Roteiros homiléticos

SAGRADA FAMÍLIA – 29 de dezembro

Por Zuleica Aparecida Silvano

“Amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14)

I. Introdução geral

As leituras desta festa da Sagrada Família nos convidam ao amor para com nossos pais e ao amor em nosso ambiente familiar (I e II leituras). O evangelho apresenta as dificuldades que a família de Jesus experimentou por manter-se fiel ao plano de Deus. Nossas famílias, semelhantemente, vivem inúmeras dificuldades, mas também momentos carregados de ternura, de alegria, de solidariedade. Assim, em todos esses momentos, possamos ouvir ecoar dentro de nós as exortações à comunidade de Colossas, descritas na I leitura: “revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente. [...]. Mas, sobretudo, amai-vos uns aos outros”.

II. Comentários dos textos bíblicos

1. I leitura: Eclo 3,3-7.14-17a

Eclo 3,3-7.14-17a é um comentário detalhado do quarto mandamento: “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20,12 e Dt 5,16). Inicialmente, percebe-se que há uma igualdade de tratamento tanto para o pai como para a mãe. O autor recomenda aos filhos, tanto os jovens como os adultos, que tenham carinho e respeito para com seus pais, pois é necessário honrar pai e mãe (cf. vv. 3-5), respeitá-los (cf. v. 7), não abandonar o pai (cf. v. 16) e consolar a mãe (cf. v. 6). O dom que os pais podem fazer pelos filhos é dar-lhes sua bênção (cf. vv. 8-9), fonte de prosperidade e fecundidade. Entre as promessas dadas aos filhos em virtude do cuidado com seus pais, ressalta-se o perdão dos pecados (cf. vv. 3.15). As outras promessas são: acumular tesouros (cf. v. 4), alegria com relação aos filhos (cf. v. 5), vida longa (cf. v. 6), oração atendida (cf. v. 5). Aqueles, porém, que abandonam seus pais são considerados blasfemadores e malditos (cf. v. 16).

2. Evangelho: Mt 2,13-15.19-23

O texto se inicia com a aparição de um mensageiro a José, o que pode ser interpretado como a presença de Deus junto a Jesus e sua proteção sobre ele nos momentos de maior perigo e dificuldade. O mensageiro ordena que José fuja para o Egito com Maria e com Jesus, pois Herodes deseja matar o menino. Essa frase nos remete à história de José do Egito (cf. Gn 37-41), mas também à experiência exodal e às narrativas de Moisés. O interessante é que, se o Egito era visto como o lugar da escravidão e da opressão, em Mt 2,13 ele constitui o lugar de refúgio para Jesus, que assim escapa do projeto opressor de Herodes. A finalidade da fuga expressa a dura realidade de Jerusalém: paradoxalmente, a terra da promessa, escolhida por Deus, tornou-se lugar da opressão, da morte, totalmente contrário aos planos divinos, ao projeto messiânico.

Mateus 2,14-15 retrata a total docilidade de José, que sem demora realiza o que lhe foi confiado por Deus, sendo totalmente obediente à vontade divina. O amor maternal de Deus para com Jesus é expresso por meio da citação de Os 11,1. A escolha dessa citação profética aponta para a relação filial de Jesus com o Pai e indica que seu retorno do Egito para a terra prometida deve ser relido como um novo êxodo, no qual Jesus estabelecerá uma nova aliança, libertando Israel de todo tipo de opressão e anunciando a vontade do Pai.

Após a morte do opressor, surge a oportunidade de voltar a Israel (cf. v. 19), revivendo a esperança experimentada no êxodo e no retorno do exílio. Esse dado sinaliza que Jesus será aquele que libertará o povo, sempre anunciando um novo começo, uma restauração, que não irá acontecer nos grandes centros do poder religioso, político e social, na Judeia, mas sim na periferia, a partir de uma cidade insignificante. Essa escolha indica que faz parte do plano de Deus começar a libertação pela periferia (cf. v. 23).

3. II leitura: Cl 3,12-21

A carta aos Colossenses é chamada deuteropaulina. É atribuída a Paulo, mas não foi escrita por ele. Provavelmente, tenha sido escrita por um discípulo ou por um líder da comunidade de Colossas.

Colossenses 3,12-21 traz o chamado código doméstico, que objetiva delinear as atitudes fundamentais dos membros da comunidade cristã, também quanto às relações familiares. Essas exortações, alicerçadas na ação salvífica realizada por Jesus, visam criar um mundo renovado, uma nova humanidade. Desse modo, os membros da comunidade são exortados a viver o amor fraterno, a paz, a ser assíduos à escuta da Palavra e a descobrir na história e na vida a realização do projeto salvífico de Deus, que se identifica com sua vontade. São, portanto, chamados a estabelecer novas relações, assumir nova mentalidade, novo estilo de vida. Esse novo estilo de vida é esboçado em Cl 3.

