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Publicado em número 244 - (pp. 17-23)

Profecia e defesa da casa

Por Shigeyuki Nakanose, svd

Uma leitura de Oseias 2,16-25

Muitas pessoas, animadas pela força de Deus e comprometidas com a defesa da vida ameaçada, assumem a causa da construção de uma sociedade justa e solidária. Assim foi a vida de Ir. Dorothy e de tantas outras pessoas que tombaram na luta por um mundo melhor. Ir. Dorothy Stang, de 73 anos, missionária da Congregação de Notre Dame, foi assassinada no dia 12 de fevereiro de 2005, às 9 horas, em Anapu, no Pará. Antes de morrer, Ir. Dorothy leu as bem-aventuranças para seus assassinos. A sua arma mais poderosa, que amedrontava os grandes, era a organização do povo. No dia anterior, ela ligou para seu irmão nos Estados Unidos e lhe disse: “Vou descer para apoiar as pessoas que tiveram suas casas e suas colheitas queimadas. Os filhos delas estão na estrada”. Morreu por defender a vida das pessoas oprimidas. Morreu por defender a partilha da terra e a vida de famílias que trabalhavam por um projeto de desenvolvimento sustentável, com maior igualdade na distribuição e no consumo das riquezas. Morreu porque amou até o fim. Assim como a Ir. Dorothy, muitas pessoas, no tempo do profeta Oseias, ouviram o grito dos oprimidos, ficaram ao seu lado e levaram suas vozes para denunciar as situações de injustiça. Vamos nos aproximar e conhecer melhor essas pessoas e a realidade em que viviam.

 

1. Conhecendo o chão da vida

No oitavo século antes de Cristo, a situação nas aldeias do interior de Israel era muito parecida com a de nossos dias. As pequenas famílias camponesas estavam perdendo suas terras por causa das dívidas ou até mesmo da violência de grupos que impunham seus interesses por meio das armas. Por um lado, essas famílias são alvo da ganância de latifundiários e, por outro, são vítimas da própria corrupção do Estado (cf. Am 8,4-8). No final, um cenário onde “sangue derramado se ajunta a sangue derramado” (Os 4,2).

Mas há outra semelhança entre hoje e ontem. É a força da resistência popular, mediante grupos proféticos que denunciam os crimes da sociedade e anunciam caminhos de esperança. Vamos dialogar com Oseias e conhecer um pouco mais sobre o chão de onde brota o grito das pessoas oprimidas de seu tempo e das quais ele se faz porta-voz.

Ao denunciar o desvio da nação e exortá-la à conversão, o profeta Oseias faz comparações típicas de um camponês:

— “Esforcemo-nos para conhecer a Javé; sua chegada é certa como a aurora, ele virá a nós como a chuva, como o aguaceiro que ensopa a terra” (Os 6,3).

—“Por isso, eles se tornarão como neblina da manhã, como orvalho que logo cedo se evapora; ou como palha que a gente varre do terreiro ou fumaça que sai pela janela” (Os 13,3).

— “A honra de Efraim voará como pássaro” (Os 9,11);

— “Israel era uma parreira exuberante que produzia uvas com fartura” (Os 10,1).

 

Ainda podemos encontrar em sua profecia muitas outras imagens ligadas à natureza: terra (Os 2,23-24); deserto (Os 2,5.16); campos (Os 10,4); água/fonte (Os 13,15); céu (Os 2,23); vento (Os 12,2); videira/figueira (Os 2,14); trigo (Os 9,1.2); azeite/óleo (Os 12,2); uvas (Os 10,1); animais selvagens/feras (Os 13,8); aves do céu (Os 2,20; 4,3); répteis da terra (Os 2,20); peixes do mar (Os 4,3); novilha/cordeiro (Os 4,16); leão/leoa (Os 13,7.8).

