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Publicado em número 263 - ( pp. 27-30)

Compreendendo as diretrizes

Por Dom Antonio Celso de Queirós

As Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil não são um documento a mais na já longa série (87) de documentos da CNBB. Não são reflexão sobre determinado assunto ou tema da vida ou ação da Igreja nem algum tipo de aprofundamento. Para compreender bem sua natureza, é preciso remontar à opção feita pela Igreja no Brasil no período imediatamente após o Concílio Vaticano II. Ali, vivendo a imensa riqueza conciliar, os bispos do Brasil decidiram fazer um plano que aplicasse em nosso país as novas perspectivas abertas pelo concílio. Surgiu então o Plano de Pastoral de Conjunto (PPC), primeira aplicação da técnica e pedagogia do planejamento à pastoral. É verdade que, pouco tempo antes, a CNBB havia publicado o Plano de Emergência por recomendação de João XXIII. Mas fora uma tentativa rápida e meio amadora de plano. No caso do PPC, não; a CNBB já tinha uma experiência inicial e um grupo de assessores capazes de elaborar um verdadeiro plano de pastoral. Ele contava com um objetivo e algumas diretrizes gerais, além de programas de ação a ser executados em cinco anos.

A primeira grande avaliação (1970) mostrou os acertos e as inadequações do PPC, principalmente a impossibilidade de definir um plano concreto para as dioceses. Foi então decidido distinguir diretrizes e planos. As diretrizes valem para um período maior (quatro anos) e são da Igreja no Brasil em todos os níveis. Os planos são diversos, conforme os níveis: nacional, regional e sobretudo local, isto é, de igreja particular. A partir daí e com poucas alterações, as Diretrizes gerais foram sendo definidas a cada quatro anos, durante todo o período de 1971 até hoje.

Elas são diretrizes, não planos. São indicação das direções a ser tomadas, dos grandes objetivos a ser perseguidos, dos impulsos pastorais a ser animados e cultivados. Ao mesmo tempo, definem um quadro de referência de ação que torna possível a compreensão e execução de uma pastoral orgânica ou de conjunto.

As Diretrizes gerais não são da CNBB, mas da Igreja no Brasil. São definidas pelos bispos em assembleia geral com base em indicações das dioceses, dos organismos nacionais do povo de Deus, dos institutos de teologia e pastoral etc.

Nada como um estudo completo de sequência de Diretrizes Gerais para compreender a caminhada da pastoral da Igreja no Brasil nos últimos cinquenta anos.[1]

Após o concílio, as Diretrizes têm sido, para o Brasil, também instrumento de incorporação das riquezas das assembleias gerais dos bispos da América Latina e dos documentos do papa. É assim que, após Medellín, Puebla e a “Evangelização do mundo de hoje” (Sínodo de 1974), as Diretrizes começaram a marcar seu objetivo geral com a palavra evangelizar. Outros dois elementos que passaram a fazer parte constante da formulação são a opção pelos pobres e a atuação na sociedade. Progressivamente, a formulação do objetivo geral foi cedendo espaço maior ao corpo de diretrizes. Aí é possível perceber, de um lado, a consciência da ação da Igreja e, de outro, as marcas das dificuldades que ela foi encontrando para ser fiel à realidade do povo e aos novos tempos com suas exigências.[2]

Ao aproximar-se o jubileu do ano 2000, as Diretrizes gerais (1995-1998) mudaram seu título. De diretrizes da ação pastoral passaram a ser diretrizes da ação evangelizadora. Longe de ser simples troca de palavras, essa modificação marca a consciência de que nossa realidade está em rápido processo de mudança, obrigando nossas igrejas a partir sempre mais para a missão de evangelizar. Igualmente, o quadro de referência (as seis linhas ou dimensões) foi enriquecido com as quatro exigências da ação evangelizadora: serviço, diálogo, anúncio, testemunho de comunhão. A atenção à inculturação passa também a fazer parte do caminho indicado para a ação eclesial.

As Diretrizes são definidas para quatro anos, mas sua vivência tem ultrapassado esse período. Por isso, algumas vezes elas foram mantidas para o quadriênio seguinte, mas sempre atualizadas conforme a realidade da Igreja e a situação social.

