Roteiros homiléticos

Todos os Santos – 4 de novembro

Por Zuleica Aparecida Silvano

I. Introdução geral Neste ano dedicado ao laicato, é muito significativo celebrar a solenidade de Todos os Santos e Santas, pois o caminho de santidade tem sua raiz principal na graça batismal, no ser introduzido no mistério pascal de Cristo e receber seu Espírito. Esse caminho é um dom, mas é também um convite constante ao compromisso com o Reino de Deus (evangelho). A Igreja, ao fazer memória de seus santos (canonizados ou não) e mártires, ensina que é possível a todos percorrer esse caminho, mesmo diante de forças adversas (I leitura). O evangelho de hoje nos faz recordar as palavras do papa Francisco em sua Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE) sobre a santidade: “Se um de nós se questionar sobre como fazer para chegar a ser um bom cristão, a resposta é simples: é necessário fazer [...] aquilo que Jesus disse no sermão da bem-aventurança” (GE 63). De fato, ser santo é viver como filho de Deus, deixar-se transformar, entregar-se à vivência do amor (II leitura) e seguir Jesus Cristo no dia a dia, tendo como programa de vida as bem-aventuranças (evangelho). II. Comentário dos textos bíblicos
  1. I leitura: Ap 7,2-4.9-14
Este texto do Apocalipse objetiva animar as comunidades cristãs a permanecer fiéis a Cristo, sobretudo diante da perseguição e das tribulações. O capítulo 7 está situado na seção da abertura dos selos (6,1-7,17) e é resposta à pergunta do capítulo precedente (Ap 6,17): quem poderá ser considerado inocente (“ficar em pé”) no dia da intervenção final e do julgamento de Deus? A resposta é: aquele que permanece fiel ao seguimento de Jesus Cristo, mesmo que isso possa lhe custar a entrega da própria vida. A primeira cena (vv. 2-4) tem como contexto a terra, sob ameaça dos ventos que vêm dos quatro ângulos, considerados ventos nocivos e destruidores (cf. 1 Henoc 76). Os servos, porém, serão poupados por meio de uma intervenção direta e gratuita de Deus, conforme anuncia o quinto anjo encarregado por Deus de dar as ordens aos mensageiros descritos no v. 1. Ser assinalado na fronte, como mencionado no v. 3, é expressão da proteção divina (cf. Ex 12,21-30), e os assinalados, provavelmente, são aqueles que não se deixaram contaminar pela idolatria (cf. Ez 9,1-11) e, portanto, pertencem a Deus. Esses dois comentários ajudam a compreender o significado de sermos assinalados no rito do batismo. O número 144 mil é simbólico (v. 4), indica que são muitos e formam uma totalidade perfeita (144 mil é um número perfeito, resultado da multiplicação de 12 x 12 x 1.000). Provavelmente, refere-se ao povo de Deus que será preservado das ameaças e dos flagelos pela sua fidelidade ao Deus vivente (cf. Nm 1,20-43). A segunda visão (vv. 9-14) apresenta uma multidão incontável, proveniente de todas as nações (universalidade). A túnica branca retrata a salvação e, no Apocalipse, foi prometida aos vitoriosos e aos mártires (3,4; 6,11), ou seja, àqueles que são fiéis ao projeto de Deus e venceram as forças que se opõem a Cristo. Da mesma forma que Deus salvou Israel da escravidão do Egito, também o Cordeiro salvará aqueles que resistiram a toda opressão. A vitória e a salvação pertencem a Deus e ao seu Cordeiro. Deste modo, os mártires e os perseguidos (que passaram pela tribulação) participam da Paixão de Cristo, mas também de sua vitória. A pergunta do ancião, no v. 13, tem a finalidade de enfatizar a solenidade da revelação e o significado do simbolismo das “túnicas brancas”. A resposta paradoxal de que as túnicas são brancas porque foram lavadas no sangue do Cordeiro nos faz vislumbrar a salvação final, já experimentada, mas não totalmente, ao aderirem a Jesus, o Messias, e serem introduzidos no tempo messiânico pelo batismo. Deste modo, a purificação trazida pelo sangue do Cordeiro permite aos cristãos realizar um culto agradável a Deus por meio de sua vivência comunitária e pelo cumprimento da missão, dada a cada um, de anunciar o Reino de Deus e de por ele chegar a doar a própria vida.
