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Publicado em número 183 - (pp. 21-26)

Padre Ibiapina a caminho da beatificação

(Entrevista com o Pe. José Comblin)

VIDA PASTORAL (VP): Dom Marcelo Carvalheira, bispo de Guarabira, está promovendo, com muito empenho, a beatificação do Pe. Ibiapina. O senhor acha importante beatificar uma pessoa que viveu no século passado? Essa pessoa teria ainda alguma coisa a dizer às pessoas que vivem no final do século XX?

Pe. Comblin: É verdade que o mundo atual, dito pós-moderno, tem pouco interesse pelo passado. Vive no momento presente e não se preocupa nem pelo passado, nem pelo futuro. Entretanto, nenhum povo pode viver muito tempo com tais disposições. Um povo que não tem história, ou ignora a sua história, não tem referência e terá de enfrentar crises de identidade. Além disso, as elites latino-americanas ainda não assumiram a sua própria história. Consideram os seus países como apêndices das nações líderes do mundo ocidental. Imaginam que o seu passado é a história europeia. A nossa Igreja também valoriza pouco o seu passado. Uma prova disso é que até agora nenhum brasileiro nato foi canonizado ou sequer beatificado. Não é por falta de santos, mas por falta de interesse por parte do clero e das Igrejas locais. Essas preferem projetar-se nas figuras de santos europeus. Por exemplo, aqui no Brasil venera-se São João Maria Vianney, o cura de Ars, como modelo dos sacerdotes. Ora, há uma distância infinita entre o cura de Ars e a história dos sacerdotes no Brasil. A figura de São João Maria Vianney é totalmente inimitável: alguém que foi vigá­rio de uma paróquia de 228 habitantes, cujo maior problema pastoral foi a existência de duas bodegas no território da paróquia — flagelo que conseguiu eliminar depois de anos de insistência. Os desafios dos padres no Brasil são outros. Por isso é realmente útil apresentar como referência pessoas que pertencem à história do próprio país, que construíram a nossa Igreja, e cuja obra queremos continuar.

 

VP: Muitos católicos desconhecem a figura do padre Ibiapina, sobretudo no Centro e no Sul do Brasil. Quem foi o Padre Ibiapina?

Pe. Comblin: José Antônio de Maria Ibiapina era, como tantas figuras eminentes da Igreja do Brasil, natural do Ceará. Nasceu em 1805 no povoado de Ibiapina, município de Sobral. O pai dele deu a todos os filhos o sobrenome de Ibiapina em memória do povoado em que residiu vários anos. Quando tinha 19 nos de idade, o jovem Antônio perdeu o pai e o irmão na repressão que seguiu a revolução de 1824, que pretendia instalar no Nordeste a “República do Equador”. O pai foi fuzilado e o irmão desterrado na ilha de Fernando de Noronha, onde foi morto clandestinamente. O jovem Antônio, que se preparava para o sacerdócio no Seminário de Olinda, teve de assumir os seus irmãos mais jovens, pois a mãe tinha falecido anterior­mente. Uma vez resolvido o problema dos irmãos, o jovem voltou para Recife. Entrou na primeira turma da faculdade de direito fundada em 1828 em Olinda. Pertenceu à primeira turma de bacharéis formados no Brasil. Logo após ter-se formado foi encarregado de ministrar o curso de direito romano. Após um ano voltou para o Ceará. Foi nomeado juiz de direito e chefe da polícia em Quixeramobim. Não permaneceu aí nem um ano, por constatar que o poder judiciário estava totalmente subordinado aos coronéis locais. Em 1833 foi eleito deputado geral para representar o Ceará na Assembleia Geral no Rio de Janeiro. Cumpriu um mandato de quatro anos (1834-1837) com tal destaque que lhe foi oferecido um ministério. Porém, ficou desanimado diante do ambiente de corrupção e de clientelismo político. Não aceitou sequer um segundo mandato. Voltou para Recife. Exerceu a advocacia de 1838 a 1850, primeiro na Paraíba e depois, durante dez anos, no Recife, onde adquiriu a fama de defensor dos pobres e abandonados. Teve alguns desgostos e retirou-se para a vida contemplativa. Em 1853 foi-lhe oferecido o sacerdócio. Aceitou. Em três semanas recebeu o subdiaconato, o diaconato e o presbiterato. Não lhe foi necessário passar pelo Seminário. Ele entendia mais de teologia que os professores do Seminário. Aliás, logo depois da ordenação foi nomeado vigário geral e professor do Seminário. Embora não fosse esse seu desejo, aceitou para não desagradar o bispo. Mas depois de dois anos decidiu abandonar a cidade e ir para o interior, dedicando-se à evangelização do sertão. Aproveitou uma epidemia de cólera que assolava o interior de Pernambuco e da Paraíba. Então, entre 1855 e 1875, dedicou-se a pregar missões para o povo sertanejo. Percorreu os Estados de Pernambuco, Paraíba, Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte numa época em que não havia estradas, mas apenas sendeiros e caminhos de índios. A partir de 1875/6 ficou paralítico e não pôde mais deixar a Casa de Santa Fé de Arara, onde tinha estabelecido o centro de sua vida missionária. Morreu no dia 19 de fevereiro de 1883.