Além das imagens da natureza, o modo de falar de Oseias é o do cotidiano de camponesas e camponeses. Ele usa expressões ligadas à cozinha, às crianças, à gestação e ao nascimento. A linguagem do profeta nos leva a situá-lo no contexto das lutas de resistência das comunidades do campo. A terra, termo que ocorre cerca de 18 vezes no livro (cinco vezes com sentido de “país”), é a fonte de sua existência. Vejamos o que isso significa.

A comunidade de Oseias é formada por pequenas famílias camponesas que trabalham com a terra e vivem cercadas pela natureza. A vida no campo cria um vínculo, uma unidade com a natureza e a terra, pois tanto a natureza como o ser humano são parte da mesma obra criadora de Deus (cf. Gn 1,4.10.12.25). Para Israel, a terra, mais do que meio de subsistência, é símbolo de sua identidade: é dom de Deus, prometida aos antepassados. Por isso, deve ser cuidada, preservada e mantida nas e pelas famílias. Perder a terra é quebrar a aliança com o Deus libertador.

Olhem só a resposta de Nabot, habitante da planície de Jezrael, na Galileia, quando Acab, rei de Israel, lhe propõe a troca ou a venda da terra: “Javé me livre de entregar a você a herança de meus pais” (1Rs 21,3). O relacionamento do povo de Israel com a terra é caracterizado pelo termo “herança”. Assim nos chega esta memória, contada, recontada e interpretada ao longo dos tempos: “A terra será distribuída em herança para todos esses, de acordo com o número de inscritos. Você dará uma propriedade maior àquele que é em maior número, e dará uma propriedade menor para aquele que tem menor número. A herança será distribuída em proporção ao número dos recenseados” (Nm 26,53-54). A terra é dada por Deus gratuitamente; ela é dom. Dela o povo tira o sustento do dia a dia por meio do trabalho comunitário e da partilha entre os membros do mesmo clã e tribo; e com base nela o povo estabelece valores e comportamentos para a sua vida.

Por isso, o camponês defende a terra recebida de seus pais. E há leis que cuidam para que a terra não seja vendida nem saia da família. Em geral, a terra é passada para o filho primogênito. Se acontecer de um homem morrer sem deixar herdeiro, as filhas têm o direito de herança (cf. Nm 27,7-8), mas elas devem se casar dentro do próprio grupo familiar para que a terra não vá para a outra tribo. Se o proprietário morrer sem deixar herdeiro, os parentes mais próximos têm direito à terra.

O direito à terra é ainda fortalecido e consagrado pelo culto aos ancestrais. Os mortos são enterrados na propriedade familiar e cultuados conforme o costume religioso. Há muitos ritos para cultuar os mortos. Os rituais de sacrifícios aos mortos servem para assegurar o direito perpétuo sobre a terra como herança da família e para fortalecer os vínculos de solidariedade entre os membros da mesma casa.

A família israelita é patriarcal, denominada “casa paterna” ou, em hebraico, bêt ’ab. A casa é formada pelos filhos e as esposas de seus filhos, os servos, os residentes estrangeiros, as viúvas e os órfãos. É na casa que se organiza a vida na terra dos ancestrais: a distribuição do trabalho e da produção; a geração de filhos; a convivência humana; a celebração comunitária. A organização solidária é orientada e sacralizada pelos vínculos de parentesco da mesma linhagem ancestral com sua herança, sua terra, sua casa.

A terra é herança, pertence aos grupos de famílias que constituem a casa. Ela é “dom de Deus” e não pode ser vendida. Ela constrói a identidade, a honra da família e garante a sua sobrevivência. Porém, esse equilíbrio está fortemente ameaçado pela intervenção do Estado e das elites no cotidiano das aldeias. Guerras constantes e busca desenfreada por lucro e poder alteram o ritmo da vida e desestruturam a casa. As pequenas famílias camponesas estão perdendo sua herança, suas terras estão sendo tomadas pelas elites, destruindo-se, assim, a fonte da vida da casa.

