Roteiros homiléticos

Publicado em maio–junho de 2020 - ano 61 - número 333 - pág.: 53-56

Santíssima Trindade – 7 de junho

Por Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues

Trindade: a comunidade do Deus amor

I. Introdução geral

Com esta solenidade, somos convidados a contemplar o indecifrável mistério da Santíssima Trindade, o Deus que é Um, mas são três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, formando perfeita comunidade de amor. As três leituras são muito ricas e, embora não expliquem o mistério trinitário, oferecem-nos uma oportunidade especial para conhecer a identidade de Deus, com os seus traços mais característicos. A primeira leitura nega a equivocada impressão de que o Deus do Antigo Testamento é severo e cruel, ensinando que ele é tão misericordioso e bondoso, que não apenas perdoa os pecados e infidelidades, mas até caminha com o seu povo. A segunda leitura ensina que o Deus Trindade é comunhão e, por conseguinte, a comunidade cristã deve ser reflexo dessa comunhão, cultivando a paz e a concórdia entre os seus membros. No evangelho, Jesus, o revelador do Pai por excelência, revela um Deus que ama incondicionalmente a humanidade, a ponto de dar o próprio Filho para a salvação de todo o mundo. Portanto, celebramos hoje a festa do Deus amor. E isso deve encher nosso coração de alegria, esperança e disposição, para que esse amor alcance toda a humanidade e assim um mundo novo, marcado por justiça, paz e fraternidade, seja instaurado.

II. Comentários dos textos bíblicos

1. I leitura: Ex 34,4b-6.8-9

A primeira leitura é tirada da terceira parte do livro do Êxodo (caps. 19-40), que apresenta o povo de Israel ao redor do Sinai, sob a liderança de Moisés, no contexto da aliança. É uma etapa decisiva para o futuro do povo. Antes de seguir em marcha rumo à terra prometida, Israel precisa ter convicções claras acerca do Deus que o libertara e disposição para caminhar na sua presença, obedecendo à Lei.

O trecho lido relata o início da renovação da aliança, após a ruptura ocasionada pelo trágico episódio do bezerro de ouro (cf. Ex 32). Moisés sobe à montanha com as novas tábuas de pedra, e Deus desce ao seu encontro, através da nuvem (cf. vv. 4-5). Temos aqui uma demonstração clara da bondade de Deus, que não desiste do ser humano por mais que este não lhe seja fiel. Deus passa diante de Moisés, como sinal de que está aberto à comunicação com a humanidade (cf. v. 6), permitindo que o seu nome seja invocado (cf. v. 5).

A invocação de Moisés revela aspectos importantes da identidade de Deus: “misericordioso e clemente, paciente, rico em bondade e fiel” (v. 6). É a certeza dessas qualidades de Deus que motiva Moisés a interceder pelo povo, mesmo sabendo que se trata de um povo de “cabeça dura”, ou seja, obstinado pelo pecado (cf. v. 9). Chega a ser surpreendente a intimidade de Moisés com Deus. Nisso se revela um Deus amoroso e próximo, um companheiro de caminhada. O pedido de perdão expressa o reconhecimento do pecado e a confissão de fé num Deus que é rico em amor e misericórdia, que permanece fiel mesmo quando não é correspondido.

2. II leitura: 2Cor 13,11-13

A segunda carta aos Coríntios, da qual é tirada a segunda leitura, foi escrita provavelmente em Éfeso, entre os anos 56 e 57 do século I, com o objetivo de amenizar o clima hostil existente entre Paulo e a comunidade de Corinto. Na primeira carta, o apóstolo tinha criticado bastante o comportamento dos cristãos da comunidade, devido às divisões, rivalidades e vaidades que estavam sendo alimentadas, o que acabou gerando revolta, a ponto de algumas pessoas nem sequer reconhecerem mais a sua liderança apostólica. Foi dessa situação que surgiu a segunda carta.

A leitura contempla apenas a conclusão da carta, que contém as últimas recomendações e a saudação final, na qual são explicitamente mencionadas as três pessoas divinas. A primeira exortação é um convite à alegria, que é o primeiro sinal da presença de Deus na vida de uma pessoa; por isso, deve ser uma característica de todo cristão (cf. v. 11). A vida cristã é dinâmica, deve ser aperfeiçoada cotidianamente, o que exige empenho e coragem. A comunidade é o lugar da comunhão, onde o amor recíproco deve ser cultivado por todos, gerando concórdia, paz e formando uma só família, como reflexo do Deus Trindade, que doa os bens salvíficos em favor de todos: a graça, o amor e a comunhão (cf. v. 13).

