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Publicado em número 213 - (pp. 7-12)

Sagrado: crer no milagre da vida

Por Pe. Shigeyuki Nakanose, svd; Maria Antônia Marques

A ressurreição de Lázaro: uma leitura de João 11,1-44

O evangelho de João apresenta o testemunho de comunidades que acreditaram no milagre da vida. Na convivência solidária brotou uma nova experiência de Deus: um Deus que se faz carne na vida concreta das pessoas. Num contexto de perseguição e de sofrimento, os grupos se deram as mãos e buscaram formas alternativas de viver. Uma verdadeira experiência de ressurreição!

Essa mesma experiência de ressurreição acontece hoje na vida das pessoas e das comunidades. Um gesto de amor tem o potencial de ressuscitar. Conversamos com Enis, uma pessoa que passou sete anos e oito meses na Casa de Detenção de São Paulo. Ao sair da prisão, ele passou a acolher egressos em sua residência, que já abrigou mais de 100 pessoas nesta situação. Enis foi se modificando a partir do momento que começou a frequentar os encontros da Pastoral Carcerária. No “túmulo” — na prisão — ele encontrou quem lhe estendesse a mão. Sua vida ganhou novo sentido: estender a mão aos presos e egressos.

Hoje, com o apoio da comunidade, existe o Núcleo de Referência São Maximiliano Kolbe, na cidade de Cajamar, no bairro Polvilho. Uma associa­ção que atende presidiários — paraplégicos, portadores do HIV e idosos — que necessitam de tratamento domiciliar. Neide, esposa de Enis, assume a coordenação dessa casa. A entidade funciona com a solidariedade amorosa de toda a comunidade.

Deus continua se encarnando!… Enis sentiu de perto a gratuidade do amor de Deus que, por intermédio de pessoas irmãs, estendeu-lhe a mão. Para ele, a vida ressurgiu! Ele ressuscitou! E mais ainda: com a ajuda da comunidade e de sua família, ele continua ajudando as pessoas a “saírem do túmulo”. É o amor que faz a vida renascer… Uma experiência sagrada!

As comunidades joaninas, também conhecidas como comunidades do discípulo amado, viveram essa mesma certeza. Na convivência solidária os laços de amor criaram fortes raízes. Dessa vivência nasceu a certeza da presença de Deus na comunidade: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Essa convicção foi a mística que sustentou a vida das comunidades.

Esses grupos nos deixaram como herança o seu evangelho. Na parte central desse livro encontramos o episódio da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-44), que prefigura a ressurreição de Jesus. Esse acontecimento retrata, de forma simbólica, a prática das comunidades. As pessoas, mesmo arriscando a própria vida, vão ao encontro do ser humano em sua realidade de sofrimento e morte. Entre as comunidades, representadas nas figuras de Jesus, Lázaro, Marta e Maria, existe uma profunda comunhão. Amor e solidariedade capazes de superar a realidade de morte. A vivência do amor e da solidariedade tem a força sagrada de devolver a alegria e o sentido da vida.

A ressurreição de Lázaro é um texto exclusivo do Evangelho de João, faz parte do livro dos sinais. Os seis primeiros sinais (2,1-12; 4,46-54; 5,1-18; 6,1- 15; 6,16-21; 9,1-44), escolhidos pelas comunidades, são seguidos de discursos, com o objetivo de explicar os gestos de Jesus. Os discursos desenvolvem um tema único, sob diferentes enfoques. Nos discursos de João temos a reflexão da comunidade a partir da experiência de ressurreição. Não é o Jesus histórico que fala, mas sim a comunidade que faz a experiência de Cristo ressuscitado.

O capítulo 11 tem uma estrutura diferente dos outros sinais. Nesse texto palavras e gestos estão intercalados. É uma narrativa linear, disposta da seguinte forma: introdução (1-6), diálogo entre Jesus e os discípulos (7-16), diálogo entre Jesus e Marta (17-27), encontro de Jesus, Maria e os judeus (28-37), Jesus e a superação da morte (38-44), as reações ao milagre (45-53). A situação da comunidade é descrita com as imagens da doença e morte de Lázaro e incompreensão dos discípulos.