No tempo de Oseias, a economia de Israel está voltada para o mercado internacional. Israel exporta cereais e óleo e importa produtos de metais, cedros e artigos de luxo. Os produtos importados são muito caros em comparação com o que Israel pode oferecer, o que torna necessária uma quantidade bem maior de produtos agrícolas para manter o comércio. Esse desequilíbrio de preços deixa Israel em condição de fragilidade e dependência na hora das negociações.

Para aumentar a arrecadação de produtos agrícolas, o Estado, então, impõe uma tributação cada vez mais pesada às aldeias camponesas. E mais. Inicia, como diríamos hoje, um processo de formação de latifúndios. Ou seja, acumulação de grandes extensões de terra dedicadas ao cultivo de um ou dois produtos para a exportação. O Estado se apropria das terras dos pequenos proprietários para poder determinar e controlar a produção da lavoura. E as elites se beneficiam com os grandes lucros.

No campo, porém, cresce o número de famílias empobrecidas, sem terra. As pequenas propriedades de agricultura diversificada se tornam áreas para o plantio de produtos que atendam às necessidades do Estado. A mudança de uma economia agrária de subsistência para uma economia baseada nas leis do mercado gera riquezas para um pequeno grupo, mas pobreza e fome para a maioria da população camponesa.

Com a transformação socioeconômica, os vínculos “sagrados” entre as famílias camponesas e a terra são bruscamente rompidos. Sem a terra, a casa desmorona. O sistema de troca e solidariedade sucumbe. O sentido da liberdade, da autonomia e da dignidade se dilui. A vida fica sem sentido e o povo, sem identidade. A casa está se desintegrando.

Além do impacto dessas mudanças, as aldeias enfrentam a violência dos exércitos. De um lado, o militarismo imperialista de Teglat-Falasar III, rei da Assíria (745-727 a.C.). De outro, as disputas, os golpes e assassinatos entre os reis de Israel, divididos entre posicionamentos mais ou menos favoráveis à Assíria. As constantes guerras civis arrasam a nação.

A presença do exército nas aldeias é ostensiva e cruel. Ela garante a extorsão de tributos, em produtos e mão de obra: homens para o exército e para trabalhos forçados; mulheres para serviços no palácio ou como concubinas dos reis. O resultado é o esvaziamento do campo, deixado sem trabalhadores e sem cuidado. Além disso, cabe ao exército reprimir as insatisfações e revoltas pela força das armas, o que não se faz sem um embate muito violento.

Os Anais dos reis da Assíria, potência que domina Israel no tempo de Oseias, mencionam incansavelmente os feitos militares: cidades destruídas, demolidas e queimadas — reduzidas a entulho. Essa era também a regra das guerras bíblicas: “Samaria vai pagar, pois revoltou-se Contra o seu Deus: cairão sob a espada, os seus filhos serão esmagados e suas mulheres grávidas terão seus ventres rasgados” (Os 14,1).

O tratamento infligido aos vencidos é bárbaro: pisoteio e morte (cf. Js 10,24-26); mutilação dos polegares das mãos e dos pés (cf. Jz 1,6); decapitação dos chefes (cf. Jz 7,25); massacre de todos os machos (cf. Dt 20,12-13). Oseias nos fala sobre o ataque do rei moabita, contemporâneo de Teglat-Falasar III, na tomada de Galaad: “um clamor de guerra se levantará contra suas cidades, e suas fortalezas serão todas destruídas. Como Sálmana arrasou Bet-Arbel, no dia da guerra, em que a mãe foi esmagada por cima dos filhos” (Os 10,14).

A realidade das guerras e as brutalidades cometidas pelo exército demonstram a violência institucionalizada do Estado atingindo o cotidiano das famílias: “não há mais nascimento, não há mais gravidez, não há mais concepções. Mesmo que eles criem seus filhos, eu os privarei deles antes que sejam homens” (Os 9,11.12); “ainda que eles gerem filhos, farei morrer o fruto querido do seu seio” (Os 9,16; 13,12-13); “dá-lhes entranhas estéreis e seios secos” (Os 9,14).

