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Publicado em janeiro-fevereiro de 2011 - ano 52 - número 276

SUS, um Sistema fundado na solidariedade e na equidade, e seus desafios

Por Paulo Antonio de Carvalho Fortes

 

Introdução

Entende-se que um sistema de saúde seja resultante das condições econômicas e sociais do país, bem como da ideologia e dos valores éticos prevalentes na sociedade, e tenha por objetivos proporcionar ótimo nível de saúde às pessoas, distribuir de forma equitativa o nível de saúde, proteger as pessoas dos riscos de adoecer e satisfazer as necessidades de saúde individuais.

A saúde de uma coletividade depende de diversos fatores, como o nível educacional, a renda familiar, as condições e padrões de alimentação, de moradia, de trânsito e de lazer. Condições de saneamento e condições ambientais, como o grau de poluição das águas e do ar, também influem no aparecimento de doenças.

Todavia, em países em desenvolvimento, como o Brasil, a importância do sistema de saúde para os níveis de saúde da população parece ser maior do que em países de condições de vida mais adequadas, sendo de grande relevância quando se pensam políticas públicas que almejem a justiça social, a equidade e a inclusão social.

 

1. Nascimento do Sistema Único de Saúde

No Brasil, o sistema público de saúde é denominado SUS – Sistema Único de Saúde. Se nos pautarmos pelo que nos apresentam comumente os meios de comunicação, levaremos uma imagem do SUS construída somente por suas deficiências e irregularidades. Todavia, ao contrário, devem ser ressaltados seus valores, pois ele é um sistema que se fundamenta na solidariedade entre cidadãos.

Devemos lembrar que até outubro de 1988 o sistema público de saúde brasileiro era do tipo previdenciário, isto é, somente os trabalhadores formais, aqueles que possuíam carteira de trabalho assinada, tinham direitos legais à assistência médica, odontológica e hospitalar.

Recordando o antigo sistema de saúde, lembremos que as pessoas com cobertura previdenciária nessa época não passavam de 30% da população. Os demais brasileiros, ou pagavam as despesas de saúde com recursos próprios, ou tinham sua atenção à saúde mediante instituições de caráter filantrópico, como as Santas Casas de Misericórdia, organizações religiosas ou caritativas. Dessa forma, alguns tinham direitos e outros eram dependentes da caridade individual ou coletiva, sendo por vezes denominados “indigentes”.

Este tipo de sistema de saúde – previdenciário – tem origem na Europa do século XIX, primeiramente na Alemanha, e deve-se à luta dos trabalhadores, visando à proteção de riscos sociais como o desemprego, a velhice, os acidentes de trabalho, a invalidez e a doença. Inicia-se com a criação do Seguro Saúde alemão em 1883 e é baseado na filiação profissional e no financiamento por contribuições obrigatórias dos trabalhadores e das empresas.

No Brasil, em 1923, foi promulgada a lei federal Elói Chaves, que constituiu o início do sistema previdenciário no país mediante a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs), sendo a primeira a dos ferroviários. A administração e o financiamento eram responsabilidade conjunta dos trabalhadores e do patronato. Todavia, 92% dos recursos dirigiam-se para aposentadoria e pensões/benefícios e apenas 8% para a atenção à saúde.

Nos anos 30, sob o governo de Getúlio Vargas, as CAPs foram transformadas nos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), divididos por categoria profissional – marítimos, bancários, comerciários, industriários etc. O Estado brasileiro passa a ser copartícipe do financiamento, com 15% do total da receita, e continuam as contribuições dos trabalhadores e das empresas. Os cuidados e benefícios eram diferenciados por IAP, dependendo da força política e econômica da categoria profissional. Considera-se que o sistema visava, fundamentalmente, manter a capacidade da força de trabalho produtiva em período de forte industrialização pelo qual passava o país.

Após o golpe militar de 64, dá-se a unificação dos institutos com a criação do INPS – Instituto Nacional de Previdência Social –, o que resultou na unificação dos benefícios para os trabalhadores em geral, independentemente de sua filiação profissional. O INPS redirecionou os recursos públicos, priorizando um modelo privatizante, com ênfase no setor de saúde de caráter lucrativo e na prática médica curativa. Se, em 1969, havia 74.543 leitos privados, em 1984 o país contava com 348.255 – ou seja, houve um aumento de 465%.

 

2. A Constituição cidadã (1988): o direito à saúde para todos

A transformação do sistema de saúde brasileiro se dá em outubro de 1988 com a promulgação da atual Constituição federal, quando o sistema passa a ter uma dimensão universalista, tornando-se a saúde um direito de todo cidadão brasileiro, independentemente de ser ou não trabalhador formal.

O art. 196 de nossa Constituição afirma: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

E, para viabilizar o direito à saúde, é constituído o SUS – Sistema Único de Saúde –, com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade. Ademais, são unificados no sistema todas as ações e serviços públicos federais, estaduais e municipais.