 

VP: O que há de especial na vida missionária de Padre Ibiapina? Não houve na história do Brasil muitos missionários semelhantes?

Pe. Comblin: Antes de tudo é interessante observar que, até então, os missionários do interior do Nordeste tinham sido os capuchinhos italianos — os jesuítas os haviam antecedido. Padre Ibiapina, nascido naquela terra, profundo conhecedor do seu povo, foi o primeiro a realizar aí essa missão. Em segundo lugar, Padre Ibiapina já tinha uma brilhante carreira de leigo ao entrar na vida missionária. Tinha sido advogado, juiz de direito, chefe de polícia e deputado geral (o equivalente a deputado federal hoje). Era um dos homens mais marcantes de sua geração, não pelo nome da família, mas pelo valor pessoal e pela ascensão social que tinha conseguido no meio de tantas adversidades. Uma vez ordenado, seu nome já era mencionado para a próxima promoção episcopal. Em lugar de uma brilhante carreira eclesiástica, escolheu o mundo dos pobres. Escolheu ir para o interior, desempenhando aí uma vida estafante, de privações, de desafios materiais e humanos permanentes. Fez, com toda a liberdade, a opção pelos pobres. Não como quem não tem outra opção possível, mas como quem tinha todas as portas abertas na sociedade do seu tempo. Além disso, fez essa opção quando já tinha quase 50 anos — idade em que muitos já estão pensando na aposentadoria. Nessa idade iniciou uma vida nova, que ia durar quase 30 anos.

 

VP: Não é estranho que um sacerdote diocesano se dedique às missões, quando o comum é que os sacerdotes diocesanos realizem o seu ministério como vigários de paróquias? Padre Ibiapina não podia ter sido um vigário do interior?

Pe. Comblin: É exatamente isso que é interessante. Ele descobriu por intuição que a evangelização consiste em ir ao encontro das pessoas. Descobriu que o importante é anunciar o evangelho para provocar a conversão. Depois da conversão, a tarefa de administrar as comunidades na vida diária é mais fácil. Hoje em dia estamos vendo que o grande desafio da evangelização é justamente este: ir ao encontro das pessoas. Se o sacerdote, como vigário, se contenta em administrar a vida diária dos praticantes, dando-lhes os sacramentos que pedem, em breve as suas igrejas e capelas ficarão vazias — ou ocupadas apenas por pessoas velhas. O que é mais urgente, hoje em dia, é o encontro com os que estão longe (mesmo que esse “longe”, hoje, seja mais cultural do que espacial). Uma pessoa que mora no mesmo prédio pode estar mais distante, mais difícil de se atingir do que outra que mora em outro Estado. Ibiapina foi um sacerdote diocesano missionário.

 

VP: Não teria sido mais normal que Padre Ibiapina se fizesse capuchinho se queria ser missionário?