Inicialmente os, discípulos advertem Jesus: “Rabi, há pouco os judeus procuravam apedrejar-te e vais outra vez para lá?” (v. 8). Em seguida, mesmo com medo, eles afirmam sua adesão ao Filho de Deus: “Vamos também nós, para morrermos com ele!” (v. 16). Essa atitude reflete a situação vivida pelo grupo: perseguições (vv. 8.50), torturas (v. 8) e a morte de muitos membros (v. 14). Nesse contexto, as comunidades precisam renovar sua fé em Jesus como a ressurreição e a vida acontecendo no tempo presente (v. 27). A doença e a morte de Lázaro revelam o dia a dia da comunidade.

A sobrevivência das comunidades está se tornando quase impossível. Elas precisam encontrar formas de sair dessa situação… Acreditar na vida. Isso é comprovado pelo uso do verbo crer, que aparece 98 vezes no Evangelho de João, e a palavra vida, que aparece 36 vezes. Uma leitura cuidadosa do capítulo 11 nos permite perceber que existe um contínuo movimento de sair: Jesus e os discípulos saem da Transjordânia (vv. 7.15); os judeus, de Jerusalém (v. 19); Marta, da aldeia (v. 20); Maria, com os judeus, de sua casa e da aldeia (vv. 29.31); Lázaro, do túmulo (v. 44). É preciso sair, abandonar a inatividade e a passividade… Voltar à vida! O que estava acontecendo nas comunidades joaninas?

 

1. Olhando a história

A situação política, econômica e social, no tempo de Jesus e das primeiras comunidades, era caótica. Havia descontentamentos e revoltas contra o domínio do império romano, um governo cruel e violento. Em 66 d.C., quando os romanos saquearam o Templo de Jerusalém, os vários grupos existentes — saduceus, essênios, zelotas, herodianos, sicários e outros —, mesmo tendo ideologias diferentes, uniram-se para lutar contra os dominadores. Esse movimento ficou conhecido como a guerra judaica (66-73 d.C.).

Nessa guerra, o povo judeu foi massacrado pelos romanos. Jerusalém, a cidade santa, e o Templo foram destruídos. O Templo era uma instituição central na vida do povo judeu, exercia total controle sobre sua vida. Os grupos que lutaram contra os romanos foram desarticulados e quase desapareceram. Os judeus cristãos e os judeus fariseus não assumiram a luta até o fim, por isso conseguiram sobreviver. Logo após a guerra, os grupos remanescentes começaram a reorganizar a vida do povo.

Os fariseus e os escribas, menos dependentes do Templo, desenvolveram uma estrutura alternativa. Fazia tempo que eles exerciam suas atividades nas sinagogas, através da função de explicar e interpretar a Lei. No contexto de destruição das instituições judaicas, como o Templo e o sinédrio — conselho supremo dos judeus —, o povo buscou refúgio e segurança no movimento dos fariseus e escribas. Aos poucos, os judeus fariseus foram se fortalecendo, a sinagoga passou a ser forte instituição para garantir, proteger e controlar a vida do povo. Assim, os romanos perceberam que seria vantajoso aliar-se aos judeus fariseus.

A aliança com os romanos favoreceu o desenvolvimento dos judeus de linha farisaica. Surgiram muitos grupos, entre eles encontramos a Academia de Jâmnia, fundada pelo rabino Iohanan ben-Zakai. O chefe desse grupo, o Patriarca, era reconhecido pelo império romano como representante do povo judeu. Como aliado dos romanos, ele tinha o direito de interpretar e aplicar a Lei de Deus, utilizando-a também para cobrar tributos dos judeus.

