Roteiros homiléticos

Publicado em julho-agosto de 2021 - ano 62 - número 340 - pág.: 39-42

SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO – 4 de julho

Por Marcus Mareano*

A Igreja se constitui a partir das pessoas

I. INTRODUÇÃO GERAL

Celebrar a memória dos discípulos é recordar sua caminhada de fé e pensar no nosso processo de seguimento de Jesus. Os dois principais apóstolos da comunidade primitiva são recordados em uma solenidade que nos convida ao compromisso de fé e à missão.

Paulo se dedicou à missão entre os pagãos. Não conviveu com Jesus terreno nem fez parte dos primeiros seguidores da Galileia. Sua experiência de encontro com Cristo aconteceu no caminho de Damasco, conforme lemos em At 9,1-22. Paulo deixa de ser um perseguidor dos cristãos para se tornar um proclamador do Evangelho, provado nas tribulações decorrentes dessa causa e martirizado por testemunhar a fé em Jesus até o fim da vida.

Simão foi convidado para compor o grupo dos primeiros discípulos. Acostumado com o ofício de pescador no mar da Galileia, encanta-se com a pregação do andarilho galileu que por ali passava, anunciando uma Boa-nova (Mc 1,16-20). Ele acompanha Jesus, conhece-o mais profundamente, aprende seus ensinamentos e é constituído como uma “pedra”, isto é, como uma rocha, para confirmar os irmãos na fé (Mt 16,18). No entanto, não esconde sua fragilidade, ao negar Jesus diante das ameaças (Mc 14,66-72).

Cada qual, por seu próprio caminho e com sua história particular, é chamado igualmente ao seguimento de Jesus. As diferenças não nos fazem divergentes ou excludentes, mas colaboram para nos completarmos mutuamente e nos enriquecermos com os dons uns dos outros. Celebrar a solenidade deste domingo nos insere na dinâmica do discipulado, tal como vivida por esses dois corifeus da nossa fé.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (At 12,1-11)

A primeira leitura destaca o personagem Pedro. A narrativa apresenta uma descrição de como viviam os primeiros cristãos logo após a ressurreição de Jesus. Os chefes do poder religioso e político daquele tempo se incomodavam com o grupo que estava surgindo. A fim de paralisar o movimento criado por Jesus, dever-se-ia eliminar seus seguidores. Não se sabia do que eram capazes e que ameaças causariam, por isso a perseguição.

O trecho se inicia com a menção ao martírio de Tiago, irmão de João (At 12,2), morto pela espada. Em seguida, Herodes, vendo que a atitude agradava aos judeus, mandou prender Pedro para apresentá-lo na Páscoa judaica, semelhantemente ao que aconteceu com Jesus (Mc 15,1-15).

Lucas, o autor dos Atos dos Apóstolos, enfatiza a oração (At 12,5), por cuja força Pedro se livra da prisão. A oração da comunidade é respondida com a intervenção de um anjo, mensageiro de Deus, que anuncia: “Levanta-te depressa” (At 12,7). A oração encontra resposta prática na libertação de Pedro, como muitas vezes experimentamos quando pedimos e ou agradecemos a Deus.

Ao final do evento, Pedro reconhece que aquele era um enviado de Deus e que este agiu para livrá-lo de Herodes. Deus é o libertador de Israel (Ex 18,10; Dn 3,95). Quando olhamos um evento passado, percebemos, mais e melhor, a ação misteriosa e silenciosa de Deus. No afã de resolver uma situação ou de nos livrar de um problema, muitas vezes não sentimos de pronto a presença amorosa de Deus, que sempre permanece conosco.

As cadeias podem ser superadas quando a oração em comum ganha força e se torna vida. Não é um ato mágico que se faz para obter resultados imediatos. A oração nos transforma e nos compromete a atuar de uma maneira melhor. Deus age por meio de cada um que abre o interior para a realização de suas maravilhas.

2. II leitura (2Tm 4,6-8.17-18)

A segunda leitura enfatiza a figura de Paulo. A passagem se assemelha a um testamento espiritual. Embora a autoria não seja do próprio apóstolo, o texto carrega suas características e seu ambiente de formação.

Primeiramente, lemos a imagem do sacrifício (2Tm 4,6; Hb 10,10) e, em seguida, os temas da luta e da competição esportiva (2Tm 4,7; 1Tm 6,12), devido ao desfecho de uma vida oferecida em prol da evangelização. Por conseguinte, espera-se um “prêmio”, uma coroa, como a que os competidores ganhavam (2Tm 4,8). No entanto, o galardão não é material nem passageiro, mas espiritual e eterno, que se recebe de Cristo.