Pe. Comblin: Acontece que Padre Ibiapina tinha uma ideia própria sobre as missões. Uma ideia que os capuchinhos não tinham. Ele tinha o seu plano e não queria submeter-se a planos feitos de antemão, em outro país — distante. Conhecia o seu povo e sabia o que era necessário a ele.

Os missionários religiosos daquele tempo tinham por meta única a sacramentalização. Faziam a missão para levar os pecadores ao sacramento da penitência e à eucaristia, os que viviam em concubinato ao matrimônio, os não batizados ao batismo. Além disso, que não negligenciava, Padre Ibiapina tinha outros objetivos. Queria promover obras materiais que ajudassem o povo do interior. Naquele tempo os poderes públicos inexistiam no interior. Os sertanejos estavam isolados demais para poder tomar iniciativas. O missionário podia convocar ou mobilizar o povo para que obras públicas fossem realizadas. Por ocasião das missões, conseguiu mobilizar centenas e milhares de trabalhadores para construir 22 Casas de Caridade, vários hospitais, cemitérios, várias igrejas. As Casas de Caridade destinavam-se a recolher órfãos. Mas, ao mesmo tempo, passaram também a ser escolas, hospitais, centros de assistência para toda a redondeza. Na Casa de Caridade de Santa Fé (Arara, Paraíba) chegaram a morar 200 pessoas. Dessa maneira, Padre Ibiapina colocava em cada Casa de Caridade um grupo de senhoras e de moças dedicadas às necessidades mais urgentes do povo do sertão. A promoção humana acompanhava a conversão moral e espiritual. Hoje não se entende evangelização sem essa integração do material e do espiritual. Os documentos da Igreja são muito explícitos. Não se toleraria mais uma evangelização que não fosse também uma promoção humana. Nem sempre foi assim. Padre Ibiapina foi um precursor.

Dessa maneira, Padre Ibiapina foi o maior educador do povo do sertão da sua época, entre 1850 e 1880.

 

VP: Por que Padre Ibiapina não é mais conhecido?

Pe. Comblin: Durante muito tempo a historiografia brasileira foi dominada por liberais, que desprezavam a religiosidade popular. Posicionavam-se na linha de Euclides da Cunha, que viu em Antônio Conselheiro um puro fanático. São os mesmos que trataram o Padre Cícero Romão Batista, o patriarca de Juazeiro do Norte, como se fosse iluminado. Da mesma maneira consideraram que Padre Ibiapina tinha sido um fanático religioso, um desses sertanejos cuja cabeça fica fervendo de ideias loucas por causa do sol implacável do sertão! Essa mentalidade liberal contaminou o próprio clero. Na atualidade, renovando o contato direto com o povo do interior, foi-nos possível comprovar que os casos de fanatismo não são mais frequentes do que em qualquer região do mundo, e que a religião popular é sincera, profunda e psicologicamente mais equilibrada do que, muitas vezes, a religião do povo das cidades. Trata-se de uma religião prática e de modo algum apocalíptica. Por isso foi possível reabilitar as grandes figuras religiosas do Nordeste antigo.

 

VP: A obra de Padre Ibiapina teve continuidade?

Pe. Comblin: Eis o drama. Não teve continuidade, porque no final do século XIX prevaleceu outro modelo de Igreja. Aconteceu o que vários historiadores chamaram de “romanização” do catolicismo. Sob o pontificado de Pio IX a Igreja católica mobilizou-se para uma luta contra o liberalismo e todos os erros ligados ao liberalismo que se acham enumerados no Syllabus. Essa mobilização significou uma insistência na disciplina, na uniformidade, na fidelidade à ortodoxia mais rígida. Daí todo um trabalho de retorno à teologia escolástica, um esforço de centralização do direito canônico, a insistência numa espiritualidade de obediência. Tudo culmina no dogma da infalibilidade do Papa. Daí o esforço para reforçar a figura do bispo como fiel executor das normas canônicas e guardião da doutrina ortodoxa, e para reforçar a paróquia no sentido da ortodoxia. O pároco deve controlar a ortodoxia dos seus paroquianos e assegurar-se da sua fidelidade na obediência a todos os deveres de bom católico.