Ora, a Lei de Deus, enquanto instrumento de defesa da vida, é algo sagrado. Mas no momento que ela se torna instrumento de opressão, acontece um desvio. O sagrado é usado para a morte. Esta é uma prática a partir do poder religioso e sociopolítico centralizado no Templo, priorizando a defesa de leis, ritos, dogmas e estruturas religiosas e sociais. Isso leva à hierarquização das pessoas, onde uns poucos são considerados os puros, os filhos de Abraão (8,33.39) e os que fazem parte da maioria, os pobres, são considerados malditos (7,49) e nascidos em pecado (9,2.34). Cria uma imagem do sagrado usada para amedrontar, excluir e expulsar pessoas (9,22.34). Em nome do sagrado atribui-se até o direito de apedrejar a mulher pega em adultério (8,5), que ameaça e expulsa o cego curado (9,34), que mata Jesus por transgredir os ritos e as leis (5,16-18;7,1.19.25;8,59).

Para os judeus, cumprir a Lei era cumprir a ordem de Deus. Entre as leis, havia a lei do puro e do impuro. Essa lei definia quem estava mais perto de Deus. Uma pessoa doente ou com alguma deficiência física era considerada impura por causa de algum pecado, uma vez que a doença era vista como castigo de Deus. O simples contato com pessoas ou coisas impuras jà causava impureza. Estar impuro significava não poder participar do culto e, consequentemente, da salvação.

Muitas pessoas viviam em condições quase permanentes de impureza. As autoridades judaicas, através da Lei, tinham a pretensão de controlar o corpo das pessoas. Essa situação de opressão tinha maior peso para a mulher, que ficava impura por causa da menstruação (Lv 15,19), das relações sexuais (Lv 15,18) e por dar à luz (Lv 12,2-5). Para se purificarem as pessoas deviam levar ofertas e pagar o tributo religioso em dia. Isso custava muito caro, dificultando para os pobres o cumprimento da Lei.

O ensino da Lei era feito através da sinagoga, uma instituição reconhecida pelo império romano. Através da aliança com os romanos, a religião judaica, organizada pelos fariseus, era considerada como religião lícita — religião permitida pela lei do Império Romano. Os judeus ligados à sinagoga conquistaram o direito de se reunir, de manter uma caixa comum e de ter propriedades. Eles eram dispensados de prestar culto às divindades do Império Romano, tinham o direito de observar o sábado, de praticar seu culto e a sua Lei e participavam do exército — só de judeus — quando necessário. Cada comunidade local tinha suas leis administrativas, estabelecia locais para estudo, culto e sepultamentos; oferecia ajuda aos indigentes e mantinha tribunais para julgar disputas entre judeus.

Por volta do ano 85, as sinagogas estavam espalhadas por toda a Ásia Menor. Os judeus fariseus, na tentativa de preservar a sua identidade como grupo e manter seus interesses, começaram a exigir uma observância rigorosa da Lei. No interior da sinagoga, alguns grupos, entre eles os grupos dos cristãos, começaram a relativizar a importância da Lei, colocando em primeiro lugar a vida humana. Isso provocou vários conflitos. Aqueles que não cumpriam a Lei eram perseguidos (Jo 8,48; 10,21), torturados (Jo 10,39) e ex­pulsos da sinagoga (Jo 9,34), consequentemente ficavam sujeitos à perseguição do Império Romano.

Entre os grupos cristãos, estavam as comunidades joaninas. Comunidades compostas de pessoas pobres e marginalizadas. Comunidades ecumênicas, abertas a todos os povos e com a presença de mulheres na liderança. As comunidades eram constituídas por galileus (1,44; 4,45), samaritanos (4,39-42), judeus (11,45), gregos (7,35; 12,20), todos reunidos em nome de Jesus ressuscitado. O modo de viver desses grupos intensificou o conflito com os judeus fariseus (10,31.39; 15,18-27).

A expulsão dos judeus cristãos da sinagoga teve consequências dramáticas. Além do sofrimento causado pela separação de suas tradições, eles ficaram sem proteção, sem trabalho, sem relações sociais e comerciais, sem escola, sem os serviços e ritos religiosos, principalmente o sepultamento. E mais ainda: vulneráveis à perseguição do Império Romano. O capítulo 9, do evangelho de João, reflete essa situação: “… os judeus já tinham combinado que, se alguém reconhecesse Jesus como Cristo, seria expulso da sinagoga” (9,22.34).

