Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2022 - ano 63 - número 344 - pág.: edição especial

QUINTA-FEIRA SANTA – 14 de abril

Por Marcus Mareano

Um amor até o fim

I. INTRODUÇÃO GERAL

A contemplação da cena da liturgia deste dia não é apenas para crescermos na humildade, mas também indica um jeito de ser e estar no mundo. O cristão se oferece a exemplo de Jesus. Lavar os pés uns dos outros se torna a insígnia dos seguidores do Mestre.

Os últimos momentos de Jesus, recordados nestes dias, foram demasiadamente tumultuados. As atitudes dele com relação ao sábado, à pureza, às mulheres, aos enfermos e outros gestos ousados incomodavam alguns, sobretudo o grupo dos fariseus. Jesus possuía uma autoridade (exousia) diferente para falar e agir em nome de Deus, como um profeta livre dos padrões enrijecidos da religião do seu tempo. O movimento que ele criara com sua pregação já inquietava alguns poderosos da sociedade. Então, as ameaças para eliminá-lo aumentaram e, provavelmente, ele percebia que seu fim se aproximava.

O rito, os gestos e as leituras pressupõem essa contextualização. A recordação do final da vida terrena de Jesus não se centra na perturbação e nas angústias possíveis, pelas quais ele passou, e sim na sua perseverança de amar até o fim e não recuar diante das intimidações.

II. COMENTÁRIO AOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Ex 12,1-8.11-14)

As narrativas da “última ceia”, nos Evangelhos sinópticos, dão a entender que essa última refeição de Jesus com seus discípulos foi uma ceia pascal, como os judeus celebravam nesse período e lemos na primeira leitura. Eles recordavam ritualmente a libertação da escravidão do Egito por meio de uma ceia, aos moldes da relatada no episódio do Êxodo.

O trecho da leitura se situa entre a ameaça (Ex 11,4-5) e a execução da décima praga (Ex 12,29-30), por ocasião da saída dos judeus, sob a liderança de Moisés, rumo à “terra prometida” por Deus (cf. Ex 3,7-12; Gn 12,7). Por isso a pressa para a refeição, o cordeiro compartilhado com outra família, os pães sem fermento, os rins cingidos (sinal de prontidão) e o cajado na mão. Deus passaria após a saída do povo, atingindo os egípcios (v. 13). Os judeus se preservariam com o sinal ritual do sangue do cordeiro.

A experiência no deserto constitui aquela gente como povo de Deus, e essa saída passa a ser recordada como um “memorial” pelas gerações (v. 14). A cada ano os fiéis judeus celebravam-na, revivendo o momento e recordando a fidelidade de Deus. Cada vez que repetia ritualmente a ceia, o povo se libertava da escravidão e se dirigia a novo horizonte de vida.

A memória celebrada não se reduzia a uma recordação, mas era uma forma de participar, no presente, de importante acontecimento passado. Cada ano celebrado representava nova conquista das promessas de Deus.

2. II leitura (1Cor 11,23-26)

Encontramos, na segunda leitura, o mais antigo registro escrito da celebração eucarística, realizado pela comunidade cristã. Paulo escreve a Corinto, dando orientações a respeito daquela refeição comunitária. Não consistia em uma reunião qualquer, desordenada.

Semelhantemente aos relatos dos sinópticos, Paulo recorda a tradição recebida sobre a última ceia e o que Jesus fez (v. 23): tomou o pão, deu graças (eucharistós) e distribuiu, dizendo que era seu corpo. Repetiu isso com o vinho, dizendo que aquele cálice era o sangue da Nova Aliança. Cada vez que os cristãos se reuniam para comer desse pão e beber desse vinho, proclamava-se o que acontecera com Jesus, até sua aguardada vinda (v. 26). Portanto, nas assembleias de Corinto, o encontro comunitário possuía um sentido e precisava de ordem (1Cor 11,17-22).

No relato paulino, aquilo que Jesus deixou aos discípulos na última ceia, a comunidade primitiva continuava a repetir gestualmente, recordando sua pessoa. Cada vez que as pessoas se reuniam em celebração para essa finalidade, o Senhor se fazia presente na partilha e no amor praticado. O rito levava a agir à maneira de Jesus, tornando-o presente nas ações cotidianas.

