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Publicado em julho-agosto de 2019 - ano 60 - número 328 - Pág. 03-12

Formação Presbiteral: Os desafios morais de uma empreitada

Por Eliseu Wisniewski

O artigo leva em conta a primeira e a segunda parte do texto das Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil, procurando observar como os bispos trataram as questões morais que desafiam a formação presbiteral. Em seguida, lança luzes sobre a empreitada da formação, tomando como referência a obra Formação: desafios morais.

Introdução

Em 2016, a Congregação para o Clero publicou a Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis e, em 2018, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na 56ª Assembleia Geral, trabalhou na elaboração das novas Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil. Essas novas diretrizes levam em conta, especialmente, as orientações da Ratio e o magistério do papa Francisco, buscando, com base neles, imprimir unidade, coerência e gradualidade ao processo de formação dos presbíteros.

Inicialmente vamos nos debruçar sobre a primeira e a segunda parte do texto das Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil, [1] destacando como os bispos abordaram as questões morais que desafiam a formação presbiteral, e, num segundo momento, lançaremos luzes sobre esses desafios, tomando como referência a obra Formação: desafios morais (TRASFERETTI; MILLEN; ZACHARIAS, 2018). Entendemos que essa obra constitui uma contribuição significativa para aqueles que se dedicam ao ministério formativo, oferecendo luzes e perspectivas para um trabalho formativo eficaz, porque respeitoso com as pessoas e com o chamado de Deus para cada uma delas.

1. Os desafios morais nas “Diretrizes para a formação dos presbíteros”

O texto das Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil está estruturado em três partes, abordando, na primeira, as três coordenadas da formação presbiteral (o contexto como desafio, os fundamentos teológicos, o processo formativo), na segunda, a formação inicial (espaços formativos, tempos formativos, pedagogia e itinerário formativo, dimensões da formação) e, na terceira, a formação permanente. Destacaremos apenas os desafios morais presentes na primeira e na segunda parte.

Entendendo que “a vida e a missão do presbítero são marcadas por uma intencionalidade pastoral missionária, que deve configurar todo o processo formativo” (n. 30), e que a “missionariedade revela-se como fio condutor” de tal processo (n. 148), devendo este ser “único, integral, comunitário e missionário” (n. 59; n. 165) em vista da “identidade, da vida e da missão do presbítero” (n. 47), apresenta-se o objetivo geral da formação, o qual consiste em “formar os pastores do povo de Deus, configurados a Jesus Cristo, Mestre, Sacerdote e Pastor, levando-os a serem santos, discípulos-missionários, verdadeiros pastores do povo de Deus, exercendo com humildade a função pastoral de guia dotado de autoridade, mestre da Palavra e ministro dos sacramentos, a fim de praticar uma fecunda paternidade espiritual” (n. 63; cf. n. 149).

 O texto reconhece que os desafios da mudança de época[2] e os desafios da evangelização pedem presbíteros “integrados, capazes de ler e interpretar os sinais dos tempos no horizonte da fé” (n. 11), “santos, qualificados e competentes, capazes de conservar no tempo o entusiasmo do coração, acolher com alegria a jovialidade do evangelho, usar palavras capazes de tocar a vida das pessoas” (n. 59), exigindo, por isso, dos candidatos ao ministério ordenado uma “resposta pessoal dentro de um processo que se inicia com o conhecimento do dom recebido e amadurece gradualmente ao longo do itinerário formativo” (n. 13), caracterizado pelo “desejo de responder à vontade de Deus e deixar-se transformar por ela” (n. 22), a ponto de progressivamente “ter uma consciência formada, ou seja, que se torne responsável, capaz de tomar decisões justas, dotado de reto juízo e de uma percepção objetiva das pessoas e dos acontecimentos” (n. 210; n. 215, 3).

Os desafios morais quanto à identidade e à missão dos presbíteros nas circunstâncias atuais pedem o testemunho da fé e da caridade; profunda espiritualidade, renúncia e despojamento de si; prioridade da tarefa da evangelização; capacidade de acolhida, superando a tentação de um serviço burocrático e rotineiro; solidariedade efetiva com os sofredores; opção preferencial pelos pobres; maturidade para enfrentar os conflitos existenciais; cultivo da dimensão ecumênica; diálogo inter-religioso; respeito à pluralidade; apoio às justas reinvindicações do povo; capacidade de respeitar, discernir e suscitar serviços e ministérios; promoção e manutenção da paz e da concórdia (cf. n. 46) e a decisão de evitar a mera “submissão por conveniência” (n. 237, 7). Incentive-se o “espírito de pobreza e solidariedade com os mais pobres e evite-se paternalismo, acomodação, aburguesamento e desperdício” (n. 235). Tudo isso favorecido pela presença dos formadores (cf. n. 117), de cristãos leigos e leigas (cf. n. 118), por iniciativas no campo ecumênico (cf. n. 120).