Essa nova preocupação esteve na origem da famosa questão religiosa, quando dois bispos quiseram aplicar com rigor os decretos canônicos sobre a Maçonaria. Depois da questão religiosa o problema da ortodoxia e da disciplina é o que passou a prevalecer na Igreja do Brasil. Padre Ibiapina não foi atingido pela nova mentalidade, por ter morrido em 1883 e por seu prestígio pessoal ser grande. Depois dele, porém, as missões foram abandonadas e até condenadas pelo bispo de Recife durante décadas. Todos os esforços deviam concentrar-se nas paróquias como centros de disciplina eclesiástica. O importante era o despacho paroquial, a visita às capelas para fazer a sacramentalização. O importante era que todos recebessem corretamente os sacramentos.

Não perceberam que as paróquias imensas do Nordeste não tinham a mais remota possibilidade de distribuir regularmente os sacramentos a todos os batizados. Se os batizados não tivessem, como no passado, as suas reuniões, os seus cultos, os seus beatos e as suas beatas, jamais o vigário poderia exercer uma ação pessoal sobre a massa dos seus paroquianos. A desobriga não atingia sequer 10% dos batizados: a explosão demográfica ia tornar a tarefa mais difícil ainda.

Em todo o caso, depois da sua morte, a obra de Padre Ibiapina não teve continuidade. Ninguém se apresentou para continuar sua obra. O sacerdote a quem o missionário tinha confiado o cuidado de suas obras faleceu pouco depois dele. E, dessa maneira, as próprias Casas de Caridade ficaram sem apoio no clero.

As Casas de Caridade subsistiram durante algum tempo. A última, em Campina Grande (PB), fechou as portas há poucos anos, durando mais de um século. Acontece que uma vez construídas as Casas de Caridade, o missionário pedia voluntários para tomar conta delas. Sempre havia um grupo de moças que se oferecia. Elas dedicavam sua vida aos cuidados dos habitantes da Casa e do povo que vinha pedir ajuda. Durante 50 anos as vocações para isso nunca faltaram. Depois, o movimento parou. As “Irmãs da caridade” não eram religiosas. Não tinham clausura nem votos. Simplesmente dedicavam sua vida toda a Deus, no serviço aos irmãos. Mais tarde, porém, os bispos e os vigários desprezaram tal condição. Queriam freiras de verdade, com hábito, clausura, votos e tudo. Foram buscar na Europa. Infelizmente as freiras que vieram da Europa inauguraram colégios para as filhas dos grandes proprietários e não foram morar no interior, no meio do povo sertanejo. As últimas “Irmãs da caridade” morreram há poucos anos.

As antigas Casas de Caridade foram entregues para outras finalidades: colégios, centros sociais, casas paroquiais etc.

No entanto, alguma descendência remota terá o Padre Ibiapina. Em 1981 foi fundado o Centro de Formação Missionária, atualmente em Serra Redonda, na Paraíba, com a intenção de formar missionários para o interior do Nordeste. Conscientemente os fundadores invocaram o patrocínio de Ibiapina como precursor e inspirador. Queriam, de certo modo, renovar o espírito do grande missionário nordestino.

Em 1986 foi fundado o Centro de Formação Missionária para Mulheres, em Mogeiro, Paraíba. De novo as Irmãs das Casas de Caridade serviram como referência principal, ainda que, na prática, haja diferenças no modelo de vida. Pois a inspiração é a mesma. E há, no Nordeste, um grupo de missionários dedicados à renovação das missões populares no interior. São sacerdotes, religiosos, religiosas, leigos e leigas. O inspirador também é Padre Ibiapina.

 

VP: Qual era a espiritualidade do Padre Ibiapina?

Pe. Comblin: Padre Ibiapina deixou poucos escritos: somente algumas anotações e cartas. Sabemos alguma coisa além disso graças às anotações feitas por irmãos e irmãs que o acompanhavam nas viagens missionárias e deixaram descrições de certos episódios.

A espiritualidade está afinada com seu tempo. Padre Ibiapina pregava a mensagem tradicional que todos os missionários daquele tempo pregavam. Sua marca específica era a insistência nas obras concretas e práticas da caridade.