Quando a casa e a terra são invadidas no Antigo Israel, surgem movimentos de resistência. Ressoa o grito profético em defesa da vida. A profecia de Oseias denuncia a violência e a corrupção da monarquia: “Que farei com você, Efraim? O amor de vocês é como a neblina da manhã, como o orvalho que logo cedo se evapora. Por isso eu os castiguei por meio dos profetas e os matei com as palavras da minha boca, e a minha sentença brotou como a luz” (Os 6,4-6).

O grupo profético de Oseias também critica a ordem social estabelecida. Ninguém fica de fora: rei, elites, sacerdotes, exércitos, profetas. “Ponha a trombeta na boca! A desgraça mergulha como águia sobre a casa de Javé. Eles quebraram a minha aliança, rejeitaram a minha lei. Eles gritam: ‘Deus de Israel, nós te conhecemos’. No entanto, Israel recusou o bem, e o inimigo o perseguirá” (8,1-3). A missão do profeta é anunciar e denunciar. Vejamos quais propostas de resistência nascem no meio do povo.

 

2. Justiça, direito, amor, ternura e fidelidade

Na visão do grupo profético de Oseias, a apropriação da religião em vista da extorsão de tributos em forma de pessoas para o exército, para as obras do Estado, para os serviços da corte, e de produtos agrícolas para manter o comércio está destruindo a nação. A terra está devastada. As guerras só aumentam o sofrimento e a desestruturação da casa. O que há é violência e morte. Nesse contexto, surgem vozes proféticas, que tentam desmascarar aqueles que estão por trás dessa realidade, questiona todas as instituições da época a apresentar suas propostas de resistência.

Retomar a caminhada exige passar pelo deserto (cf. Os 2,16). Embora os oráculos de Oseias 2,16-25 talvez pertençam a uma redação posterior, eles apresentam uma síntese da sua profecia. Nesse texto, encontramos alguns passos concretos para a transformação da realidade. Em Os 2,16 lemos: “Agora, sou eu que vou seduzi-la, vou levá-la ao deserto e conquistar seu coração”. O deserto é uma expressão para falar da terra (cf. Os 2,2).

O caminho para a fertilidade passa pelo deserto (cf. Is 35,1-2). O deserto é o lugar onde se renova a intimidade com Javé. A partir dessa aproximação, o povo pode receber de volta a sua vinha. Deserto é lugar mítico, distante do culto aos baais. É lugar da morada de Javé. E o encontro com a divindade produz a fertilidade da terra e das mulheres. A iniciativa de levar a mulher/Israel para o deserto é de Javé.

O encontro com Javé no deserto é a chave para a fertilidade, a reconciliação com a natureza e consigo mesmo: “eu lhe devolverei as videiras, e o vale de Acor (desgraça) se transformará em Porta da Esperança. Aí ela vai me responder como nos dias de sua mocidade, como no dia em que saiu da terra do Egito” (Os 2,17). O vale de Acor é considerado o lugar do castigo e da desgraça (cf. Js 7,24-26). Vejam a transformação sonhada! Até mesmo o lugar da infelicidade se torna a porta da esperança!

A consequência de passar pelo deserto é a retomada da aliança: “Você me chamará ‘Meu marido’ e não mais ‘Meu ídolo’” (Os 2,18). No original, encontramos para “ídolo” a palavra baal, que significa senhor, proprietário, dono. Na linguagem da época, esse termo é usado também para se referir ao marido. A mulher é contada entre as propriedades do marido (cf. Gn 20,3). Como havia o culto a baal, Oseias quer eliminar qualquer possibilidade de confusão, aplicando o termo marido, literalmente homem. O texto insiste na eliminação de outras divindades: “Vou tirar de seus lábios o nome dos ídolos, e esses nomes nunca mais serão lembrados” (Os 2,19).