No contexto de uma Igreja missionária e em saída, esse estilo profético de vida requerido dos presbíteros configurados como “discípulos, missionários, cheios de misericórdia, pastores e santos” (n. 65; n. 274), peritos em humanidade, homens da proximidade, da misericórdia, de oração (cf. n. 44), pede a atenção para a perda do senso de comunidade, para o imediatismo, a instantaneidade e a virtualidade da própria vida, a primazia das relações virtuais (cf. n. 224) em detrimento de relações interpessoais, o consumismo, a aparência, o exibicionismo, a obtenção de aplausos, a religião reduzida a espetáculo, a autossuficiência, a autorreferencialidade (cf. n. 12). Exige-se, ainda, evitar “práticas fundamentalistas marcadas por rigidez e busca de segurança em um estilo de vida próprio do passado, atitudes individualistas, marcadas pelo relativismo ético e indiferença religiosa” (n. 14), reconhecendo e corrigindo a “mundanidade espiritual: a obsessão pela aparência, uma segurança doutrinal ou disciplinar presunçosa, o narcisismo e o autoritarismo, a pretensão de impor-se, o cuidado somente exterior e ostentado com a ação litúrgica, a vanglória, a incapacidade de escutar o outro e todo o gênero de carreirismo” (cf. n. 66).

Em vista disso, o processo formativo, constituído pelas cinco dimensões: “humana, espiritual, comunitária, intelectual e pastoral missionária” (n. 206), tendo em vista o “crescimento integral da pessoa do formando” (n. 207), há que ser “personalizante” (n. 60), “amadurecido e apoiado em motivações verdadeiras, autênticas, livres e pessoais” (n. 61), marcado por um “clima de sã liberdade e de reponsabilidade pessoal, evitando ambientes artificiais ou itinerários impostos” (n. 62), com “clara convicção a respeito de sua vocação presbiteral e dos compromissos inerentes a ela, na aceitação da doutrina do presbiterado definida pela Igreja” (n. 114), para que o celibato seja livremente abraçado “como especial dom de Deus” (n. 57), amadurecendo, desta forma, uma “afetividade serena e livre, fiel à castidade celibatária” (n. 58) e “dedicando tempo suficiente para ilustrar os aspectos positivos do celibato, falando abertamente das suas exigências e mostrando aos seminaristas a importância de vivê-lo como dom de Deus” (n. 115; n. 145; n. 221).

 Para isso, a equipe de formadores (cf. n. 204; n. 316) precisa contar com formadores “pedagogicamente qualificados” (n. 83), evitando-se “improvisações, imediatismos, ativismos e empirismos” (n. 272); formadores capazes de acompanhar os candidatos com “projetos formativos específicos” (n. 88). Na fase do primeiro discernimento, “deve-se prestar atenção a possíveis obstáculos à autêntica vocação: excessiva dependência afetiva; agressividade desproporcionada; insuficiente capacidade de ser fiel aos compromissos assumidos e de estabelecer relacionamentos serenos de abertura, confiança e colaboração fraterna com a autoridade; identidade sexual confusa ou não ainda definida” (n. 85).

 Nos projetos formativos, cabe ter especial cuidado diante do “aumento de vocações adultas” (n. 87), favorecendo um “cuidadoso discernimento acerca da autenticidade de tais vocações” (n. 88). Por meio desse cuidadoso discernimento, os vocacionados adultos sejam “ajudados a refletir sobre as reais motivações de sua vocação” (n. 87), percebendo o “descompasso entre motivações declaradas e suas motivações inconsistentes,[3] tais como fuga de compromissos estáveis com o casamento e a família; problemas de identidade sexual; desilusões amorosas; despreparo para enfrentar a dura realidade do mundo do trabalho; busca ilusória de segurança, bem-estar e honras presumidas; fascínio pela figura social do presbítero” (n. 87).

O texto recomenda também atentar para o campo da sexualidade, uma vez que “entre os jovens de hoje pode-se apresentar uma identidade sexual desintegrada, o que fragmenta a própria personalidade e a vida psíquica. Tenha-se presente que neste campo podem verificar-se distúrbios se-
xuais incompatíveis com o sacerdócio” (n. 26; cf. também os nn. 105 e 106, a).