Os versículos escolhidos para a celebração desta festa da Sagrada Família (vv. 12-21) destacam, primeiramente: recuperar a imagem de Deus, retomar a relação com Jesus Cristo, resgatar a aliança com Deus (cf. v. 12), estabelecer nova relação com o outro, vivendo em comunhão e em fraternidade (cf. vv. 12-13). Essa mudança nos conduz à vivência da caridade e da sabedoria. A caridade é o vínculo da perfeição, entendida no sentido de atingir a meta, chegar àquilo que almejamos: a plenificação do nosso amor, vivendo profundamente em comunhão com Deus e com o outro. Podemos também entender essa expressão numa perspectiva pascal, ou seja: a caridade identifica-se com o amor salvífico revelado em Cristo.

A sabedoria, em Cl 3,16, é apresentada como a faculdade de discernir e de julgar as situações e os acontecimentos. Em Cl 2,18, agir com sabedoria é agir moralmente. De fato, o texto sugere ser necessário orientar nossas decisões para a opção fundamental por Jesus Cristo. Essa opção, marcada pela caridade e pela sabedoria, transforma nosso modo de pensar e de agir, e contribui para melhor discernirmos qual é a vontade divina em todas as circunstâncias, sendo esse o verdadeiro culto a Deus. Nesse contexto, são inseridos os preceitos particulares e domésticos, influenciados pelo ambiente cultural greco-romano, mas também com várias características do modelo judeu-helenista. A novidade dessas normas está em fundamentá-las na experiência cristã, na experiência profunda com Jesus Cristo.

A primeira regra é dirigida às esposas, chamadas a serem “solícitas” para com seus maridos, ou seja, a cuidar deles, cultivando um relacionamento de respeito, carinho, ternura, delicadeza, marcado pelo diálogo, pelo perdão, pelo compartilhamento de momentos de alegria e de tristeza. O “submeter-se” – outra tradução possível para “ser solícito” – também pode ser interpretado como renunciar a determinadas atitudes para a edificação da família, trilhar o caminho do amor, com suas exigências, e enfrentar as fragilidades. De fato, todo relacionamento está sujeito às vicissitudes do dia a dia – problemas econômicos, de estabilidade, experiências dolorosas, conflitos, alegrias, sonhos, esperança –, sendo algo construído constantemente. Solicitude significa compreender que o amor é um dom e consiste em aprender a promover a vida do outro. Submeter-se é renunciar aos muitos desejos egoístas para estabelecer profundos laços de comunicação interpessoal. Submeter-se no amor é suportar o outro, carregando sua fragilidade, sendo solidário na sua dor, mas sobretudo alegrando-se com suas vitórias. A ideia de “submeter-se”, nesse texto, não pode ser interpretada como submissão sexual ou total ao marido, pois, se fosse essa a intenção, a carta não exortaria os maridos a amar suas esposas como Deus ama seu povo. Nesse sentido, o amor à esposa tem como fundamento o amor gratuito de Deus, manifestado em Cristo, que exclui qualquer tipo de submissão (cf. 1Cor 13,1-13).

Os maridos são exortados a expressar seu amor por suas esposas, pois é importante para elas ouvir que são amadas, valorizadas, reconhecidas por aquilo que são. A expressão do amor também ocorre por meio de gestos de ternura, de compreensão, de aconchego, de proteção, de solidariedade, bem como pela fidelidade. Amar supõe ainda a capacidade de renunciar ao poder de submeter o outro, à posse do outro, à satisfação pessoal em detrimento do outro.

Os pais são convidados a não irritar seus filhos. Isso significa acolhê-los, animá-los em seus empreendimentos, alegrando-se com suas conquistas, consolá-los diante dos erros e fracassos, orientá-los em suas decisões e ter paciência com seu processo.

III. Pistas para reflexão

O evangelho e as leituras nos convidam à delicadeza no trato com as pessoas. Nas I e II leituras, essa delicadeza é incentivada a se exprimir em relações familiares marcadas pelo amor, pela solidariedade, pelo respeito e pela fidelidade. No evangelho, a delicadeza aparece na atitude de José de seguir o plano de Deus. Assim, somos desafiados a nos perguntar: como estou vivendo essa delicadeza na relação com as pessoas?

Somos também convidados a refletir sobre as palavras do papa Francisco em sua exortação Amoris Laetitia, n. 30:

Cada família tem diante de si o ícone da família de Nazaré, com o seu dia a dia feito de fadigas e até de pesadelos, como quando teve que sofrer a violência incompreensível de Herodes. Experiência que ainda hoje se repete tragicamente em muitas famílias de refugiados descartados. Como os Magos, as famílias são convidadas a contemplar o Menino com sua Mãe, a prostrar-se e adorá-lo (cf. Mt 2,11). Como Maria, são exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc 2,19.51). No tesouro do coração de Maria, estão também todos os acontecimentos de cada uma das nossas famílias, que ela guarda solicitamente.

Zuleica Aparecida Silvano

Ir. Zuleica Aparecida Silvano, religiosa paulina, licenciada em Filosofia pela UFRGS, mestra em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico (Roma) e doutora em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde atualmente leciona. É assessora no Serviço de Animação Bíblica (SAB/Paulinas) em Belo Horizonte.