo já acenado no comentário do evangelho, mas também participa da criação e a sustenta com sua Palavra. Além da relação de Jesus com a criação, o texto evoca o evento histórico salvífico de sua morte por meio da expressão “purificação dos pecados”. Assim, Cristo Jesus é o mediador entre Deus e a humanidade e elimina tudo aquilo que causa ruptura nas relações (os “pecados”). Outro aspecto mencionado é a entronização divina do Filho (v. 3). Por isso, ele é considerado superior aos outros seres celestes, por exemplo, os anjos. Para justificar essa afirmação, o autor insere várias provas escriturísticas nos vv. 5-6. As referências ao Sl 2,7 e a 2Sm 7,14 confirmam a diferença entre os seres celestes e Jesus: ele é superior porque é Filho, por isso tem uma comunhão especial com o Pai; reafirmam também a relação existente entre o messianismo de Jesus e a dinastia davídica. Desse modo, os anjos são convidados a render ao Filho a mesma honra devida a Deus, ou seja, a adorá-lo (v. 6).

III. Pistas para reflexão

O Natal para nós é mais que uma celebração. É o momento de deixar Cristo renascer dentro de nós. É a ocasião de acreditar no amor de Deus revelado em Jesus Cristo. É a oportunidade de contemplar um Deus que acredita no ser humano e, por isso, envia o seu Filho, que “se faz carne e habita entre nós”.

Como sugere a profecia de Isaías, possamos, neste dia, ser os anunciadores da paz e da salvação e proclamar em todos os cantos do mundo: o Reino de Deus está em nosso meio, e já resplandece a salvação (I leitura). De fato, é revelada sua presença e santidade a todas as nações no Filho de Deus, que se encarnou e habita em nós e em nossa história.

Hoje somos convidados a agradecer o dom de experimentar a ação salvífica de Deus, sua presença, sua Sabedoria manifestada em Jesus, sendo para nós luz e vida (evangelho). Ele que é a definitiva comunicação de Deus, o centro da história, a realização das promessas feitas aos patriarcas e proclamadas pelos profetas (II leitura).

A celebração do nascimento de Jesus também nos encoraja a reavivar nossa adesão a Cristo, nossa acolhida da luz, nossa condição de filhos de Deus e perceber a manifestação de sua bondade e os sinais de sua presença na história de nosso povo e, sobretudo, na fragilidade humana. Cristo é a razão de nossas esperanças, o mediador entre Deus e nós, aquele que todo o universo é chamado a adorar.

Zuleica Aparecida Silvano

Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFGRS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte. E-mail: [email protected]