O SUS passa a ter um caráter de solidariedade entre todos os cidadãos, sejam ou não seus usuários, e a ele todos têm direito, também os saudáveis e as pessoas que sofrem de enfermidades agudas ou crônicas. Foi fundamentado no pressuposto de que as políticas públicas devem tratar cada pessoa humana como única, com diferentes necessidades, orientadas pela máxima: “A cada pessoa conforme suas necessidades” (Fortes, 2002).

Além disso, é o maior sistema público de saúde do mundo, com mais de 192 milhões de usuários potenciais (estimativa populacional do IBGE em março de 2010), distribuídos em 5.507 municípios, atendendo necessidades ambulatoriais e hospitalares, assim como fornecendo cuidados odontológicos, atenção farmacêutica e realizando ações de promoção da saúde, vigilância sanitária, epidemiológica, controle de zoonoses e saúde do trabalhador.

Vacinações, consultas, fluoretação das águas, ação em endemias e epidemias, programas de atenção à saúde das crianças, mulheres e idosos são algumas de suas atividades cotidianas, além de ser o sistema público de saúde de um dos países que mais têm investido em ações de alto custo, como quimioterapia, hemodiálise, radioterapia e transplantes. Para tanto, estão envolvidos recursos financeiros, materiais e humanos das três esferas de governo – federal, estadual e municipal.

O SUS dispõe de mais de 55 mil estabelecimentos de saúde, estabelecimentos públicos federais, estaduais e municipais e rede privada lucrativa e sem fins lucrativos, prestadora de serviços por contrato ou convênio, como as Santas Casas de Misericórdia – as principais instituições responsáveis pelas internações hospitalares no Estado de São Paulo. Estima-se que a rede SUS realize mais de 12 milhões de internações hospitalares por ano e 104 milhões de procedimentos ambulatoriais.

Para 2010, a título de exemplo, o orçamento aprovado para o Ministério da Saúde consiste em quase 67 bilhões de reais. Apesar de esse montante constituir um dos maiores orçamentos ministeriais, é reconhecidamente insuficiente para a concretização do direito dos brasileiros de ver atendidas todas as suas necessidades de saúde, mesmo quando comparado aos gastos de outros países em situação econômica semelhante à nossa.

Ainda deve ser ressaltado que o SUS é a única alternativa para 75% da população brasileira, contingente que não possui inserção na denominada assistência médica suplementar – os planos e convênios de saúde. Somente 40 milhões de brasileiros têm acesso a essa alternativa, sobretudo as classes mais favorecidas. Isso reforça a noção de o SUS ser um sistema de solidariedade, pois, caso tivéssemos mantido o sistema anterior, baseado na contribuição de trabalhadores, não estaríamos incluindo em torno de cem milhões de brasileiros.

Como afirmou Mendes (2001): “É inegável que, para os milhões de despossuídos que adquiriram direitos e livraram-se da indigência, os ganhos, tanto do ponto de vista dos serviços quanto da perspectiva psicossocial, são inegáveis”. Ou seja, a saúde passou a ser um direito do cidadão brasileiro, prescindindo de condutas exclusivamente oriundas da caridade ou da filantropia, mesmo levando em consideração todas as limitações e deficiências ainda existentes no SUS.

Assim, pode-se afirmar que é indispensável a presença do Estado brasileiro na organização de um sistema de saúde de caráter universal. O princípio da universalização do direito à saúde é fundamental para a inclusão social, pois o financiamento e o planejamento dos cuidados de saúde não podem ser entregues somente aos mecanismos de mercado, haja vista as inúmeras reclamações e falhas apontadas por órgãos de defesa do consumidor quanto aos planos e convênios de saúde.

 

3. Política Nacional de Humanização de Serviços de Saúde

Dentre as diversas atividades realizadas pelo SUS, destacamos a Política Nacional de Humanização de Serviços de Saúde e a Estratégia de Saúde da Família, por atenderem aos princípios da solidariedade e da equidade.

Em 2001, o Ministério da Saúde lançou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) a fim de alterar os padrões de assistência aos usuários no ambiente hospitalar público, humanizando o atendimento do paciente. O programa objetivou capacitar os trabalhadores da saúde para lidarem com a dimensão psicossocial dos pacientes e de suas famílias. O PNHAH também objetivou a valorização da formação educacional dos profissionais de saúde a fim de possibilitar a incorporação de valores e atitudes de respeito à vida humana.

Em 2003, o Ministério da Saúde estabeleceu a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão em Saúde no SUS – PNH –, conhecida como HumanizaSUS. Essa política, em vigor, pretende atingir a todos os níveis de atenção à saúde, entendendo humanização como uma transformação cultural da atenção aos usuários e da gestão de processos de trabalho que deve perpassar por todas as ações e serviços de saúde.