Diante de uma aprendizagem deficiente, é fundamental uma “formação sólida” (n. 29), superando uma “pura ciência conceitual” para “chegar àquela inteligência do coração que sabe ver, primeiro, o mistério de Deus e depois é capaz de comunicá-lo aos irmãos” (n. 275). Haja, para isso, “ajuda sistemática para cultivar a leitura e redação, para elaborar sínteses e cultivar uma consciência crítica em meio à complexidade do mundo de hoje” (n. 27; cf. também o n. 129), fomentando o “estudo e a pesquisa teológica e pastoral frente aos desafios da nova realidade social, plural, diferenciada e globalizada, procurando novas respostas que deem sustentação à fé e à experiência do discipulado” (n. 137).

2. Lançando luzes sobre os desafios morais da formação presbiteral inicial

Uma autêntica ação formativa é bastante exigente. Deve ser capaz de

conjugar verdade e liberdade, para formar pessoas não apenas corretas e responsáveis, obedientes e rigorosas, mas felizes, que amam aquilo que fazem, que aprenderam o gosto de fazer as coisas por amor, pessoas sempre mais livres para escolher o que é verdadeiro, belo e bom, e de amar o que lhes dá verdade, beleza e bondade (ou seja, a identidade delas), e por isso mesmo veem e vivem sempre mais a sua vocação, e Deus mesmo e a relação com Ele, que é o máximo da liberdade (CENCINI, 2017, p. 32; 2015).

Diante disso, vários profissionais competentes se dispuseram a abordar alguns temas bastante desafiadores para a formação hoje na obra Formação: desafios morais, de onde haurimos luzes e perspectivas, numa espécie de síntese dos seguintes temas: a) formação da identidade do presbítero; b) estilo profético de vida; c) confidencialidade e transparência; d) acompanhamento e discernimento espiritual; e) formação intelectual; f) ecumenismo e diálogo inter-religioso; g) integração da sexualidade; h) orientação afetivo-sexual e formação de subculturas heterossexuais e homossexuais; i) exposição nas redes sociais.[4]

a) A formação da identidade do presbítero

A compreensão e a construção da própria identidade não terminam nunca. Estamos sempre em formação, independentemente da idade ou do lugar que ocupamos no mundo.

Um formador que pensa que já não precisa ser formado se torna arrogante, autoritário, indiferente às questões positivas e negativas do outro; é sempre um desastre na vida dos que desejam seguir o caminho da vida presbiteral. Da mesma forma, um formando que só sabe obedecer, sem nenhuma reflexão crítica, será sempre dependente, medroso, irresponsável, pouco criativo; desejará ser sempre mimado, cuidado e usufruirá de todos os privilégios possíveis, na expectativa do sucesso pessoal, cercando-se de aduladores, fechando-se ao diálogo e não aceitando críticas.

Nesse processo de formação da identidade, torna-se necessário proteger a própria integridade (estar inteiro), vivendo segundo a verdade sobre si mesmo e sobre os outros, não se deixando fragmentar, lutando contra as massificações, rejeitando as situações de corrupção, ainda que tenha de lidar com as fraturas e as perdas inerentes à própria condição de criatura, e tendo a coragem de pensar, a fim de atingir desta forma a maturidade intelectual, espiritual, social e afetiva.

b) Estilo profético de vida

Torna-se necessário que o processo formativo, em todas as suas etapas, proporcione aos vocacionados larga possibilidade de evangelizar a própria interioridade por meio de profundo contato com a Palavra de Deus, ajudando-os a trocar um estado de conforto por um espírito capaz de se compadecer das misérias humanas, especialmente dos mais pobres e vulneráveis, e construir assim um estilo de vida que testemunhe a opção feita pelo próprio Cristo, o qual se fez pobre para nos enriquecer (cf. 2Cor 8,9), numa busca constante e incansável de conhecimento e, sobretudo, de sabedoria. Se, por um lado, é preciso considerar a disciplina dos estudos, a qual favorece o aprofundamento da filosofia, da teologia e das demais ciências, por outro, é preciso deixar-se interpelar pela realidade concreta, pelos desafios que surgem a cada momento, sobretudo pela escuta atenta das pessoas.