Oseias 2,20 fala de uma aliança entre Javé e os animais em benefício do seu povo. É uma contraposição ao castigo de Os 2,14, em que as plantações são transformadas em matagal e entregues como alimento às feras. A aliança permitirá que a pessoa conviva em paz com a natureza. Mas é preciso ir além. Agora o grupo profético, pondo a promessa na boca de Javé, põe o dedo na ferida: “Eliminarei da terra o arco, a espada e a guerra” (Os 2,20).

Para recuperar o solo e as plantações destruídas, é preciso eliminar os mecanismos que estão causando a destruição. No primeiro momento, o grupo profético ataca a dominação religiosa. Propõe retomar a aliança com Javé, eliminando assim o principal mecanismo de dominação ideológica. Tendo atingido uma das colunas do Estado israelita, critica o outro pilar de sustentação do Estado: o exército. Oseias propõe a ruptura com o militarismo.

“Eu me casarei com você” (Os 2,21-22) aparece três vezes. E mais: para sempre, na justiça e no direito, no amor e na ternura, na fidelidade. O termo hebraico hesed, amor, resume o sentido dessa aliança. É o máximo. Esse termo revela predisposição e capacidade para atuar a serviço e em defesa da vida ameaçada. A falta de hesed, causa destruição (cf. Os 4,1). O amor é fruto da justiça (cf. Os 10,12). É condição para refazer o projeto da aliança: “Observe o amor e o direito e coloque sempre a confiança no seu Deus” (Os 12,7). O amor é fonte de vida: “Eu quero amor e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6).

A vivência da hesed é fonte de vida e de fertilidade: “eu responderei ao céu e o céu responderá à terra” (Os 2,23). A chuva que cai do céu fecundará a terra. É Javé que favorecerá a produção: “a terra responderá ao trigo, ao vinho e ao azeite e eles responderão a Jezrael” (Os 2,24). A vivência de novas relações entre mulher e homem é decisiva para a produção.

A mudança começa no deserto — “seduzi-la e falar-lhe ao coração”. Para o povo ainda há esperança. O caminho é enfrentar os mecanismos da opressão econômica e religiosa. Esse enfrentamento acontece mediante novas relações: mulher-homem-filhas(os) e terra. As crianças são renomeadas: Jezrael não será a lembrança do castigo, mas o tempo da semeadura: “Eu a semearei na terra” (Os 1,4; 2,25). A Não Compadecida será Compadecida (cf. Os 1,6; 2,3.25). O Não Meu Povo será o meu povo (cf. Os 1,9; 2,3.25). Por sua vez, os filhos reconhecerão que Javé é o seu Deus. A palavra final desse capítulo é um anúncio de esperança.

Em meio a uma situação desesperadora, um grupo tem coragem de soltar sua voz profética. O grupo de Oseias grita contra as autoridades de seu tempo: “Quando eu estou para curar Israel, aparece a culpa de Efraim e a maldade de Samaria, pois essa gente só pratica a mentira. O ladrão invade a casa, enquanto, do lado de fora, uma quadrilha assalta” (Os 7,1). No contexto político, econômico e religioso do século oitavo, a profecia de Oseias se insurge contra a ordem estabelecida. Um grupo de pessoas ousa sonhar e acreditar. Esse projeto é retomado por outros grupos proféticos, como Jeremias e o Segundo Isaías. Vamos entender melhor de onde surgem esses grupos de resistência?

 

3. O profetismo em Israel

“Não temais o papel do profeta, que o papel do profeta é falar. Tende medo somente do medo de quem acha melhor não cantar”. Assim cantam e creem nossas comunidades. Quando uma pessoa tem coragem de denunciar as injustiças dentro e fora da comunidade, dizemos que ela é um profeta. É isso mesmo. A principal função da profetisa, do profeta, está relacionada à fala. O(a) profeta(profetisa) é um(a) pregador(a) público(a). Para convencer as pessoas, a profecia usa várias formas de linguagem, como exageros, atos simbólicos e dramatizações.