As comunidades também enfrentaram muitos conflitos internos. Nem tudo era um mar de rosas. Os grupos eram diferentes, cada um com suas características e seu jeito de viver a religião. Não devia ser fácil para os judeus, ainda arraigados em suas tradições, aceitar a liderança das mulheres. O mesmo acontecia entre os samaritanos e judeus. A superação de antigas rivalidades não aconteceu de um momento para o outro, certamente foi fruto de um longo processo comunitário. Os problemas internos eram muitos, porém, as comunidades do discípulo amado procuraram ultrapassar as barreiras impostas pela Lei, classe social, origem, sexo, idade… O enfrentamento dos problemas internos e externos só foi possível a partir da convivência, dos laços de amor que existiam entre as pessoas. Uma experiência tão forte e humanitária que as comunidades puderam afirmar que “Deus se fez carne”: vivência do sagrado.

Vamos olhar mais de perto a vida dessas pessoas a partir da narrativa da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-44).

 

2. Convivência solidária: força motivadora da comunidade

Estamos na comunidade de Betânia (Jo 11, 1). Betânia quer dizer casa dos pobres. Uma comunidade marcada pelo amor e ajuda mútua entre os seus membros. Jesus gostava de se hospedar nessa comunidade. Marta e Maria, irmãs de Lázaro, comunicam para Jesus que Lázaro está doente (11,3). Marta quer dizer “senhora” — uma mulher que exerce a liderança na comunidade. Maria significa a “amada de Deus” — a discípula amada. Elas são irmãs de Lázaro. O termo irmão era um tratamento muito comum entre os cristãos após a ressurreição de Jesus (11, 1; cf. também Ef 6,23; Gl 1,2). Outro modo familiar de tratamento entre eles era amigo (11,11).

Lázaro é o único enfermo que recebe nome próprio (4,46b; 5,3; 9,1). Ele é discípulo, tem identidade, é amado: “Vede como ele o amava” (11,36). O nome Lázaro vem do hebraico el’azar, Deus ajudou, aquele que Deus não abandona. Este acontecimento comunica uma grande verdade: Deus não abandona os pobres e pequenos. Com a presença de Jesus a comunidade volta à vida.

Vejamos alguns detalhes desse episódio. As irmãs Marta e Maria enviam o recado para Jesus avisando que o irmão delas está doente. Diante da notícia, Jesus afirma: “Essa doença não é para a morte, mas para a glória de Deus, para que, por ela, seja glorificado o Filho de Deus” (11,4). Jesus demora dois dias para atender o chamado das irmãs. Quando ele chega, Lázaro já está morto há quatro dias. De acordo com a crença daquela época, depois do terceiro dia seria impossível voltar à vida, o corpo entra em decomposição (Jo 11,39). Como entender que a doença não é mortal se Lázaro morre (11,14)? E mais: o que significa dizer que a doença é para a glória de Deus? Apesar da situação de perseguição, sofrimento e morte (Jo 8,40.59; 10,31; 12,10), as comunidades continuam acreditando em Jesus como o Filho de Deus. A glória de Deus é o testemunho (martírio) e a resistência desses grupos.

Marta, ao receber a notícia de que Jesus está chegando, sai ao seu encontro. A comunidade, na pessoa de Marta, é chamada a crescer na fé, a superar a crença na ressurreição do último dia (11,24) e acreditar que Jesus não é apenas alguém que faz milagres (11,22), mas é a ressurreição e a vida (11,25). A comunidade faz o seu ato de fé: “Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo” (11,27).

Essa confissão de fé é o ponto alto desse texto. As pessoas precisavam reavivar a própria fé e reavivar a esperança para resistir ao sofrimento e às perseguições. Marta, por sua própria iniciativa, avisa Maria sobre a presença de Jesus na região. O recado é dado em voz baixa (11,28). Isso indica que havia hostilidade contra Jesus nos meios oficiais. As comunidades, articuladas principalmente pelas mulheres, sobreviviam às escondidas. Com a presença de Jesus, as pessoas são arrancadas do medo, ganham novo ânimo para a ação (11,29).

