Roteiros homiléticos

Publicado em julho-agosto de 2021 - ano 62 - número 340 - pág.: 56-59

SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA – 15 de agosto

Por Marcus Mareano

A vida plena em Deus

I. INTRODUÇÃO GERAL

O mistério da assunção nos faz voltar o olhar para o alto, para o mistério de Deus, para a destinação final de todos nós. Ao mesmo tempo, olhamos para nossa realidade terrena, material e carnal, na qual Deus se manifesta. Maria foi “assunta” aos céus “a partir de” e “com” nossa realidade humana.

A solenidade celebra a proclamação do dogma por Pio XII em 1º de novembro de 1950. Conforme lemos no documento Munificentissimus Deus: “A imaculada Mãe de Deus, a sempre virgem Maria, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial”. O enunciado do magistério não explica “como” aconteceu esse evento, apenas comunica o final da vida de Maria, a mãe de Jesus.

Maria compartilha o destino do Filho, o qual um dia também compartilharemos. Ela participou da vida de Jesus, foi discípula fiel, parte da comunidade perseverante na oração e apóstola do mistério de Cristo. Então, foi ressuscitada por Deus, ou seja, foi assumida de corpo e alma, em sua totalidade, por Ele.

A destinação de Maria diz respeito também à nossa destinação final. Esperamos participar da ressurreição de Jesus como ela já participa. Professamos essa fé e aguardamos a realização, em nosso corpo, dessa glorificação definitiva.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Ap 11,19a;12,1.3-6a.10ab)

A primeira leitura narra a abertura do santuário de Deus no céu, a qual foi seguida de uma série de manifestações consequentes da visão da esfera celestial: relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e tempestade de granizo (Ap 11,19b). Esses fenômenos naturais acompanhavam as teofanias no Antigo Testamento. O texto quer mostrar que algo divino está se manifestando.

Então, aparece nessa dimensão transcendente, o céu, um grande “sinal”. O Apocalipse usa esse termo para evocar os feitos divinos maravilhosos ou estupendos, assim como o livro do Êxodo fala dos “sinais” que Deus fez para o povo na saída do Egito. Surge uma mulher gloriosa, com características celestiais e divinas, pois era revestida de astros; vestida com o sol, possuía a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça, uma coroa de doze estrelas (v. 1). Estava grávida e gritava por causa das dores de parto, como a descrição em Gn 3,15-16, pois estava sofrendo com o trabalho de dar à luz o Messias (v. 5).

Em contrapartida, aparece outro sinal no céu, contrastando com o anterior: uma hostilidade, uma adversidade, um grande Dragão, avermelhado como fogo (v. 3). Ele tinha sete cabeças (plenitude de poder político – Ap 17,3.7.9) e dez chifres (grande número de vassalos – Ap 17,12.16) e, sobre as cabeças, sete diademas (insígnias de realeza). Seu poder e fúria são descritos por meio dessas cabeças, chifres e diademas.

A Mulher, representação da comunidade de fé, a Igreja, fugiu para o deserto, lugar valioso de refúgio dos perseguidos, oposto à cidade e evocador da ação de Deus (Ex 2,15; 1Rs 19,3-4; 1Mc 2,29-30). No tempo em que o livro foi escrito, a comunidade cristã de Jerusalém, expulsa pelo Império Romano por causa da Guerra Judaica, teve de se refugiar no deserto, do outro lado do rio Jordão (em Pela). O autor lembra o tempo do êxodo, no qual Deus tinha alimentado o povo de Israel no deserto do Sinai (Ex 16; Sl 78), e assim Ele prepara novamente um lugar onde seu povo seja alimentado durante 1.260 dias (Ap 11,2), como outrora o povo de Israel.

O trecho selecionado para a liturgia conclui com a proclamação da vitória de Deus: “agora chegou a salvação” (v. 10a). O acusador e perseguidor da comunidade de fé é derrotado pela chegada do Reino de Deus, do poder e da autoridade de Cristo. Assim, Maria assunta ao céu, celebrada nesta solenidade, representa essa vitória, da qual nós participamos prolepticamente por meio da fé.

2. II leitura (1Cor 15,20-27a)

Na comunidade de Corinto, Paulo enfrentava um problema de cunho doutrinal, a saber, a negação da ressurreição. Alguns fiéis, em virtude de uma compreensão antropológica diferente, segundo a qual o corpo não participaria da salvação escatológica, negavam a ressurreição dos mortos e a de Cristo (1Cor 15,12).