  1. Evangelho: Mt 5,1-12a
As bem-aventuranças marcam o início dos discursos sobre o Reino de Deus no Evangelho segundo Mateus. Os destinatários da mensagem de Jesus são pessoas provenientes de vários lugares (tanto de Israel como das regiões dos gentios), ou seja, todas as nações (cf. Mt 4,25). Jesus sobe ao monte e assume a posição de Mestre. O monte é o lugar da revelação e é o local onde Jesus ensina com autoridade (cf. Mt 7,28-29). É possível estabelecer um paralelismo entre Jesus e Moisés. Moisés subia ao Sinai para receber a Lei de Deus destinada a Israel (cf. Ex 19,3; 24,15.18), sinal da aliança entre Deus e o povo, enquanto Jesus, como Messias e Filho de Deus, sobe ao monte para apresentar não uma Lei, mas um programa de vida, e para estabelecer nova aliança com toda a humanidade (cf. Mt 5,1-7,27). A bem-aventurança é o resultado daquilo que é constatado após uma sequência de fatos. Por isso está relacionado ao passado e ao presente, e não somente ao futuro. As bem-aventuranças, em Mt, podem ter um caráter escatológico, no sentido do “já e ainda não”: ou seja, já acontecem e são reveladas nos gestos de Jesus Cristo, que inaugura o Reino de Deus, e daqueles que seguem o Messias Jesus, mas serão vivenciadas em sua plenitude na salvação futura. O papa Francisco afirma que ser “bem-aventurado” tornou-se sinônimo de ser santo, “porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra, na doação de si mesma, vive a verdadeira felicidade” (GE 64). O discurso das bem-aventuranças é o alegre anúncio do Reino de Deus, dirigido ao povo pobre, oprimido, indefeso, marginalizado, aflito. Em Cristo, Deus vem para defender, consolar, acolher, ouvir novamente o clamor do povo. Deste modo, as bem-aventuranças descrevem o modo cristão de viver o seguimento de Jesus, de estar em comunidade, na história. É um convite à mudança de mentalidade ao qual não podemos ficar indiferentes (cf. Mt 4,17). Essa mudança tem como critério a novidade do Reino, que nos desconcerta, visto serem chamados de “felizes” aqueles que a sociedade despreza, exclui, os considerados “infelizes”. A primeira bem-aventurança é dirigida aos “pobres em espírito”, no entanto não podemos interpretá-los como aqueles que toleram passivamente a pobreza. “Pobre” é a pessoa que tem consciência de sua total dependência de Deus. Por isso, está disponível a cumprir a sua vontade, pois tem consciência de que não é possível depositar sua confiança na riqueza ou nos bens. No texto, chama a atenção a relação existente entre os “pobres em espírito” (v. 3) e os que “vivem perseguidos por causa da justiça” (v. 10), pois em ambos os casos o verbo “ser” está no presente (“porque deles é...”) e a herança consiste no Reino de Deus. Desse modo, é legítimo afirmar que os “pobres em espírito” são os perseguidos por causa da justiça, ou seja, os que sofrem nas mãos dos opositores a Cristo, os que acreditam que o Reino de justiça, vivido e anunciado por Jesus, não é sonho utópico e por isso lutam e resistem para que esse Reino aconteça. Um texto que poderia nos ajudar a entender os “pobres em espírito” é Mt 25,34-40, no qual se afirma que aqueles que têm compaixão para com os mais pobres herdarão o Reino de Deus. Assim, os “pobres em espírito” são também aqueles que são solidários, dóceis à Palavra e abertos à incessante novidade de Deus. Os aflitos, contemplados na segunda bem-aventurança, são os que sofrem por causa das forças do mal, os que são vítimas da opressão e da violência. O termo “consolar” – que literalmente pode ser traduzido por “chamar para junto de”, ou seja, defender, intervir em favor daquele que não pode se libertar sozinho – remete-nos à missão profética descrita em Is 61,1-2. A terceira bem-aventurança está baseada no Sl 37,11, quando menciona os injustamente desapropriados de suas terras. Por isso, podemos traduzir por felizes