O encontro de Maria e Jesus é pleno de sentimentos. Ela “prostrou-se a seus pés” (11,32). Uma relação de intimidade e afeto entre Jesus e os seus. Esta cena é análoga à de 12,1-3, na qual Maria unge com perfume os pés de Jesus e enxuga-os com os seus cabelos. O perfume e os cabelos simbolizam a vida e o amor da comunidade para com Jesus. Ao se prostrar aos pés de Jesus, a comunidade reafirma o seu gesto de amor. Jesus, por sua vez, mostra-se solidário: ante a dor e o sofrimento da comunidade ele “comoveu-se interiormente e ficou conturbado” (11,33). “Jesus chorou” (Jo 11,35) e “comoveu-se de novo” (Jo 11,38).

Diante do sofrimento da comunidade, o primeiro verbo usado para descrever a reação de Jesus é “comover-se”, do grego embrimáomai, literalmente significa “produzir um ruído surdo”, estar furioso, uma agitação interior, indignar-se contra algo. Diante das lágrimas de Maria e dos judeus (v. 33), Jesus não se contém. A dor é imensa. Jesus não fica imparcial ante o abandono e o sofrimento das comunidades.

Jesus fica conturbado… Conturbar-se, em grego tarásso, significa agitar, inquietar-se, perturbar-se. Esse verbo aparece seis vezes no evangelho de João. O mesmo verbo aparece em Jo 13,21. Ante o anúncio da traição de Judas, Jesus perturbou-se interiormente. Jesus sente a perda do amigo… a desintegração da comunidade lhe causa sofrimento e tristeza. No discurso da despedida de Jesus (14,1), a comunidade se perturba. Sente a dor da separação. Em Jo 11,33 é possível afirmar que Jesus sente uma profunda como­ção. Os seus amigos e amigas estão passando por uma realidade de morte.

“Jesus chorou” (Jo 11,35). O verbo dakryo é único no Novo Testamento. Jesus é tomado por um profundo sentimento de perda e tristeza. Diante do choro de Jesus, os judeus concluem: “Vede como ele o amava!”. Essa é a principal característica das comunidades do discípulo amado: o amor mútuo entre Jesus e os membros da comunidade. “Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13,35).

Por trás da reação de Jesus, tão humana e afetiva, podemos ler as atitudes cotidianas das comunidades do discípulo amado: a convivência e o laço de amor que une os membros entre si na dor e na alegria. Sinal da presença de Jesus Ressuscitado na comunidade. Isso é sagrado!

As comunidades não se deixam abater pela dor e pelo sofrimento. Estão convictas da necessidade de sair… Jesus pergunta: onde o colocaram? Maria responde: Senhor, vem e vê (11,34). Ir e ver, no evangelho de João, significa proximidade, convivência (Jo 1,39; 20,3-5). Ele se dirige ao sepulcro. Pela primeira vez no evangelho de João, Jesus é colocado diante da realidade da morte, fim último do ser humano. A presença de Jesus no sepulcro não é para chorar a morte, mas para fazer ressurgir uma vida nova.

Jesus manda retirar a pedra, Marta faz uma objeção: “Senhor, já cheira mal: é o quarto dia!” (11,39). Novamente a comunidade é chamada a amadurecer na fé: “Se creres, verás a glória de Deus” (11,40). Ao retirarem a pedra, em vez de Jesus fazer um pedido, ele pronuncia uma ação de graças. Jesus sabe que o Pai o atendeu. Esta confiança brota da experiência do sagrado, uma vivência das comunidades. Do dia a dia nasce a convicção na unidade entre o Pai, o Filho e o Espírito, fonte de vida nova (Jo 3,8; 10,30; 15,1-6.26). A vida nova depende da ação solidária e amorosa da comunidade. “E Jesus gritou em alta voz: Lázaro, vem para fora!” (v. 43).