A proposta formativa deve levar o formando a amar e valorizar sua própria origem e não assumir um estilo de vida distante dela. Fundamentalmente, deve proporcionar uma experiência de reconhecimento de sua história e, com isso, de suas mais significativas motivações para o seguimento de Jesus Cristo.

Em suma, o processo formativo deve favorecer um estilo de vida próximo da realidade, sensível à problemática social, superando desta forma a tentação de viver no “mundo maravilhoso de Alice” e preparando presbíteros de comunhão e participação, discípulos-missionários, abertos e compromissados com a causa dos pequenos e sofredores, capazes de responder aos desafios da sociedade atual, em meio à qual está e com a qual dialoga sem compactuar com suas mazelas e incoerências, em sintonia com a Igreja e seu magistério.

c) Confidencialidade e transparência

Em cada uma das etapas formativas, são muitas as situações a serem evitadas por não contribuírem para o amadurecimento, como: a infantilização do processo formativo; o favorecimento da cumplicidade reinante entre os pares, nem sempre positiva e retamente intencionada; a dupla moral; a banalização do sigilo e do respeito ao nome e à honra do outro. Atentos à confidencialidade, à responsabilidade e ao compromisso com a verdade, podemos superar um modelo formativo que infantiliza e assumir uma formação integradora que faculta ao formando o exercício da alteridade, o cuidado do outro, a abertura humilde e sincera e, especialmente, a relação amorosa com Deus.

d) Acompanhamento e discernimento espiritual

É sujeito de direção ou acompanhamento espiritual quem deseja viver autenticamente o seguimento de Jesus Cristo e reconhece que não pode caminhar sozinho. O reconhecimento da incapacidade de realizar, sozinho, todos os discernimentos necessários ao longo da vida faz que não só o cristão, em linhas gerais, mas também os formandos encontrem na direção ou no acompanhamento espiritual sólido auxílio no processo de crescimento na autenticidade da vida cristã. Essa autenticidade não se traduz em mérito próprio, mas, cada vez mais intensamente, em abertura ao próprio Deus trino, princípio e fonte de toda coerência testemunhal dentro da comunidade de fé.

O que precisa ficar evidente é que, quando tratamos de vida e de discernimento espiritual, não podemos, como comunidades formadoras, pressupor que estas sejam capazes de realizar sozinhas uma tarefa e uma responsabilidade que são patrimônio de toda a comunidade eclesial. Real e significativa mudança na prática da direção e do acompanhamento espiritual nas casas de formação supõe radical mudança na compreensão desta modalidade na iniciação e na vida cristã como um todo, em todas as suas particularidades e desafios.

e) Formação intelectual

Na urgência de superar a “douta ignorância”no processo formativo, precisamos admitir que os estudos filosóficos e teológicos, dependendo de como são feitos, nem sempre chegam a formar a mente e o coração dos formandos a fim de facilitar o diálogo entre fé e razão e a integração entre cultura e fé. Há muitos formandos que têm seus “profetas” e “gurus” pessoais e, por isso, resistem às orientações dadas pelos formadores e professores. Muitas vezes, o distanciamento da formação intelectual da realidade concreta dos demais estudantes e do povo de Deus dificulta que se deixem interpelar: pela realidade, reconhecendo nela um lugar teológico privilegiado; pela Palavra de Deus, assumindo-a como alma de todos os estudos; pela tradição viva, projetando-se em direção ao futuro; pelo Magistério, como ponto de referência seguro no processo formativo.

 Estudos feitos sem paixão pela vida, sem amor à Palavra de Deus, sem respeito à tradição e sem reverência à verdade não geram compromisso, adesão, autocrítica e humildade, uma vez que a dimensão intelectual pressupõe honestidade intelectual e liberdade interior.

f) Ecumenismo e diálogo inter-religioso

A fim de qualificar ministros para a unidade dos cristãos, primeiramente, há que distinguir a diversidade religiosa (mais ampla e difusa) daquilo que compõe o cenário ecumênico (mais estrito e convergente). Muitos formandos carecem de informação e relações significativas com questões ecumênicas porque simplesmente confundem a ecumene com a diversidade religiosa em geral. Daí uma segunda ponderação: a ecumene é realidade teológica ancorada na Revelação, de um lado, e na escatologia, de outro. Desta perspectiva escatológica decorre uma terceira ponderação: infelizmente, por falta de escatologia – já que alguns currículos tratam bem do Juízo do Céu, mas esquecem o caráter escatológico da História temporal da Salvação –, muitas pessoas consideram a unidade dos cristãos como fato do passado, e não a consideram profecia que dimensiona o futuro. Alegam uma suposta “volta” ou “retorno” anacrônico a uma unidade historicamente situada em contextos hoje inexistentes, perdendo a perspectiva profética da unidade como graça destinada a sinalizar o caminho vindouro por onde deverão trilhar os cristãos, com vistas à plena comunhão.

