Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2022 - ano 63 - número 344 - pág.: edição especial

SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO DO SENHOR – 15 de abril

Por Marcus Mareano

Tudo está consumado

I. INTRODUÇÃO GERAL

A morte de Jesus não se dissocia de sua vida. Jesus viveu como morreu e morreu como viveu. Sua existência humana, cujo cume é a cruz, foi oferta de si mesmo para Deus e para a humanidade.

Excepcionalmente, por causa da celebração da Paixão, neste dia não há missa. A liturgia se centra na Palavra de Deus, a qual recorda o mistério do final da vida de Jesus e o sentido que ele deu à própria existência até a cruz. A esta associamos outras cruzes e outros crucificados da história, até nosso tempo presente. Refletimos também sobre nossa cruz e crucifixão.

Os ritos deste dia nos remetem ao silêncio do abandono de Jesus, ao que ele passou e à sua confiança na ação de Deus. Contemplamos o mistério da cruz para sermos testemunhas de que a morte não vence o amor de Deus pela humanidade. As leituras explicitam esse mistério paradoxal da fé cristã.

II. COMENTÁRIO AOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Is 52,13-53,12)

O quarto cântico do Servo sofredor em Isaías (52,13–53,12) oferece uma imagem de como a comunidade primitiva compreendia o que se passou com Jesus. Encontramos inúmeras referências e alusões a esse trecho no Novo Testamento (Mt 8,17; Mc 15,28; Rm 10,16; 15,21; Jo 12,38; 1Pd 2,22-25).

O texto propõe a contemplação desse servo fiel, desfigurado e desprezado, que, porém, supreendentemente, assume as fraquezas do povo (53,4) e desponta como quem reúne as ovelhas dispersas de Israel (53,6). Ele confia em Deus e aguarda seu triunfo sobre o sofrimento (53,10), bem como a justificação das multidões por sua justiça (53,11).

O Servo é figura enigmática que representa um fiel, algumas pessoas do povo ou o próprio povo sofredor. O autor conheceu essa realidade descrita na leitura durante o exílio da Babilônia, por meio de tanta gente fiel que redimia o povo pela lealdade a Deus.

Jesus, em sua paixão e morte, assemelha-se ao Servo do Senhor não apenas pelo sofrimento vicário, mas também pela confiança em Deus em meio às dores. Ele assume sua missão de Servo até as últimas consequências.

2. II leitura (Hb 4,14-16; 5,7-9)

O autor da carta aos Hebreus faz um convite a nos aproximarmos de Jesus, o Sumo Sacerdote diante de Deus. Com isso, podemos entender o sinal da cruz não como fracasso ou maldição, mas como vitória de Deus e possibilidade de comunhão do humano com o divino. Jesus passou pela cruz para fazermos essa experiência com ele também.

Os destinatários primeiros desse escrito tinham certa nostalgia dos ritos e das outras práticas judaicas, e sofriam para se manterem firmes na profissão de fé em Cristo. Por isso, o autor emprega a imagem do sacerdócio para falar de Jesus, de modo a apresentar a superioridade do seu ato na cruz sobre todos os cultos, oferendas e sacrifícios antigos. Jesus já ofereceu um sacrifício definitivo, de maneira superior e eficaz. Ele, que padeceu na cruz, atravessou os céus e está ao lado de Deus (4,14).

Como foi dito (também em 2,17-18), temos um Sumo Sacerdote capaz de se solidarizar conosco, de se compadecer de nossas fraquezas, tendo sido tentado e posto à prova como nós, sem, todavia, participar do pecado (4,15). Como ele conhece nossas fragilidades, encontramos nele a referência para seguir adiante.

Então, podemos nos aproximar, com toda a confiança e ousadia (parresia), do trono da graça, do trono de Deus, lugar onde ele habita. Ele que é a graça e a fidelidade em pessoa (Ex 34,6). Junto a ele podemos obter misericórdia (amizade leal e comprometida) e alcançar a graça de uma ajuda no momento em que dela precisarmos.

Em Cristo, encontramos a motivação para seguirmos até o fim, como ele próprio não desanimou diante das adversidades.

3. Evangelho (Jo 18,1-19,42)

A narrativa da paixão segundo o Evangelho de João se assemelha à dos sinópticos. Ela segue quase os mesmos fatos, com alguns detalhes próprios desse evangelista.