Atenção! É a comunidade que ajuda a ressuscitar Lázaro, desata-lhe as mãos e os pés. A comunidade colabora para devolver a vida a seus membros. O grito de Jesus e das comunidades expressa o clamor pela vida! É a convivência, sedimentada pelos laços de amor, que faz a comunidade defender a vida e ressuscitar. À medida que as pessoas vão sendo libertas de suas amarras, elas se abrem para uma nova vida.

 

3. Uma experiência de Deus que nasce do cotidiano

A situação vivida pelas comunidades propiciou uma nova experiência de Deus. Naquele contexto, era preciso dar sentido à vida das pessoas que estavam sendo perseguidas e mortas por buscar formas alternativas de viver. Elas precisavam renovar a certeza de que, apesar da morte física, os ideais e a memória de seus companheiros e companheiras continuariam vivendo nos irmãos e irmãs. “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (11,25).

No Antigo Israel não existia o conceito de ressurreição. A crença corrente era de que a pessoa tinha de aproveitar bem a vida, usufruir os bens e as riquezas neste mundo. De acordo com a teologia da retribuição, uma pessoa justa, aquela que cumpria a Lei, era abençoada por Deus com riqueza e vida longa (Dt 5,33; Lv 18,5; Ne 9,29; Sl 112,1-6). Quando uma pessoa morria, era colocada no túmulo e daí ia direto para o reino dos mortos, o Xeol. A vida era limitada. A morte era vista como castigo e o fim de tudo (Jo 24,19; Sl 55,16).

A primeira vez que aparece o tema da ressurreição no Antigo Testamento é no livro de Daniel (12,2-3), escrito por volta de 164 a.C. Essa mesma crença é confirmada no período dos Macabeus (2Mc 7,9.11.23;14,46). Diante dos justos que estavam sendo mortos por defender a Lei e a tradição judaica contra o domínio dos gregos, a ideia da morte como o fim de tudo foi se tornando inaceitável. O conceito de ressurreição foi uma tentativa de dar sentido à morte dos justos e incentivar os judeus na resistência contra os gregos. No entanto, a ideia de ressurreição caminhou de acordo com os princípios da teologia da retribuição. Acreditava-se que os justos ressuscitariam para a vida eterna e os injustos para o castigo eterno (Mt 25,46).

Essa mentalidade também fazia parte das comunidades joaninas (5,29; 11,21-22). A resposta de Marta a Jesus: “Sei que meu irmão ressuscitará na ressurreição, no último dia” (v. 24), reflete a fé judaica. No entanto a realidade de dor, de sofrimento, de estar no fundo do poço, levou as comunidades a buscar superar a visão de sofrimento como castigo. As comunidades encontram luzes para sua caminhada em outros grupos, como, por exemplo, o grupo do Servo Sofredor, descritos no livro de Isaías, que viveram situações muito semelhantes. No sofrimento, eles experimentaram a presença de Deus: “Como uma mulher que está em dores de parto eu gemia” (Is 42,14b). “Os pobres e os indigentes buscam água e nada! A sua língua está seca de sede, mas eu, Iahweh, os atenderei, eu, o Deus de Israel, não os abandonarei” (Is 41,17).

A experiência que as comunidades do discípulo amado vivem encontra eco na teologia do Servo Sofredor, aquele que dá a vida para implantar a justiça. É o amor solidário que possibilita restaurar a vida de muitos (Is 53,10-11). Uma atitude que desafia a compreensão humana: é a história de um povo que sofre, é humilhado, empobrecido e mesmo assim é capaz de tecer sua vida com os fios da solidariedade. A atitude do Servo é a expressão máxima de sua solidariedade para com o ser humano. No Novo Testamento, as comunidades veem na prática de Jesus a atitude do Servo: aquele que dá a vida em resgate de muitos (Jo 12,24).