Nas suas instruções aos irmãos e irmãs, há sempre uma insistência: a disponibilidade. Estar sempre a serviço, sempre disposto a ajudar o irmão peregrino ou necessitado.

Um episódio ilumina claramente a espiritualidade do Padre Ibiapina. A grande seca de 1877-1878 constituiu a maior provação na vida das Casas de Caridade. Os sertanejos, sem água sequer para beber, acorreram às regiões menos secas do brejo, onde estava a Casa de Santa Fé. No entanto, ao poucos, ali também a água começou a escassear. Um dia, as Irmãs vieram dizer ao Padre Ibiapina que, se continuassem dando de beber a todos os que chegavam, dentro de pouco não haveria mais água para ninguém. Padre Ibiapina reagiu: “Enquanto tivermos água, haverá para todos. Quando não houver mais, morreremos de sede com eles todos”. Poucas semanas depois começou a chover e o perigo foi afastado. Mas o perigo era real. Havia 200 pessoas em Santa Fé. As 200 corriam o risco de ter morrido de sede.

 

VP: É possível que se chegue à beatificação do Padre Ibiapina?

Pe. Comblin: Recentemente veio de Roma um dos prelados que trabalham na preparação das beatifica­ções. Disse que havia 1.200 candidatos na fila para a beatificação. Mas ele não descartava a possibilidade de “furar a fila”. Em todo o caso, quanto à heroicidade das virtudes, não há dúvida. Quanto ao milagre, atribuem­-se muitos ao Padre Ibiapina. O povo da redondeza permaneceu fiel, apesar da indiferença dos padres. Sempre o invocam, e há casos de curas narrados pelo povo que valem ou superam os milagres invocados em outros casos de beatificação. Também existe o argumento de que até agora nenhum brasileiro foi tomado em consideração — o que mostra a pouca estima que se tem em Roma pela fé cristã do povo brasileiro. Não é por falta de santidade, mas somente por falta de tomar em consideração fatos que aconteceram muito longe.

 

VP: Existe literatura que nos permita conhecer melhor o Padre Ibiapina?

Pe. Comblin: A mais recente e melhor bibliografia é a do Pe. F. Sadoc de Araújo, do clero de Sobral. Pe. Sadoc fez todos os trabalhos de preparação para a introdução da beatificação de Padre Ibiapina. Foi averiguar pessoalmente todos os documentos existentes. Escreveu Padre Ibiapina, o peregrino da caridade (Gráfica Tribuna do Ceará, Fortaleza, 1995).

A PAULUS Editora publicou um manuscrito nosso: Instruções espirituais do Padre Ibiapina na coleção “A oração dos pobres”, 2ª ed., 1995. E Eduardo Hoornaert publicou a Crônica das Casas de Caridade, pela Loyola, 1981.

Vale a pena reler também as páginas que Gilberto Freyre dedicou ao Padre Ibiapina na introdu­ção à segunda edição de Sobrados e mucambos, pp. LXXV-LXXXI. G. Freyre dizia: “Do ponto de vista do Catolicismo ou do Cristianismo social, Ibiapina foi, talvez, a maior figura da Igreja no Brasil” (p. LXXVI)… “Sob certos aspectos, genial, parece ter sido Ibiapina. Mas dos gênios incompreendidos de que muito se fala e que na realidade existem, embora em número reduzido” (p. LXXVII).

 


APÊNDICE

 

(Reproduzimos, a seguir, a apresentação do Pe. José Comblin feita para a coleção “A oração dos pobres” (composta de 19 livros), publicada pela PAULUS Editora. Entre esses livros encontra-se Instruções espirituais do Padre Ibiapina).

 

Na América Latina, a Igreja fez uma opção preferencial pelos pobres. Ela pretende converter-se de novo à missão de evangelizar os pobres. Essa missão que é o sinal da chegada do reino de Deus.

Evangelizar os pobres é restituir a Palavra de Deus aos pobres: eis o significado do movimento bíblico latino-americano.

Evangelizar os pobres é restituir aos pobres a palavra que fala de Deus: eis o significado da teologia latino-americana.