Os discursos proféticos são conhecidos como oráculos, ou seja, como uma resposta de Deus à consulta profética. Porém, os oráculos não caem prontos do céu; nascem no chão de uma sociedade concreta. A profetisa ou o profeta é fruto e porta-voz de um grupo dentro da sociedade. O grupo é o seu ponto de apoio. Por isso, a análise de uma profecia implica conhecer a sociedade do seu tempo e ver quais são os interesses do grupo profético.

A profecia é exercida de maneiras diferentes: a) pode propor reformas ou, mudanças na sociedade, para promover a justiça e a dignidade de grupos excluídos; b) pode trabalhar para manter e legitimar privilégios e poderes das elites.

Em Israel, a profecia ganha maior expressão a partir da instituição da monarquia. A monarquia tem início com Saul (1030-1010 a.C.). Nessa época Samuel é juiz, educado no santuário de Silo (cf. 1Sm 1-3). Ele é porta-voz do grupo que tenta manter a sociedade tribal. As desigualdades sociais, a corrupção das autoridades e as constantes ameaças dos filisteus, por volta do ano 1030 a.C., levam os notáveis a pedir um governo com maior segurança. Nesse contexto, Saul é eleito rei e consegue vencer várias batalhas contra os filisteus. Quando o rei Saul transgride a lei tribal, formando seu próprio exército, fazendo guerras de conquista e se apoderando dos despojos dos vencidos, Samuel age como profeta. Ele entra em choque com o rei, cuja pretensão é centralizar o poder e defender os interesses de grupos privilegiados (cf. 1Sm 13-15).

A consolidação da monarquia se dá com Davi. Ele forma um exército profissional, empreende várias guerras de conquista, impõe cobrança de impostos (cf. 2Sm 8) e constrói uma infraestrutura para o futuro Estado, ao conquistar a cidade de Jerusalém e torná-la sua capital (cf. 2Sm 5). Para dar legitimidade aos interesses do Estado, Davi contrata Natã, um profeta profissional, que se formou, possivelmente, em Jerusalém, antiga cidade-Estado dos jebuseus.

Em Israel havia muitas profetisas e muitos profetas. A história registra apenas alguns nomes. Além dos profetas da tradição oral, existem os profetas da palavra escrita, chamados “profetas clássicos”. Vejamos o que dizem algumas dessas vozes e que interesses defendem.

 

Amós

Vive e se forma no meio de famílias camponesas exploradas, no tempo de maior esplendor e prosperidade do reino do norte. Nesse período, o rei de Israel, Jeroboão II (783-743 a.C.), faz aliança de paz com Ozias (781-740 a.C), rei de Judá. Os dois reinos, juntos, detêm o controle das principais rotas comerciais. Mas a outra face da prosperidade é a miséria e a espoliação de muitos (cf. Am 2,6-8). Amós denuncia a corrupção, o luxo e a exploração da elite (cf. Am 6,1-7; 8,4-6) e rejeita a denominação de profeta, por estar associada ao profeta da corte, que defende e legitima os interesses do rei (cf. Am 7,10-17). Amós também anuncia o “dia de Javé”, dia do julgamento de Deus sobre as nações estrangeiras e sobre os dirigentes de Israel (cf. Am 5,18-20). Sua proposta está relacionada ao restabelecimento da justiça.