os oprimidos, os fracos, os que se encontram em condições lastimáveis e percebem, pelo anúncio de Jesus, ser possível restituir sua dignidade e contar com a partilha, na qual todos terão o necessário para sobreviver. Os que têm fome e sede de justiça são aqueles que optaram por viver a justiça de tal forma, que ela perpassa seu modo de ser, de pensar, de agir, é uma necessidade. Justiça significa ter justa relação com Deus, com o próximo e consigo mesmo. Justo é alguém que se deixa configurar a Cristo, alguém que se insere no processo de humanização de suas relações, alguém que deseja e constrói uma sociedade justa e fraterna. A bem-aventurança seguinte é centrada na misericórdia, tema fundamental em Mt, a qual se expressa na compaixão para com o outro por meio de gestos concretos (cf. Mt 9,13; 12,7; 25,35-37) e no perdão nas relações comunitárias (cf. Mt 18,33). A expressão “puro de coração” nos reporta ao Sl 24. A maior das impurezas é a “morte”, assim os “puros de coração” são aqueles que promovem a vida e experimentam profundamente a presença do Deus da vida. A “pureza de coração” também está ligada à santidade e à integridade interior. A expressão “os que promovem a paz” pode ser interpretada como referência aos justos (cf. Sl 34,15), por terem uma vida perpassada por valores éticos. A paz é a síntese dos bens prometidos por Deus para os tempos messiânicos. Trabalhar pela paz, portanto, é ser colaborador de Deus na construção de seu Reino. Ser perseguido é a experiência dos cristãos, membros das comunidades primitivas, como é o caso da de Mateus, por serem seguidores do Mestre Jesus e fiéis às suas palavras e gestos.
  1. II leitura: 1Jo 3,1-3
      Este texto se inicia com uma exultação, motivada pela constatação de que o cristão que experimenta o amor de Deus Pai, pela adesão a Jesus e por meio do batismo, é filho de Deus. No v. 1, a palavra “mundo” deve ser entendida como tudo aquilo que se opõe a Cristo. Na primeira carta de João, são aqueles que não reconhecem Jesus como Messias e Filho de Deus. A frase “como ele é” (v. 2), neste contexto, ressalta a diferença entre conhecer Jesus Cristo e o Pai por meio da fé e a visão de Deus, em sua glória, no fim dos tempos. A expressão “santificar a si mesmo” ou “purifica a si mesmo” (v. 3) pertence ao âmbito cultual e pode ser também entendida no sentido ético, ou seja, tornamo-nos semelhantes a Cristo quando agimos conforme seus ensinamentos, tão bem retratados no evangelho, e deste modo vamos sendo santificados. III. Pistas para reflexão As leituras desta solenidade de Todos os Santos e Santas nos ajudam a compreender a vocação universal à santidade. Vocação que fomos convidados a reavivar por meio da instituição do Ano do Laicato e por meio da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, do papa Francisco. Elas também contribuem para esclarecer as concepções errôneas de que a santidade é algo ultrapassado, que nem cabe considerar, ou algo tão distante, que não é possível atingir, restando-nos desistir e continuar com uma vida cristã acomodada. Ser santo não consiste num desenfreado esforço humano e num afastamento quase total de tudo o que esteja ligado às “coisas do mundo”; significa, antes, viver profundamente o nosso ser batizado, que é um dom, uma graça recebida de Deus (II leitura), mas supõe uma resposta, um compromisso com o Reino de Deus e uma vida pautada pelas bem-aventuranças (evangelho). Nesta solenidade, cada cristão é ainda convocado a permanecer fiel a Cristo, resistir à perseguição e às realidades que se opõem ao projeto de Deus (I leitura) e também fazer memória dos santos e santas (canonizados ou não) e dos mártires da América Latina, que tão bem souberam viver as bem-aventuranças e expressá-las nos pequenos gestos no cotidiano (GE 16).

Zuleica Aparecida Silvano

Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFGRS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte. E-mail: [email protected]