Tal celebração atravessou os milênios e constitui hoje, para nós, a missa, que é esse “memorial” da morte e ressurreição de Jesus. Não como mera lembrança. Cada vez que a celebramos, recordamos (como se estivéssemos presentes) esse mistério, até sua vinda gloriosa.

3. Evangelho (Jo 13,1-15)

O primeiro versículo do Evangelho desta celebração sugere a emoção do episódio: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (v. 1). Alegria e nostalgia se misturam nesse momento: por um lado, o dom da vida de Jesus ofertada; por outro, o drama da traição, condenação e execução da pena de cruz. Essa introdução não serve apenas para a cena do “lava-pés”, mas também para o acontecimento da elevação de Jesus (Jo 13-17).

Após um interlúdio (12,37-50), o evangelista retoma a narração, situando a proximidade da Páscoa (v. 1). O episódio se desenrola com o entendimento que Jesus possui de seu retorno ao Pai (1,1.18). Sendo assim, ele age de forma a representar o que fora sua existência. Jesus faz o trabalho que faziam os escravos daquele tempo: levanta-se, despoja-se do manto, amarra uma toalha na cintura e lava os pés dos discípulos. O Senhor do grupo se torna Servo de todos. De igual forma, toda a vida de Jesus foi serviço em prol das pessoas.

Pedro não entende a ação de Jesus e, inicialmente, recusa-se a aceitar o lava-pés (v. 6-9). Ele imaginava um Messias de tipo davídico, opulento e autoritário. Jesus precisa explicar-lhe que aquele gesto foi realizado para que o apóstolo participe da sua obra messiânica. Seu messianismo era diferente. O banho que ele dava era ensinamento para que os discípulos assumissem igualmente a condição de servidores uns dos outros.

Ao final, Jesus veste o manto novamente, sem retirar a toalha do serviço. Ele é o Senhor que serve, e não é apenas servido. Com base no que fora feito, Jesus esclarece seus seguidores sobre o que vivenciaram: “Também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que também vós façais assim como eu vos fiz” (v. 14-15).

A recomendação de Jesus é para lavar os pés uns dos outros, isto é, assumir a condição de servo na própria vida, a seu exemplo. Com isso, assume-se a herança (o “novo” mandamento) que ele deixa à humanidade: “Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (15,12). Para as Escrituras, o amor não significa um sentimento ou uma atração física, mas representa oferta, entrega, doação, acolhida e cumplicidade. Por isso, o amor baseia-se mais em atos do que em palavras, como lembra 1Jo 3,18: “Não amemos com palavras nem com a língua, mas com as ações e em verdade”. Servir consiste no amor cristão, a exemplo de Jesus.

O Evangelho de João, propositalmente, não repete o episódio da instituição da Eucaristia, a fim de dar-nos o sentido dela com o abaixamento de Jesus, numa ação semelhante à dos escravos daquele tempo, que lavavam os pés dos seus senhores. Da mesa, onde se oferece a refeição, Jesus desce aos pés dos seus discípulos, explicando que a Eucaristia se traduz em serviço e oferta de si para a humanidade. Quem participa de seu corpo e sangue deve servir as pessoas como ele fez em sua vida.

III. PISTAS PARA A REFLEXÃO

Celebrar não consiste só em repetir gestos conjuntamente; significa, antes de tudo, experimentar o mistério divino por meio de ritos, orações, silêncios e ações. Um momento importante que deve se estender ao cotidiano da vida das pessoas.

Com isso, participar da Eucaristia não pode ser mero cumprimento de preceito religioso. Deve ser comprometimento com o que se celebra. Recebemos o corpo e sangue do Senhor para nos tornarmos sua presença no mundo atual. Assim como o Senhor amou até o fim, comungamos para amar com esse amor, com o qual somos amados. Amor que consiste mais em ações do que em palavras, mais em ética do que em oratória (1Jo 3,18).

Da mesma forma que os judeus recordavam a libertação da escravidão do Egito e as primeiras comunidades se reuniam, repetindo o que Jesus fizera na última ceia, quem celebra hoje esta liturgia tem de se dispor a “tornar-se” a Eucaristia celebrada.

A liturgia toca o interior humano com a repetição do silencioso ato de Jesus. A profissão de fé rezada nas solenidades é substituída, neste dia, pela atitude de abaixar-se e lavar os pés. Seguir o Senhor implica assumir sua condição de servidor. A autêntica fé cristã implica servir por amor a quem precisa.

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]