A segunda parte da passagem demonstra o reconhecimento do auxílio divino em meio às intempéries da vida cristã. O Senhor veio em auxílio de Paulo e lhe deu força para que a proclamação da salvação fosse ouvida por todas as nações. Da mesma forma, livrará o apóstolo dos que lhe queriam mal. A Deus, a glória eternamente, pois continua a nos livrar dos males e a nos salvar em sua misericórdia.

O texto nos faz imaginar o fim de vida de um discípulo de Jesus. Não se olha tanto para as provas passadas, mas para a presença do Senhor em meio a todas elas. E, ainda, sente-se a reverência a essa ação divina. Assim, observamos o quanto vale a pena seguir Jesus. Não somente por um “prêmio” prometido, mas sobretudo por um amor constante, que se experimenta na realidade vivida. Que tenhamos esses sentimentos de gratidão e reconhecimento da ação de Deus.

3. Evangelho (Mt 16,13-19)

O episódio do Evangelho do dia tem como centro a fé dos discípulos em Jesus. Contudo, Simão se torna o porta-voz do grupo na confissão de fé. Por conseguinte, Jesus designa-lhe uma missão, confere-lhe nova identidade.

A questão proposta por Jesus em Mt 16,13-19 é fundamental para a compreensão da sua identidade. Os discípulos caminhavam com ele e, apesar do entusiasmo, ainda não sabiam tão bem quem ele era nem tinham certeza da sua missão como Messias.

O destino final da viagem é Jerusalém (onde será crucificado e ressuscitará), mas no caminho, passando pela região de Cesareia de Filipe, Jesus os interpela: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (Mt 16,13). A questão era a percepção que os outros tinham de Jesus, qual ideia sobre ele circulava entre as pessoas, o que achavam de tudo que era feito e dito. Os discípulos respondem: “Alguns dizem que é João Batista; outros, que é Jeremias ou um dos profetas” (Mt 16,14). A multidão percebia que Jesus falava em nome de Deus, como um profeta, como alguém da parte de Deus, mas não reconhecia sua identidade mais profunda.

A seguir, o questionamento se transfere diretamente aos discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). Aquele grupo já tinha uma caminhada com Jesus, conhecia-o mais do que a multidão e podia afirmar algo mais do que aquelas pessoas empolgadas, por isso Simão Pedro, como porta-voz dos outros, diz: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). Eles reconhecem em Jesus o esperado pelo povo de Israel, um revolucionário, alguém que fosse libertar os judeus da dominação romana.

A resposta acertada causa admiração em Jesus. Pedro é bem-aventurado por reconhecer algo tão valioso para o novo seguimento em que o grupo se empenhava. No entanto, esse entendimento tem origem em Deus, não é esforço da inteligência humana, não foram a carne e o sangue que revelaram isso a Pedro (Mt 16,17).

Por conseguinte, Jesus confere nova identidade àquele companheiro. Pedro é designado como pedra, rocha, representando o compromisso de manter-se firme e confirmar os outros do grupo na fé professada.

Para isso, Pedro recebe as chaves (Is 22,22) do Reino dos céus e o poder de ligar e desligar as coisas dos céus e da terra (Mt 16,19). A referência quer explicitar a missão da Igreja de refletir o mistério do Reino anunciado por Cristo. O que for de acordo com o que está no céu deve ser também na terra e vice-versa.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

A Igreja se constituiu a partir daqueles primeiros discípulos e foi se ampliando pelos séculos até nossos tempos. Atualmente, formamos a comunidade que segue o caminho de/com Jesus e ouve a Palavra de Deus com a mesma indagação: “O que você diz que eu sou?”

Unidos aos apóstolos Pedro e Paulo e à Tradição eclesial, renovamos nossa profissão de fé em Jesus. Ao reconhecermos quem ele é, ouvimos também quem somos para ele, nossa importância para a edificação da Igreja, sacramento do Reino de Deus no mundo.

Por causa desta solenidade, recordamos hoje o “dia do papa”. Quando iniciou seu pontificado, em um gesto memorável, o papa Francisco pediu que todos rezassem por ele. A oração nos une em um mistério de comunhão de amor com Deus e uns com os outros. Assim, formamos a Igreja que segue a Jesus, professa a fé e se mantém em oração e comunhão até a plenitude do Reino.

Marcus Mareano*

é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da Paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]