Essa negação vinha de uma perspectiva espiritualista platônica, dualista, na qual não se aceitava uma vida “corpórea” no além-morte. O corpo ressuscitar, nesse entendimento errôneo, significava um rebaixamento e uma contradição à vida espiritual, pois os espirituais já teriam atingido a perfeição da sabedoria e do uso dos carismas. Por isso já se sentiam ressuscitados, alienando-se do momento presente e considerando a morte sem o acréscimo de realidades novas.

O ponto de partida da argumentação de Paulo é o credo cristão primitivo (1Cor 15,3-5), segundo o qual Cristo morreu pelos nossos pecados (1Cor 15,3), foi sepultado (1Cor 15,4a), foi ressuscitado ao terceiro dia (1Cor 15,4b), apareceu a Cefas e a um grupo de discípulos (1Cor 15,5).

Então, a passagem da liturgia deste domingo afirma a ressurreição de Cristo como primícias dos que morreram (v. 20). Portanto, em Cristo, todos ressuscitarão conforme seu tempo, sua ordem e momento (v. 22-23). A celebração da Assunção de Maria afirma a participação de Maria no mistério da ressurreição, do qual um dia também participaremos. Os dois eventos (ressurreição de Jesus e assunção de Maria) proclamam a vitória do amor de Deus sobre o pecado humano, a superação da morte pela vida e o triunfo da comunhão sobre a separação.

Para Paulo, a corporeidade humana é atingida pela ação salvífica de Deus. O Cristo crucificado e ressuscitado possui um corpo (1Cor 10,16; 11,27). A ressurreição puramente espiritual não corresponde ao sentido do batismo, pois por ele o cristão é inserido no corpo de Cristo, para que a morte seja superada e vencida pela força ressuscitadora do Espírito Santo.

3. Evangelho (Lc 1,39-56)

A mirada para o além, para a destinação final e para a assunção não pode nos distrair da realidade pragmática na qual vivemos. O Evangelho apresenta indicações de como Maria praticava sua fé: escuta de Deus, disponibilidade para servir e reconhecimento das maravilhas do Senhor na própria vida.

A passagem se inicia com Maria “levantando-se e indo apressadamente”, desde Nazaré da Galileia até as montanhas da Judeia, para chegar à casa de sua prima Isabel. A novidade anunciada pelo anjo (Lc 1,26-38) não a acomoda, mas põe a “serva do Senhor” em movimento para servir a quem precisa. Ela visita porque foi visitada por Deus! Isabel, representante da esperança do povo de Israel, estava grávida do precursor do Messias. O encontro entre as duas mulheres e entre as duas crianças repercute fisicamente em seus ventres e nas emoções de ambas as mães (v. 39-45). A esperança se encontra com a realização da promessa.

Na sequência, Maria canta, enaltecendo o Senhor, que fez maravilhas por ela e por seu povo (v. 46-55). O Magnificat é proclamação forte, aguerrida e revolucionária da ação divina na história humana. Demonstra a predileção de Deus pelos humildes e pobres, e o desejo de estabelecimento de um mundo de relações mais igualitárias e justas. Cantando, Maria resume os feitos do Senhor na história do povo de Israel e prolonga seu “sim” comprometido com o projeto salvífico de Deus.

Por fim, a imagem da mulher grávida, capaz de dar à luz a novidade de Deus para o mundo, une-se à imagem da mulher assunta e acolhida por Deus. A espera inicial do “novo” se liga ao destino dado pelo Senhor como dom aos que creem. Maria, mulher de fé, precedeu-nos!

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Relendo o dogma da Assunção de Maria e pensando em suas repercussões, podemos compreender que não somos uma alma aprisionada em um corpo. Este não constitui um empecilho para nossa plena realização como seres humanos destinados à comunhão com Deus. Ao contrário, na ressurreição, nossa corporeidade é resgatada e transfigurada no absoluto mistério de Deus.

Assim, Maria, glorificada no céu em corpo e alma, é a imagem e o começo da Igreja e da humanidade do futuro, um sinal escatológico de esperança e consolo para o povo de Deus que caminha para a pátria definitiva. As pessoas que vivem uma consagração específica em um carisma explicitam esse sinal escatológico. Vivem no aquém as realidades do além, como ensina o dogma da Assunção de Maria.

O papa Francisco, pensando na Assunção de Maria, reza desta maneira: “Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou, com o coração trespassado, a morte de Jesus, assim também agora se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente transfigurada, e todas as criaturas cantam sua beleza” (Laudato Si’, n. 241). Que seja assim nossa oração e que ela se torne ação e compromisso de fé e vida.

Marcus Mareano

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da Paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]