As comunidades enfrentam a mesma situação. Elas se espelham na atitude do servo e na prática de Jesus e procuram desfazer os laços da injustiça com a solidariedade extrema, amando até o fim (Jo 13,1). Nos pequenos gestos e nas pequenas conquistas, as comunidades experimentam a força da vida. É ressurreição acontecendo na vida cotidiana com a colaboração de todos. São as comunidades que buscam as soluções para os seus próprios problemas, (11,39.44).

Com essa experiência nasce uma nova imagem de Deus: Ele se faz carne. Deus está vivo e presente na vida concreta das pessoas. O sagrado não está nas nuvens, mas está entre nós. A ressurreição não acontecerá só no último dia, mas é uma experiência que acontece à medida que alguém é capaz de dar a vida por seus companheiros e companheiras de caminhada no dia a dia, nos pequenos gestos e atitudes. É a situação da pessoa que, mesmo estando “na pior”, “no túmulo”, é capaz de abrir-se para quem está ao seu lado.

Sentir Deus presente no irmão e na irmã é uma vivência sagrada e dá novo impulso para a vida. A prática da comunidade de Betânia espelha as comunidades do discípulo amado. Comunidades marcadas pelo amor mútuo, pela solidariedade e pela capacidade de dar a própria vida para gerar mais vida. Nessa convivência, o carinho de Deus, presente nas pessoas, assume um rosto concreto: amor solidário. É Deus que se encarna no humano. As pessoas de mentalidades e grupos diferentes acreditam na presença do Verbo Encarnado em seu meio. Com essa vivência, sentem-se tocadas pelo sagrado na pessoa que está ao seu lado. Esta busca faz as pessoas acreditarem no milagre da vida.

 

4. O milagre da vida na experiência cotidiana

A pessoa que experimenta o sagrado não se fecha em si mesma. É uma vivência que transcende, que vai além… Isso aconteceu e continua acontecendo na vida de Enis e de toda a sua família.

Ao relatar a sua caminhada, Enis lembrou alguns fatos desanimadores. Contou que um rapaz que estava abrigado em sua casa roubou o carro da Pastoral Carcerária. Outra vez, dois homens — um egresso e um morador de rua — exigiram na justiça os direitos deles. E ainda mais: acabou pagando um “enterro” que não aconteceu. Ele mesmo se perguntava: “Por que eu continuo nesse trabalho?” Em seguida, ele deu a resposta: “Eu e minha mulher não conseguimos mais viver sem isso”.

Essa experiência é um verdadeiro milagre que acontece no cotidiano! Em nossas comunidades há muitas pessoas que foram tocadas pelo sagrado. Impulsionadas por essa experiência, elas se colocam totalmente a serviço, possibilitando a outras pessoas fazer a experiência que elas fizeram.

Encontramos o sagrado nas pessoas que se colocam a serviço uns dos outros. Pessoas que, mesmo enfrentando as situações mais difíceis, são capazes de gestos amorosos e solidários, que nos desconcertam e nos levam a uma mudança de vida. “Era desprezado, e abandonado pelos homens, um homem sujeito à dor, familiarizado coma enfermidade, como uma pessoa de quem todos escondem o rosto, não fazíamos caso nenhum dele. E, no entanto, eram as nossas enfermidades que ele carregava sobre si, as nossas dores que ele carregava” (Is 53,3-4).

Independente da religião, classe social, gênero, grupo étnico, é importante que todos e todas se unam para tirar a pedra, ir ao encontro do outro, da outra; desfazer as amarras que impedem que a pessoa tenha dignidade de vida.

Fica para nós o desafio: Quais as ataduras que existem em nosso meio, precisando de nossa colaboração para serem removidas? Como a experiência do sagrado, tanto nos momentos de sofrimento como de festa, ajuda a comunidade a superar os próprios problemas?

 

Bibliografia: Centro Bíblico Verbo, Da Comunidade nasce a nova vida! Evangelho de João: roteiros e subsídios para encontros, Paulus, São Paulo, 1999.

 

Pe. Shigeyuki Nakanose, svd; Maria Antônia Marques