As atuais Diretrizes foram definidas à luz de dupla preocupação: manter o quadro de referência das anteriores e enriquecê-las com as melhores indicações da Conferência de Aparecida. Vários fatores facilitaram isso. A indicação da missão como grande objetivo de Aparecida veio reforçar a opção pela primazia da evangelização por parte das Diretrizes da Igreja no Brasil. A retomada do método ver-julgar-agir levou Aparecida a partir da realidade, como nossas diretrizes sempre fizeram. A insistência na comunidade e a preocupação com a sociedade desigual e injusta são outros pontos de encontro. Isso não significa que Aparecida não representou nada de novo ou importante para a Igreja no Brasil. A conferência enriqueceu nossa caminhada pastoral com a insistência na conversão pastoral, com a preocupação central na formação dos discípulos missionários, com a alegre proclamação do encontro e da presença de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo nossas diretrizes encontraram em Aparecida atualização dos “rostos” de Jesus nos pobres, como Puebla havia apresentado.

No Capítulo I das Diretrizes, encontramos a descrição da realidade. Trata-se de visão abrangente do momento histórico que vivemos: a situação sociocultural, econômica, sociopolítica, ecológica e religiosa desafiam a concepção da visão humanista-cristã da pessoa, da comunidade e da sociedade. A preocupação dos pastores em alimentar a esperança dos cristãos e cristãs transparece em observações distribuídas através do texto realista e, por vezes, mesmo duro. Os dados referentes à dimensão religiosa, abundantes nas Diretrizes anteriores, reduzem-se a alguns dados quantitativos de um período curto. Seu maior interesse é sinalizar possível reversão nos dados anteriores sobre a filiação religiosa. Será, porém, necessário um tempo maior para configurar nova tendência ou realidade.

O Capítulo II do texto traz os elementos para as grandes linhas do julgar. Trata-se de assumir a vocação de discípulos missionários na Igreja e a partir da Igreja para que a Boa-Nova da salvação chegue ao povo. Encontramos aí a vocação da Igreja comunhão, a partir da Trindade e constituída em casa e escola de comunhão para que a evangelização seja fecunda. O conceito da verdadeira evangelização fica de novo enriquecido pela explicitação de suas exigências: serviço, diálogo, anúncio e testemunho de comunhão nos três âmbitos: pessoa, comunidade e sociedade.

A vocação do discípulo missionário não constitui simples vocação individual, mas é pensada como participação no tríplice ministério de Cristo que subsiste na vida e ação da Igreja: o ministério da palavra, da liturgia e da caridade. Aqui o texto abre horizontes grandes para a pastoral dos ministérios, seja no interior da comunidade eclesial, seja no mundo. O objetivo maior da evangelização é assim garantido pela missão da Igreja: anunciar e fazer acontecer o Reino para que todos tenham vida em abundância. Estamos, pois, longe de uma concepção de evangelização como “cruzada” católica para recuperar os que se afastaram. Aliás, a própria Assembleia de Aparecida, felizmente, decepcionou os que esperavam esse tipo de operação “religioso-militar”.

A formação, que constituía um capítulo próprio na primeira versão do texto, faz agora parte do capítulo II. As atuais Diretrizes devem a Aparecida a insistência na concepção de formação como um processo continuado, lembrado como verdadeiro catecumenato mistagógico e profundamente unido à celebração do Mistério de Cristo. A espiritualidade do discípulo missionário é breve, mas exemplarmente indicada no número 101 das Diretrizes.[3]

O Capítulo III, compreensivelmente, é o mais extenso em se tratando de um texto que visa à ação evangelizadora. Ela é abordada nos três âmbitos: pessoa, comunidade e sociedade. É interessante que o texto retoma, em cada âmbito, o grande desafio do Ver e a mensagem cristã — o Julgar. Só então ele apresenta rica lista de pistas de ação. Não são projetos concretos (trata-se de um texto de diretrizes), mas realmente pistas de ação oferecidas às Igrejas particulares e às várias instâncias e organismos eclesiais. É uma preocupação rica e global da ação evangelizadora. Trata-se de uma retomada da missão da Igreja como diz o enunciado do objetivo geral: “Evangelizar (…) promovendo a dignidade da pessoa, renovando a comunidade, participando da construção de uma sociedade justa e solidária para que todos tenham vida”.