Quem confunde unidade com uniformidade, quem define o ministério pelo status funcional, quem sobrepõe o devocional ao dogmático ou reduz a liturgia a uma expressão barroca dificilmente poderia ser admitido à ordem presbiteral, pois dificilmente teria condições de dedicar-se ao ministério da unidade dos cristãos, cujo empenho merece acurada formação histórica, teológica e espiritual, como requer a Santa Sé em documentos oficiais e normativos.

g) Integração da sexualidade

Formar para relacionamentos de qualidade implica analisar a integração da sexualidade e sua relação com a realidade antropológica e com a ética teológica, compreendendo a experiência da sexualidade como uma dimensão da vida humana fundamental para a humanização, para uma existência de vida personalizada, socializada e plenificada.

A exigência antropológica de uma vida integrada se transforma numa exigência ética. Grande tarefa para a ética teológica, desde o desafio antropológico, é aprofundar o princípio básico ou unificador que favoreça um processo de integração realmente humanizador. Sendo assim, pode-se dizer que o princípio norteador ou unificador, humanizador e libertador da vida pessoal, interpessoal, comunitária e social é o amor. Trata-se de vida humana configurada, vivida a serviço do amor, experiência que arranca o ser humano da impotência de lidar com as situações de fracasso, solidão e crises existenciais, ajudando-o a ser mais humano e crescer em humanidade.

h) Orientação afetivo-sexual e formação de subculturas hétero e homossexuais

A orientação afetivo-sexual, assim como a sexualidade, é dimensão constitutiva da pessoa. Além de fazer parte da personalidade, condiciona o modo de alguém ser e existir e, por isso, pode ser definida como condição antropológica. Ela se define com base no fato de o desejo de uma pessoa orientar-se, de forma predominante ou exclusiva, para outras do sexo oposto ou do mesmo sexo. Ninguém escolhe o objeto do próprio desejo, mas o descobre progressivamente, à medida que se desenvolve e amadurece afetiva e sexualmente. Em se tratando de descoberta, a orientação afetivo-sexual não entra no campo da liberdade da pessoa: ser ou não ser não está em questão. O que acaba dependendo da pessoa é como e com quem ela vai ou não realizar o próprio desejo. Sentir ou não atração escapa da possibilidade de escolha.

Diante disso, é preciso ter presente que uma formação “tamanho único” não funciona. Cada pessoa precisa de um acompanhamento diferenciado. Erram os formadores que abordam tais questões de forma genérica, sempre em público, por meio de indiretas ou piadas preconceituosas, pois prejudicam o processo e o discernimento. Apenas um confronto sério e honesto com tais questões, independentemente da continuidade ou não no processo formativo, ajudará a pessoa a discernir se tem condições de responder a esse chamado.

Num estilo de vida eminentemente ministerial, a capacidade de estabelecer relações de qualidade com pessoas de ambos os sexos é fundamental. Essa capacidade ajudaria na superação de subculturas baseadas na orientação sexual. Tais subculturas seriam prejudiciais tanto para os homossexuais – na medida em que se privariam de um círculo mais amplo de amizades e viveriam uma espécie de incoerência, pois, por um longo período, fizeram questão que a própria orientação afetivo-sexual não fosse critério de exclusão – como para os heterossexuais, que poderiam formar uma cultura excludente e homofóbica ou se sentir
deslocados no ambiente formativo. A tendência seletiva, discriminatória e excludente em relação às pessoas contradiz a essência da vocação consagrada e ministerial, sejam as pessoas hétero ou homossexuais.

i) Exposição nas redes sociais

Os candidatos à vida presbiteral estão cada vez mais conectados. O mau uso das redes sociais ou o uso sem a necessária criticidade podem trazer muitas consequências danosas. A grande questão é discernir o correto uso pessoal e evangelizador das redes sociais. O sentido do que se compartilha reduz-se a visões fragmentadas de fatos da vida, retratada de forma superficial? Reduz-se à preocupação com as exterioridades? À afirmação da própria identidade? À dependência da visibilidade e aprovação do outro para se sentir bem? Ao exibicionismo? À demonstração de poder e vaidade? Ao vislumbre de carreirismo?

