Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2022 - ano 63 - número 344 - pág.: 39-42

QUARTA-FEIRA DE CINZAS – 2 de março

Por Marcus Mareano

A novidade que renasce das cinzas

I. INTRODUÇÃO GERAL

Com a liturgia das Cinzas, iniciamos o novo tempo litúrgico da Quaresma. Um período de preparação para a celebração da Páscoa do Senhor, sua paixão, morte e ressurreição. Um caminho espiritual que percorreremos rumo ao cume da cruz e da luz do Ressuscitado.

As leituras convidam ao recolhimento interior e à penitência. A profecia de Joel fala de “rasgar o coração” mais do que as vestes, como sinal dessa atitude interna de atenção ao que é espiritual. O Evangelho propõe a esmola, a oração e o jejum como vias práticas de crescimento na fé em Cristo e de amadurecimento humano. Paulo enfatiza um tempo favorável e propício para a conversão ao amor de Cristo. Iniciar esta nova etapa consiste também em novos propósitos, autorrevisão e disposição para a ação transformadora de Deus.

O rito da missa contém o gesto da imposição das cinzas, acompanhado das palavras: “Convertei-vos e crede no Evangelho” ou “Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar”. Esse símbolo marca o início deste novo tempo e recorda a condição humana, sempre frágil e sempre convidada a voltar-se para Deus. A Quaresma que se inicia é um itinerário de conversão e reconhecimento de que nada podemos nem somos sem o amor de Deus.

Iniciamos um tempo de conversão do egoísmo e do fechamento para a abertura do coração e a prática da caridade. Abandonamos velhos costumes de vida para melhor adesão à proposta do Evangelho.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Jl 2,12-18)

O livro de Joel contém uma liturgia de penitência a ser proclamada para o povo como convite à conversão (Jl 1,2–2,17). Em seguida, temos uma segunda parte, como resposta divina enquanto promessa de restauração do povo (Jl 2,18–4,21).

O trecho da liturgia deste dia se situa nessa primeira seção, de teor penitencial. O Senhor conclama o povo para se voltar para ele “com todo o coração”, quer dizer, inteiramente, pois não adiantaria um retorno meramente de aparências e de costumes externos apenas. A profecia diz que ele é “compassivo e clemente, lento para ira e rico em bondade” (v. 13), por isso não se deve ter medo de Deus ou envergonhar-se dele, mas apresentar-se confiantemente diante dele, “rasgando o coração”, para que ele cure e salve. Assim, o Senhor não agirá castigando – diferentemente do pensamento vigente, segundo o qual as mazelas que aconteciam eram vingança divina. Sua ação é bênção e paz (v. 14).

Na sequência (v. 15-18), o convite penitencial, que parecia ser individual, mostra-se como coletivo e destinado a todos. O povo é convocado para o jejum (v. 15-16). Os anciãos, os esposos, as crianças devem se reunir para pedir compaixão ao Senhor (v. 17). As diferentes classes de pessoas clamam ao Senhor, e ele responde tendo piedade do seu povo (v. 18).

A profecia de Joel apresenta esse cenário de forte apelo penitencial. Assim, igualmente reunidos na celebração de Cinzas, pomo-nos em oração e jejum, com nossos propósitos de conversão. Não por medo ou vergonha de Deus, mas com confiança em seu amor e em sua misericórdia. Deus responde a nossas penitências com sua misericórdia por nós.

2. II leitura (2Cor 5,20–6,2)

A segunda carta de Paulo aos Coríntios possui um teor de novo entendimento com a comunidade e de autodefesa contra falsas acusações que o apóstolo sofria. O trecho da segunda leitura da liturgia deste dia se situa nesse contexto de conciliação mútua.

Paulo explica o processo pelo qual o amor salvador de Deus toca as vidas humanas. Na função de um “embaixador”, ele exorta a comunidade para a reconciliação com Deus: “Em nome de Cristo, vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus” (2Cor 5,20).

Em seguida, apresenta a tarefa de Cristo nesse projeto de reconciliação de Deus. Cristo foi feito pecado pela humanidade, para que todos se tornem justiça de Deus. De acordo com Lv 6,17-23, dever-se-ia ofertar um holocausto pelo perdão dos pecados. Então, para Paulo, Jesus assume esse lugar de sacrifício pelo perdão dos pecados.

O Filho de Deus, Jesus Cristo, que se fez semelhante a nós, exceto no pecado (Hb 4,15), assume nossa condição pecadora para redimir nossa humanidade do pecado, por meio de sua existência de obediência e fidelidade a Deus. Assim, podemos, em Cristo, reconciliar-nos com Deus, pois ele foi fiel.

Por fim, repete-se o apelo à reconciliação, para não desconsiderar a graça recebida de Deus. Conforme Is 49,8, Deus escuta e salva seu povo. Portanto, agora é o momento favorável para a experiência de reconciliação com Deus.