 

Isaías, também chamado de Primeiro Isaías (Is 1-39)

Prega no reino do sul, durante os governos dos reis Ozias, Joatão, Acaz e Ezequias (entre os anos 740-701 a.C.; cf. Is 1,1). Ele é profeta da corte, conselheiro do rei (cf. 2Rs 19,1-7), formado segundo a teologia monarquista e davídica de Jerusalém (cf. Is 6). Assim, ele acredita que o templo é o lugar da morada de Javé e que o rei é o intermediário legítimo da aliança entre Deus e seu povo. Isaías critica duramente a corrupção das elites e defende oprimidos, órfãos e viúvas (cf. Is 1-3), mas defende também a continuidade da monarquia, do templo e da cidade santa. Ele acredita que um rei justo e libertador — o messias — trará a salvação (cf. Is 9,1-6).

 

Miqueias

Vive em Morasti-Gat, interior do reino do sul (cf. Mq 1,1), na mesma época de Isaías. Sua aldeia situa-se numa região de fortalezas militares, o que significa exploração dobrada sobre as famílias camponesas para abastecer o exército de produtos e mão de obra. Diante dessa realidade, Miqueias se toma porta-voz de camponesas e camponeses abatidos pela exploração do Estado: “Escutem bem, chefes de Jacó, governantes da casa de Israel! Por acaso, não é obrigação de vocês conhecer o direito? Inimigos do bem e amantes do mal, vocês esfolam o povo e descamam os seus ossos; vocês são gente que devora a carne do meu povo e o esfola; quebra seus ossos e os faz em pedaços, como carne de panela, como um cozido no caldeirão” (Mq 3,1-3). Miqueias também denuncia o abuso e a tortura praticada pela elite (cf. Mq 2,1-2), critica os profetas da corte (cf. Mq 3,5-8) e propõe a destruição da monarquia (cf. Mq 3,9-12).

 

Sofonias

Seu ministério situa-se em Judá, no final do governo de Manassés e durante o reinado de Josias (provavelmente entre 640-620 a.C.). Ele faz severas críticas contra a cidade de Jerusalém, contra seus chefes, juízes, profetas e sacerdotes (cf. Sf 3,1-4). Denuncia comerciantes inescrupulosos (cf. Sf 1,10-11), classes ricas e opulentas (cf. Sf 1,12-13), estrangeiros opressores (cf. Sf 2,4-15) e cultuadores de Baal (cf. Sf 1,4-6). Sofonias defende o interesse dos pobres da terra, das pequenas famílias camponesas e pastoras (cf. Sf 2,6) — um resto miserável (cf. Sf 3,12). Ele também anuncia a proximidade do dia de Javé, expressão usada para falar da intervenção e do julgamento de Deus contra os dirigentes (cf. Sf 1,2-3.7). Sua proposta é uma nova sociedade organizada com base nos pobres da terra (cf. Sf 2,1-3), em oposição à reforma de Josias (cf. 2Rs 22-23).

 

Jeremias

Levita originário de Anatot, pequena aldeia do interior de Judá, ligada às tradições proféticas do norte. Ele é porta-voz de camponesas e camponeses, pobres da terra, que sofrem com a situação do país. Sua atividade se desenvolve no final do reinado de Josias até a terceira deportação (582 a.C.). No governo de Joaquim (609-597), o profeta é torturado por denunciar os desmandos do rei contra as famílias camponesas (cf. Jr 22,13-19; 20,1-6). No tempo de Sedecias (597-587), após a primeira deportação para a Babilônia, o profeta continua a criticar a elite judaica em Jerusalém, anunciando o fim próximo do templo e da cidade santa (cf. Jr 26); por isso, novamente é torturado a ponto de quase morrer. Após a queda de Jerusalém e a segunda deportação (587 a.C.), Jeremias inicia um projeto de reforma agrária com Godolias, governador indicado pelos babilônios para administrar Judá. Mudam a capital para Masfa (cf. 1Sm 10,17) e chegam a realizar colheita abundante (cf. Jr 40,1-12). Mas logo Godolias é assassinado, e a retomada da experiência tribal cai por terra (cf. Jr 41). A vida de Jeremias, sempre em defesa dos pobres, é marcada pelo sofrimento (cf. Jr 20,14), mas sua fidelidade a Javé tudo supera: “Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir” (cf. Jr 20,7a).