O desafio da construção da identidade pessoal e da liberdade autêntica na atual sociedade questiona a visão da fé e obriga-nos a tornar realidade a proposta cristã de que somos filhos de Deus. A dignidade da pessoa humana e seu valor são iluminados pela pessoa do Verbo encarnado, rosto humano de Deus e rosto divino do homem. Aqui as Diretrizes incorporam o belo texto de Aparecida sobre o significado vivencial de Jesus Cristo para nós (DA 106). De sua parte, elas completam o que faltou a Aparecida: uma reflexão sobre o sofrimento numa sociedade onde se proclama o direito da felicidade aqui e agora (DA 108-113). As pistas de ação recolhem muito do que a ação evangelizadora vem fazendo nos últimos tempos, como a pastoral da acolhida, do encontro pessoal, da visitação familiar das pessoas com dificuldades especiais, dos casais de segunda união… Igualmente ressaltam o cuidado especial com as pessoas nas diferentes idades, da infância à terceira idade, com ênfase especial na pastoral da juventude.

No segundo âmbito, o da comunidade, a evangelização enfrenta o desafio atual da fragmentação da vida e da busca de relações mais humanas. A fé cristã proclama o valor da vida de comunhão: “Onde dois ou três estiverem reunidos, eu estarei no meio deles”. As pistas de ação remetem à construção de comunidades cristãs fraternas. A urgência pastoral maior nesse campo é a paróquia renovada pela descentralização em comunidades, enriquecidas pela multiplicação de ministérios, em comunhão com toda a Igreja particular. Ao mesmo tempo, a revalorização das CEBs, das novas comunidades, dos movimentos tradicionais e novos apresenta nova face de vida comunitária. O diálogo ecumênico e inter-religioso faz parte dessa renovada maneira de as comunidades eclesiais viverem no mundo atual.

No âmbito da sociedade, o desafio a enfrentar é o escândalo da exclusão e da violência na sociedade consumista, tendo em vista a realização da solidariedade para que o ideal do Reino (“não havia necessitados entre eles”) se concretize. A existência de milhões de excluídos interpela a Igreja. A opção pelos pobres deve se manifestar em gestos concretos e samaritanos de defesa da vida, de luta contra a fome, a miséria, a violação dos direitos dos pobres mediante a presença junto a eles para que sejam sujeitos da transformação social. Essa presença comprometida com os pobres deve ser assumida por toda a comunidade cristã, e não apenas por algum grupo ou pastoral social. Ela vai de pequenos gestos fraternos para com os que sofrem até os amplos compromissos sociais e políticos.

As pistas de ação concretas são apresentadas nos números 181 a 209, cobrindo todo o campo da ação caritativa, social e política. Chama a atenção, além disso, a importância do campo do diálogo cultural, da situação pastoral urbana, do mundo da educação, dos meios de comunicação e da problemática que envolve toda a humanidade.

As Diretrizes terminam com a retomada do tema da urgência da missão. Em sintonia com o chamado missionário das igrejas na América Latina e no Caribe, a Igreja no Brasil assume a proposta da Missão Continental. Esta não é entendida como um projeto único a ser realizado em todas as partes em determinado período, como se fosse uma missão paroquial tradicional de imensas proporções. A Missão Continental é a Igreja em estado permanente de missão. A missão é chamada a ser a alma de toda sua vida e atividade, embora se definam alguns momentos mais fortes a ser assumidos em comum. É a passagem de uma pastoral de mera manutenção para uma pastoral missionária de presença evangelizadora. A essa missão, nossas igrejas são chamadas a se converter. Lembrando as palavras do atual papa quando ainda à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, “nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez” (DA 213). A conversão pastoral é um chamado à alegria e ao entusiasmo de uma Igreja jovem, aberta ao Espírito, disposta a caminhar na esperança, anunciando e construindo o reino de Deus.



[1] Cf. Documentos da CNBB números 4, 15, 28, 38, 45, 61, 71, 76-77 (reedição).

[2] As Diretrizes gerais (1999-2002) trazem breve, mas completo, relato do caminho do planejamento pastoral na Igreja no Brasil (doc. 61, nn. 29 a 60).

[3] Esse pequeno, mas rico texto, é repetido nas Diretrizes gerais desde 1999. Seu autor, padre Alberto Antoniazzi (+2004), está entre aqueles a quem a Igreja no Brasil mais deve em termos de reflexão teológico-pastoral, principalmente na redação de Diretrizes e principais documentos da CNBB.

Dom Antonio Celso de Queirós