Evangelizar os pobres é também restituir aos pobres a oração. Em certa tradição, que não é a verdadeira Tradição cristã, a oração transformou-se num formalismo oficial. Repete fórmulas que o povo não entende e às quais ele se acostumou a atribuir um valor quase mágico ou mecânico. Para os pobres não havia terceira alternativa: ouvir respeitosamente as orações oficiais mesmo sem entendê-las, ou repetir fórmulas pobres de uma religiosidade tradicional, sem criatividade, sem personalidade. Houve e há uma oração subdesenvolvida, sinal e expressão de uma cultura de subdesenvolvimento.

A oração dos pobres não pode ser uma pobre oração. Não pode ser o suspiro de resignação do escravo, não pode ser a súplica do desesperado que pede algumas migalhas do festim. Não pode ser a petição do mendigo. Não pode ser a expressão de uma passividade submissa diante do destino.

A libertação dos pobres se exprime na palavra de homens livres. E essa palavra é a oração do povo de Deus. A oração cristã é a oração ensinada pelo Espírito Santo aos pobres.

A oração mais profunda, mais pessoal, mais interior, mais mística, não é aquela que usa os artifícios de uma cultura sofisticada; ela não precisa de conceitos complicados nem de linguajar enfeitado. Ela não usa métodos refinados acessíveis somente depois de longo treinamento. Muito pelo contrário, ela é simples, e de uma simplicidade somente acessível aos simples.

Certa tradição ocidental tornou a oração complexa e difícil. Nasceu então a ideia de que somente os religiosos e os monges podem aprender a verdadeira oração interior e pessoal. Os pobres teriam de contentar-se com orações “populares”: rezar o rosário, repetir invariavelmente pai-nossos e ave-marias.

O Novo Testamento contém alguns exemplos de oração dos pobres. A oração dos primeiros cristãos foi a oração dos pobres. A oração dos antigos monges era a oração dos pobres, porque os monges eram trabalha­dores manuais iletrados, sem formação intelectual.

A oração na Igreja oriental permaneceu mais fiel às origens, porque a vida religiosa não se tornou intelectualizada, burocratizada, formal. Ela permaneceu mais fiel ao trabalho manual e ao contato direto com o povo dos pobres.

Hoje precisamos restituir aos pobres a herança cristã. Hoje como outrora, eles serão os mestres da oração…

Estamos numa época de muita curiosidade intelectual. As elites procuram uma fonte nova de interesse religioso nas seitas “orientais” ou em doutrinas esotéricas. Por isso precisamos entregar ao verdadeiro povo de Deus as fontes autênticas de uma oração de verdadeira libertação. A libertação não passa por sabedorias obscuras, por jogos intelectuais ou exercícios mentais sofisticados. Ela volta à maior simplicidade. Afinal de contas, a primeira e insuperável mestra da oração foi uma humilde mulher de Nazaré, autora da oração que não poderá ser ultrapassada, o Magnificat.

Alguns quiseram às vezes estabelecer uma oposição entre a oração e a atividade pública, na vida de trabalho, nas lutas sociais ou nas conquistas políticas. Tal oposição, às vezes definida com muita precipita­ção, não tem fundamento nenhum. Jesus uniu sua atitude de oração interior total e sua longa atividade de oração com uma vida pública sem descanso. E tradição mostrou, muito ao contrário de algumas afirmações superficiais, que a maior atividade social exige personalidades fortes, fortemente unificadas e capazes de renovar constantemente as suas energias interiores. A maior intensidade de trabalho exige um profundo recolhimento interior e uma atitude de oração permanente. Em nosso mundo secularizado, muitos não dão a esse recolhimento interior o nome de oração, e o Deus que invocam no coração não recebe nenhum nome. Contudo, os verdadeiros líderes sociais, capazes de permanecer realmente humanos e livres no meio da atividade pública, são homens de oração — que o digam com esse ou com outro nome.

Um povo que se liberta precisa de vida interior, de personalização radical. A sua personalidade precisa desabrochar num diálogo interior permanente. Não oposição entre pobreza e personalidade: o que faz a personalidade é uma oração personalizada.