3. Evangelho: Jo 3,16-18

O evangelho é composto de apenas três versículos, os quais não podem ser bem compreendidos se não considerarmos o contexto em que estão inseridos no Quarto Evangelho. Faz parte do diálogo entre Jesus e Nicodemos (cf. 3,1-21), um homem notável entre os judeus, pertencente ao grupo dos fariseus e interessado em conhecer Jesus e seu projeto. A cena se desenvolve em Jerusalém, onde Jesus se encontrava por ocasião da festa da Páscoa (cf. 2,13.23). Nicodemos procurou Jesus “na calada da noite” (cf. 3,2), provavelmente por precaução e medo de ser repreendido pelos seus irmãos de doutrina, que não consideravam Jesus boa companhia.

Nicodemos introduz o diálogo de modo sincero e respeitoso, reconhecendo a autoridade de Jesus com base nas obras que ele realiza (cf. 3,1-3) Porém, não é suficiente um reconhecimento de Jesus que se fundamente somente em sinais visíveis; para acolhê-lo como enviado do Pai, é necessário nascer do alto (cf. 3,4-8), fazendo com ele profunda experiência interior. Nicodemos não compreende isso (cf. 3,4), o que faz Jesus prolongar a sua explicação, apresentando o projeto de salvação do Pai e a realização na sua pessoa (cf. 3,9-21). O trecho lido nesta liturgia faz parte dessa explicação.

Jesus apresenta Deus como um Pai que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, apresenta-se como a prova desse amor incondicional do Pai, já que é ele o Filho doado ao mundo (cf. v. 16), ou seja, à humanidade inteira. Ao revelar essa novidade, Jesus destrói um dos principais pilares de sustentação da ortodoxa religião judaica: a exclusividade de Israel como único povo destinatário das promessas de Deus. A pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade inteira. Com isso, Jesus praticamente inverte a lógica do primeiro mandamento: ao invés de exigir amor para si, é Deus quem ama a humanidade sobre todas as coisas!

Em toda a Bíblia, essa é a única vez em que se afirma que “Deus amou o mundo”. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna. O mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe, recebe a vida eterna. “Eterna”, aqui, não significa duração, mas a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu evangelho. A “vida eterna” não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto. Essa vida é eterna porque é tão plena e cheia de sentido, a ponto de nem a morte poder destruí-la.

Se o primeiro versículo afirma o que o Filho de Deus veio fazer no mundo, o segundo diz o que não veio fazer: condenar (cf. v. 17). Mais uma vez, Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz que condena. Obviamente, quem esperava um Messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros, e assim salvar os primeiros e condenar os segundos não poderia acreditar no Deus revelado por Jesus: um Pai “louco” de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho. Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas religiões falsamente fundadas em nome de Deus.

Enquanto os dois primeiros versículos fazem afirmações sobre Deus, o terceiro se refere aos destinatários dos dons de Deus, ressaltando a liberdade para acolher ou rejeitar a sua oferta de amor (cf. v. 18). Crer, aqui, significa adesão. O ser humano que rejeita a oferta de vida em plenitude que é Jesus fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e, portanto, estará condenado. Isso, porém, não depende de um juízo divino, é opção do ser humano. Deixar de crer no nome do Filho unigênito é se recusar a fazer comunhão com ele. Como toda escolha tem consequências, assim também no caso da adesão ou da rejeição ao Filho de Deus. Quem o rejeita se autoexclui da salvação. A oferta, contudo, é eterna; continua aberta, à espera de resposta positiva da parte da humanidade. Ao revelar o rosto amoroso do Pai, Jesus revela também a sua comunhão com ele.

III. Pistas para reflexão

Os principais traços característicos de Deus são evidenciados na liturgia deste dia. Na impossibilidade de descrever e decifrar o mistério da Santíssima Trindade, é recomendável enfatizar o que os textos bíblicos desta solenidade dizem sobre Deus. Da primeira leitura, é importante destacar que Deus sempre foi acessível ao ser humano, colocando a sua misericórdia e bondade à disposição. Sobre a segunda leitura, pode-se incentivar a comunidade a ser reflexo da Trindade, sobretudo na vivência da concórdia e da paz. O evangelho evidencia a comunhão de Jesus com o Pai e o amor incondicional dos dois. E é o Espírito Santo que faz irradiar essa comunhão até nós.

Pe. Francisco Cornélio Freire Rodrigues

é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN). é presbítero da Diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia – Insaf (Recife) e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte (Mossoró-RN).