Para João, a cruz é o enaltecimento de Jesus, a hora esperada e a glorificação. A descrição de Cristo, no final do Quarto Evangelho, enfatiza uma soberania nos acontecimentos. Os sofrimentos finais aparecem na perspectiva da fé pós-pascal, e a trágica experiência dolorosa é iluminada pela glória de Deus. Mais do que a ironia ao redor do “rei dos judeus”, o silêncio da caminhada final até o Gólgota comunica uma mensagem à humanidade. A data da crucificação de Cristo é uma diferença de destaque: Jesus morre no momento em que os judeus matavam os cordeiros para a ceia pascal, significando que ele é o novo cordeiro (Jo 1,29) e, doravante, a Páscoa dos cristãos se distingue da dos judeus.

O relato se inicia com a traição de Judas, a prisão de Jesus, seu processo diante dos sumos sacerdotes Anás e Caifás e a negação de Pedro (18,1-27). Jesus mantém sua opção pela mensagem que anunciara, mesmo com as ameaças presentes (18,22-23). O motivo religioso da condenação eram seus ensinamentos nas sinagogas e no templo. Os líderes preferiam a morte de Jesus (18,14) a conviver com o incômodo daquele movimento criado por ele. Por um lado, vemos uma fragilidade na traição de Judas e nas negações de Pedro; por outro, Jesus se apresenta forte e convicto, não recuando em face das intimidações.

O processo judaico é transferido ao governador Pilatos, representante do Império Romano na região. Ele não compreende por que Jesus estava sendo acusado. Os judeus não executaram Jesus porque não podiam matar no período da festa (18,31). O motivo do juízo agora muda dos ensinamentos para a suposta realeza. Se ele se dizia “rei”, seria uma ameaça para o império; logo, deveria morrer. Jesus é Rei de um reino diferente, que eles não podiam compreender, por isso projetavam sua morte. Enfim, os judeus pediram a soltura de Barrabás e a condenação de Jesus à pena da crucifixão.

Pilatos é apresentado, na narração, como um covarde medroso diante da majestade de Jesus. Ele gostaria de soltar Jesus, porém age sob a pressão dos chefes judaicos (19,8-16). Por sua vez, Jesus age com a soberania e a liberdade de quem compreende Deus e nele espera.

Não lemos muitos detalhes sobre os sofrimentos, o caminho até o Gólgota, a agonia e os açoites. João relata de forma breve e prefere destacar a opção de Jesus por “amar até o fim” (13,1), para que tudo seja “consumado”, levado ao fim (19,30). O evangelista não se preocupa apenas em explicar o que aconteceu, mas também em apresentar o significado do evento. A cruz é glória e exaltação do Filho de Deus, a “hora” chegada de Jesus.

Com isso, podemos celebrar a Paixão do Senhor recordando o amor, a doação e a fidelidade de Jesus a Deus, o Pai, até o final de sua existência. Com sua vida e sua morte, Jesus desce para abraçar todos os silêncios e, dessa forma, reapresentar a vida como possibilidade de salvação.

Cabe-nos acolher a cruz como testemunho do amor de Deus manifestado em Jesus. Assim, as procissões e outras práticas de piedade destes dias devem contribuir para nossa fé e para o seguimento da cruz que realizamos hoje. Não é necessário destacar o sofrimento por ele mesmo.

III. PISTAS PARA A REFLEXÃO

Na primeira leitura, temos a imagem do Servo sofredor. Na segunda leitura, apresenta-se o Sumo Sacerdote que se compadece de nossas fraquezas. No Evangelho, acompanhamos o homem traído e abandonado, que confia em Deus. Muitas compreensões distorcidas da pessoa de Jesus circulam em nossas comunidades. As leituras nos situam diante de uma realidade por vezes negada em algumas pregações.

Olhando a vida de Jesus, principalmente como suportou tantos momentos, podemos pensar também nas inúmeras cruzes dos nossos tempos: a desigualdade social, o descuido com a casa comum, a corrupção, os diversos tipos de injustiças etc. Nossa fé nos instiga a encontrar a luz de Deus em meio a tais trevas e ressaltar sua força atuante na história humana.

O clamor dos crucificados da atualidade chega aos ouvidos de Deus. A ressurreição do Filho continua a se realizar em cada resistência às diferentes mortes e no ânimo de seguir com empenho na luta pela vida. Que o sangue e a água jorrados do lado de Jesus, símbolos de sua existência ofertada, inspirem-nos a viver para servir e doar-nos.

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]