A liturgia é esse espaço e tempo de reconciliação. Ouvindo essa exortação de Paulo nos nossos dias, o que nos falta para nos reconciliarmos com Deus? Ele está de braços abertos para nós, como quem ama e espera pela pessoa amada.

3. Evangelho (Mt 6,1-6.16-18)

Essa seção de Mateus (5,1–7,29) apresenta o primeiro dos cinco discursos de Jesus nesse Evangelho. O “novo” ensinamento de Jesus é feito desde a montanha (Mt 5,1), da mesma maneira como o povo de Israel acolheu a aliança com Deus. Outrora falou Moisés, agora Jesus fala ao povo constituído a partir do anúncio do Reino dos céus.

A doutrina de Jesus não é nova ideia inventada por ele, mas constitui nova maneira de compreender o que já era dito pelos antigos mestres da Lei. Jesus assume sua tradição religiosa judaica e apresenta-a de uma forma mais radical, em sua perspectiva, considerando a profundidade da palavra, e não apenas a letra da norma.

Muitos líderes religiosos daquele tempo (mestres da Lei e fariseus) praticavam seus costumes religiosos para se destacarem aos olhos das outras pessoas. Jesus ensina que as práticas não devem ser para ganhar elogios e fama, e sim para melhorar a relação com Deus e com as pessoas. Portanto, os discípulos deveriam esperar recompensa apenas de Deus (v. 1).

Jesus reinterpreta os pilares da piedade judaica (esmola, oração e jejum) na perspectiva do Reino dos céus. A esmola era um gesto comum entre os judeus, recomendado pelas Escrituras (Tb 4,7-11.16-17; 12,9). Entretanto, Jesus propõe aos discípulos dar esmolas sem que “a mão esquerda saiba o que faz a direita” (v. 3). Tudo deve ser feito sob o olhar amoroso de Deus, agindo como seus filhos e filhas, e irmãos e irmãs uns dos outros. Não se deve buscar a desnecessária aprovação alheia, mas o exercício do amor transbordante de Deus no ser humano.

Se a esmola diz respeito à relação de uns com os outros, a oração corresponde à nossa comunicação com Deus. O princípio anterior serve igualmente para a oração. Não se deve orar nos lugares públicos a fim de ganhar prestígio e notoriedade. A oração não é um teatro. Os atos de piedade precisam ser vivenciados sob o olhar amoroso de Deus, nosso Pai. A oração se torna, no ensinamento de Jesus, uma relação de Pai e filho (Mt 14,23; Mc 1,35; 6,46). Por isso, as fórmulas são secundárias e as palavras menos importantes do que a atitude de filiação divina e fraternidade humana.

Por fim, o jejum equipara-se a um cuidado consigo mesmo. Novamente prevalece o princípio de que deve ser praticado para “ser visto” por Deus, e não pelas pessoas. Jesus se opõe à ostentação pública dessa piedade. Portanto, o jejum precisa ser feito como verdadeiro exercício de desapego. Como lemos antes: “O Pai, que vê o que está em segredo, te retribuirá” (v. 4.6.18). Jesus critica a hipocrisia dos fariseus, propondo essa atitude livre do espetáculo público.

Enfim, as chamadas “práticas quaresmais” (esmola, oração e jejum) visam à comunhão e à integração do ser humano para que os vínculos de amor possam prevalecer em cada pessoa. O centro delas é a oração, com base na qual as outras ganham maior sentido. A melhor vivência quaresmal implica uma saída de si mesmo para Deus, os irmãos e a criação.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Em que precisamos melhorar no amor e no serviço? Celebrar bem a Quaresma acarreta crescer no amor. Não adiantam práticas de piedade apenas externas, sem serem acompanhadas de uma mudança interna que se traduza em sensibilidade pelas dores do mundo. É tempo para ordenar nossa vida, tendo em vista o projeto de Deus para nós.

Particularmente na Igreja no Brasil, adotamos uma maneira concreta de viver o tempo quaresmal, por meio da Campanha da Fraternidade. A cada ano, os bispos do Brasil escolhem um tema para reflexão, oração e ação. Neste ano, o tema escolhido é “Fraternidade e educação” e o lema “Fala com sabedoria, ensina com amor” (Pr 31,26). Jesus é o Mestre educador que transmite sabedoria com amor. Dessa forma, seus seguidores praticam seus gestos e seu jeito de ser, manifestando sua presença no mundo.

Enfim, as cinzas sobre a cabeça devem despertar em nós a consciência de que todos procedemos do pó. O reconhecimento dessa humilde condição humana nos unifica e quebra toda pretensão de poder, de vaidade e de sobreposição aos outros. Que novos seres humanos, mais solidários, renasçam dessas cinzas!

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]