Segundo o Ministério da Saúde, a PNH pretende estimular, entre outros, a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores; o fomento da autonomia e do protagonismo desses sujeitos e dos coletivos; o aumento do grau de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujeitos; o estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão; a defesa de um SUS que reconhece a diversidade do povo brasileiro e a todos oferece a mesma atenção à saúde, sem distinção de idade, etnia, origem, gênero e orientação sexual; o compromisso com a qualificação da ambiência, melhorando as condições de trabalho e de atendimento; a luta por um SUS mais humano (Brasil, 2010).

A reflexão humanística não enfoca somente problemas e necessidades biológicas, mas abrange as circunstâncias sociais, éticas, educacionais e psíquicas presentes nos relacionamentos humanos existentes nas ações que ocorrem na atenção em saúde, pois humanizar se refere à possibilidade de uma transformação cultural da gestão e das práticas desenvolvidas nas instituições de saúde, assumindo uma postura ética de acolhimento do desconhecido, de respeito ao outro, ao paciente/cliente/usuário, que deve ser entendido como um cidadão e não apenas como um consumidor de serviços de saúde. As ações de saúde devem se orientar pelo fundamento ético que afirma ser o ser humano um fim em si mesmo, não podendo ser transformado em simples meio de satisfação de interesses de terceiros. Além de não instrumentalizar as pessoas e não lhes causar danos, caberia a obrigação moral de empoderar as pessoas, ampliando suas capacidades básicas, para que possam realizar seus projetos de vida.

 

4. Estratégia de Saúde da Família

A segunda atividade a ser destacada é a Estratégia de Saúde da Família (ESF). Segundo o Ministério da Saúde, a Saúde da Família consiste em “uma estratégia de reorientação do modelo assistencial, operacionalizada mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde (…). As equipes atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais frequentes, e na manutenção da saúde desta comunidade”. São constituídas, no mínimo, por médico, enfermeiro, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários da saúde, podendo ainda contar com um dentista, um auxiliar de consultório dentário e um técnico em higiene dental. São responsáveis por um número definido de famílias, morando em uma área geográfica delimitada.

São responsáveis também “por estabelecer vínculos de compromisso e de corresponsabilidade com a população; por estimular a organização das comunidades para exercer o controle social das ações e serviços de saúde; por utilizar sistemas de informação para o monitoramento e a tomada de decisões; por atuar de forma intersetorial, por meio de parcerias estabelecidas com diferentes segmentos sociais e institucionais, de forma a intervir em situações que transcendem a especificidade do setor de saúde e que têm efeitos determinantes sobre as condições de vida e saúde dos indivíduos-famílias-comunidade” (Brasil, 2010).

Uma das características marcantes da ESF é a inclusão do agente comunitário de saúde (ACS) na equipe de saúde. Ele começou a ser incorporado ao sistema público de saúde a partir de 1991, com a criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) pelo Ministério da Saúde. O ACS deve residir na área de atuação da equipe e servir de elo entre a equipe e a comunidade, o que o faz viver o cotidiano da comunidade com maior intensidade do que os outros membros da equipe de saúde.

Apesar de ser uma estratégia que orienta o SUS na atenção à saúde de todos os cidadãos brasileiros, desde o início foram priorizadas as populações e as áreas com condições sociais e sanitárias mais desfavorecidas.

Os dados oficiais afirmam que, em 2007, havia no país um total de 27.324 equipes de saúde da família constituídas, distribuídas em 5.125 municípios, cobrindo 46,6% da população brasileira, o que corresponde a cerca de 90 milhões de pessoas. Conjuntamente, havia 15 mil equipes de saúde bucal e 211 mil agentes comunitários de saúde em atividade. Assim, a ESF vem ampliando o acesso dos cidadãos brasileiros, sobretudo dos mais desfavorecidos, à atenção básica.

 

5. Considerações finais

Para que o cumprimento dos princípios constitucionais por parte do SUS seja realmente viabilizado, ele necessita de incremento de recursos financeiros, melhor organização, diminuição dos desperdícios e das irregularidades legais e estabelecimento de prioridades no atendimento em benefício das classes sociais mais desfavorecidas social e economicamente.

Salientamos também que a responsabilidade pública pela saúde nos leva a pensar que, quanto mais uma sociedade se funda nos valores da justiça e da igualdade entre os homens, não deve aceitar as injustas, evitáveis e mutáveis desigualdades sociais (Whitehead, 1991). Uma sociedade igualitária e justa deve permanentemente estimular a solidariedade coletiva que objetive promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

* Médico e professor da Faculdade de Saúde Pública

da Universidade de São Paulo

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Ministério da Saúde. O que é o HumanizaSUS. Disponível em: <portal.saude.gov.br/portal>. Acesso em: 23 abr. 2010.

FORTES, P. A. C. Bioética, equidade e políticas públicas. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 26, n.1, p. 143-147, 2002.

MENDES, E. V. Os grandes dilemas do SUS. Salvador: Casa da Qualidade, 2001.

WHITEHEAD, M. The concepts and principles of equity and health. Copenhagen: World Health Organization, 1991.

 

Paulo Antonio de Carvalho Fortes