 

Ezequiel

Sacerdote da corte exilado na Babilônia por ocasião da primeira deportação. Ele exerce sua atividade entre os anos 593 e 571 a.C. (cf. Ez 1,1-3). No início do exílio, quando todos imaginam que esse desastre logo passará, o profeta anuncia a condenação de Jerusalém. Para ele, os culpados são príncipes, sacerdotes, nobres, profetas, latifundiários e reis (cf. Ez 34). Depois, ao tomar conhecimento da destruição da cidade e do templo de Jerusalém, símbolos fundamentais para os judaítas, Ezequiel procura animar os grupos da elite, dizendo que Javé se exilou com eles (cf. Ez 3,23) e que, após o retorno para Judá, a monarquia davídica será restaurada (cf. Ez 37,20-28), especialmente a partir da reconstrução do templo.

 

Segundo Isaías (Is 40-55)

É um grupo de levitas que procura alimentar a esperança do povo no exílio. Para isso, faz nova leitura do êxodo e renova a certeza de que Deus novamente libertará o seu povo. Ele e sua comunidade viveram na própria pele o sofrimento no exílio (cf. Is 41,17). A partir dessa realidade, brotam imagens de um Deus que ama o seu povo mais do que a mãe ama o seu filho, e não o abandona jamais (cf. Is 49,15). O Segundo Isaías, descrente da monarquia, proclama que o messias-servo libertará o povo (cf. Is 42,1-9).

 

Com o fim do exílio, a profecia assume novo rosto. Judá torna-se colônia do império persa (538-333 a.C.). E, para controlar melhor a região, os persas conferem aos sacerdotes o controle da comunidade judaica. Dessa maneira, o templo se apropria da profecia, que deixa de expressar a voz do povo. A partir de então, a resistência popular se manifesta nos livros sapienciais, especialmente nas novelas bíblicas — como Rute, Jonas, Jó, Cântico dos Cânticos, Judite — e na apocalíptica — como em alguns textos do Terceiro Isaías (56-66) e em Daniel, entre outros.

Mas a tradição profética não morre. Chega aos tempos de Jesus. Muita gente o reconhece como profeta. Ele é um homem judeu, nascido no interior da Galileia. Sua prática cotidiana desperta nas pessoas mais pobres e enfraquecidas a esperança de voltar à vida e as põe novamente no caminho da partilha, da solidariedade e da justiça (cf. Mc 1,21-2,27; 6,30-44). Assim, a ação de Jesus se torna uma ameaça direta à ordem social mantida pelo império romano, pelos herodianos e pelo sinédrio (cf. Mc 12,13-17; 11,15-19), a qual causa a escravização de grande parte da população camponesa (cf. Ap 18,9-24). Jesus anuncia nova ordem social, política e econômica, segundo a qual todas as pessoas são abençoadas, independentemente de raça, grupo social, idade ou sexo, e chamadas a viver na justiça, na solidariedade e na igualdade (cf. Lc 6,20-23). A sua mensagem incomoda muito as autoridades de sua época. Por isso, Jesus é perseguido, torturado e assassinado.

E a profecia chega aos nossos dias: Chico Mendes, Pe. João Bosco, Margarida Alves, Santo Dias, Pe. Josimo, Ir. Dorothy Stang… morrem lutando por um mundo mais justo e solidário. E tantas outras pessoas anônimas, que não aparecem nas manchetes dos jornais nem nos noticiários da TV, permanecem de pé na luta contra a injustiça e a opressão. Suas vozes continuam ecoando. São pessoas corajosas, que não pensam apenas em seu bem-estar pessoal, mas se comprometem com problemas e causas coletivas. O sangue dessa gente continua regando as terras do nosso Brasil, e a semente brotada alimenta a esperança de que “um outro mundo é possível”.

Shigeyuki Nakanose, svd