Os formadores possuem a grande tarefa de, por meio de uma educação moral centrada na racionalidade crítica e no profetismo evangélico, contribuir para a formação dos futuros religiosos e presbíteros. A nossa presença nas redes sociais não poderá ser medíocre, fútil e vazia de significado. Basta de perfumarias! É preciso formar para o rigor da consciência, que gera comportamentos cada vez mais proféticos.

Conclusão: o desafio da recepção

Como se pode perceber, a formação moral dos presbíteros e religiosos é um desafio urgente, complexo e abrangente. Tal desafio vai exigir dos formadores, além da leitura dos textos, a atitude de acolher as atuais Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil não como aplicação mecânica de uma orientação, mas como um processo de construção conforme cada realidade – iluminada pelas oportunas indicações do livro Formação: desafios morais –, tendo em vista a unidade, a coerência e a gradualidade no e do processo formativo.

Referências bibliográficas

AMADO, J. P. Cuidar de si para cuidar dos outros! O presbítero dez anos depois da Conferência de Aparecida. In: FONTES, D. A; MORAIS, J. G. de; FERREIRA, N. S. (Org.). A formação sacerdotal hoje. Rio Bonito: Benedictus, 2018.

CENCINI, A. O modelo da integração e relação entre formação inicial e permanente: curso para formadores. Curitiba: [s.n.] , 2017. Fotocopiado.

______. A árvore da vida: proposta de modelo de formação inicial e permanente. São Paulo: Paulinas, 2015.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil. Brasília, DF, 2019. No prelo.

CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. O dom da vocação presbiteral: Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis. Brasília, DF: CNBB, 2017.

MENDONÇA, C. B. A.; OLIVEIRA, J. L. M. de. Antropologia da formação inicial do presbítero. São Paulo: Loyola, 2011.

TRASFERETTI, J. A.; MILLEN, M. I. C.; ZACHARIAS, R. (Org.). Formação: desafios morais. São Paulo: Paulus, 2018.


[1] Seguimos o texto das Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil aprovado na 56º Assembleia Geral da CNBB (Aparecida – SP, 11-20 de abril de 2018). Em matéria publicada no site dessa instituição no dia 28/12/2018 noticiou-se que o texto, já aprovado pela Congregação para o Clero do Vaticano, aguarda a publicação. Disponível em: <http://www.cnbb.org.br/retrospectiva-2018-56a-assembleia-geral-da-cnbb-atualizou-as-diretrizes-de-formacao-do-clero/>. Acesso em 06 fev. 2019.

[2] “Respeitada a possibilidade de diferentes compreensões, entendemos que Aparecida se deparou com o desafio do que já se convencionou chamar de mudança de época. Não são alterações periféricas ou circunstanciais, diante das quais os fundamentos últimos permanecem inalterados. Ao contrário, além das transformações nos mais diversos aspectos da vida, afetam-se também os alicerces de compreensão. Não são apenas os fatos que, de tão novos, pedem novas compreensões. São também – e principalmente! – os critérios para a interpretação desses fatos que se mostram atingidos. Os critérios até então utilizados não satisfazem mais, pelo menos com a força que possuíam em outros períodos históricos. Ao mesmo tempo, não existem critérios novos, ou pelo menos compreensões dos critérios habituais, que permitam enfrentar, com satisfatória dose de tranquilidade, a torrente e desafios que, ininterruptamente, surgem diante de nós” (AMADO, 2018, p. 107).

[3] Cf. MENDONÇA; OLIVEIRA, 2011, p. 102-111.

[4] Estas são a ordem dos autores e as respectivas páginas em que foram abordadas as questões elencadas: a) Dra. Maria Inês de Castro Millen, p. 33-48; b) Me. Humberto Robson de Carvalho, p. 11-32; c) Dr. Mário Marcelo Coelho, p. 49-79; d) Me. Sérgio Augusto Baldin Júnior, p. 81-96; e) Dr. Ronaldo Zacharias, p. 97-121 e 201-233; f) Dr. Marcial Maçaneiro, p. 123-149; g) Dr. Augusto de Matos, p. 151-171; h) Dr. Edênio Reis Valle, p. 173-199; i) Dr. José Antonio Trasferetti, p. 283-304.

Eliseu Wisniewski

Eliseu Wisniewski é presbítero da Congregação da Missão – Província do Sul (padres vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e doutorando em Teologia pela mesma universidade. E-mail: [email protected]