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Publicado em maio-junho de 2024 - ano 65 - número 357 - pp.: 20-27

A Pastoral e a Animação Bíblica da Pastoral: perspectivas e propostas para um ministério vivo e eficaz

Por Pe. João dos Santos Barbosa Neto, sdb*

A relevância deste artigo é proporcionar o encontro com o Verbo de Deus mediante a Sagrada Escritura, que é compreendida, rezada e vivida. Ela se torna caminho de comunhão com Jesus, guia processos de conversão pessoal e pastoral, forja um modelo missionário e traz aso conteúdo da revelação.

 

Introdução

O termo Animação Bíblica de toda a Pastoral já faz parte da realidade nas diversas ações pastorais e é costumeiramente citado com ênfase em projetos e iniciativas que buscam refletir sobre a dimensão bíblica e trabalhá-la. Contudo, com o passar do tempo, faz-se necessário revisitar as origens, interpelar as práticas, encontrar as razões teológicas que otimizem ou redirecionem os percursos formativos já existentes e deixar-se inspirar pelo Espírito Santo para propor novos itinerários.

Primeiramente, evidencia-se o diálogo histórico entre o caminho traçado pelo magistério pontifício, particularmente no campo da pastoral e da animação bíblica, e a realidade hodierna. Ressaltam-se as reflexões da dimensão bíblica realizadas ao longo da história e as propostas aplicadas desse caminho que a Igreja continua a sugerir.

Em seguida, busca-se elaborar um projeto com variadas ações que sejam adequadas e atrativas, usando a linguagem de nossos tempos. O intuito é indicar propostas para aprimorar o percurso que a CNBB tem sugerido para a pastoral e a animação bíblica, oferecendo inspiração para iniciativas e atividades para conhecer a Palavra, serviços de pastoral bíblica, formação de animadores.

1. Princípios e critérios para a pastoral e a animação bíblica à luz do magistério

A compreensão da Animação Bíblica de toda a Pastoral exige uma imersão no pensamento proposto pelo magistério pontifício e na forma mais elaborada com a qual foi enriquecida pela contribuição das reflexões de autores que aprofundaram esse tema, cooperando significativamente na implementação pastoral. Nesse caminhar, é evidente a vontade de encontrar as raízes bíblicas de sua atividade pastoral, não como um acréscimo categorizante de uma nomenclatura, e sim como precisa qualificação de que, em cada atividade, “se tenha realmente a peito o encontro pessoal com Cristo que se comunica a nós na sua Palavra” (VD 73).

A relação da Bíblia com a pastoral é de uma abordagem sólida e conceitual baseada nas intuições magisteriais, com reflexo na interdisciplinaridade entre a pastoral bíblica e as ciências teológico-práticas. Assim, torna-se relevante o aprofundamento dos fundamentos que determinam a estrutura de toda a pastoral e evidenciam o papel da Bíblia na pastoral, de modo que cada agir eclesial possa efetivamente ser profundamente bíblico.

2. A Pastoral Bíblica e a Animação Bíblica da Pastoral

Essa primeira etapa recupera o percurso histórico desde o Movimento Bíblico, passando pelo Apostolado Bíblico, seguido pela Pastoral Bíblica e, por fim, pela Animação Bíblica da Pastoral, à luz dos documentos do magistério pontifício, latino-americano e brasileiro. A imersão histórica é pertinente para a reconstrução das etapas primordiais de consolidação dos fundamentos bíblicos e teológicos, além de colaborar com a identificação dos elementos essenciais que configuram os princípios e critérios da Animação Bíblica.

O fato importante encontra-se na responsabilidade pastoral dos agentes eclesiais, que precisam fundamentar biblicamente as próprias ações. Somente assim as atividades serão animadas pela Bíblia, ocasionando um paulatino meio de compreensão prática, pois nela se encontra a fonte para a organização do funcionamento eclesial, a evangelização, a catequese, a liturgia.

2.1. Movimento Bíblico e Pastoral Bíblica

O Concílio Vaticano II foi um marco na retomada da Palavra de Deus como centro da vida cristã e da evangelização, motivando os pastores a esforçar-se para que “o acesso às Sagradas Escrituras seja aberto amplamente aos fiéis” (DV 22). Houve um movimento de fecunda iniciativa para fazer que a Sagrada Escritura chegasse a toda a Igreja e fosse conhecida tanto pela hierarquia quanto pelo povo.

O Movimento Bíblico tinha como “principal finalidade distribuir e tornar conhecida a Bíblia entre os católicos por causa do escasso conhecimento que tinham dela” (RETAMALES, 2011, p. 11). A Bíblia volta a ganhar o status de lugar de experiência e encontro com Deus na própria vida e na comunidade, geradora de vida, de vocação e de comunhão.

Em alguns países, antes da Pastoral Bíblica existia o Apostolado Bíblico, que se ocupava em promover a divulgação da Bíblia. O primeiro momento consistia em fazer que a Bíblia fosse apresentada e divulgada, dando assim espaço a uma atividade pastoral mais profunda, que “se responsabilizava sobretudo para que os participantes desta pastoral conhecessem a Bíblia mediante cursos, palestras, retiros, grupos e círculos bíblicos” (RETAMALES, 2011, p. 12).

Se tanto o Movimento Bíblico quanto a Pastoral Bíblica se referiam à dimensão bíblica e à acessibilidade à Sagrada Escritura, é justo perguntar: o que os diferia? Primeiramente, o Movimento Bíblico está ligado ao período anterior ao Concílio Vaticano II, enquanto a Pastoral Bíblica foi amadurecida em um momento pós-conciliar, numa tentativa de envolver as pastorais ao incluir e potencializar o termo “pastoral” em sua nomenclatura (BARBOZA, 2011).

Essa mentalidade nova de retornar à Sagrada Escritura e deixá-la acessível a todas as pessoas como primeira mediação do encontro com Jesus Cristo deve-se ao Concílio Vaticano II, no qual “a Igreja, povo de Deus, foi convidada a devolver a Bíblia aos fiéis, favorecendo e facilitando o estudo, as traduções e o diálogo ecumênico” (BARBOZA, 2011). Foram particularmente as duas constituições do Concílio Vaticano II (a Dei Verbum e a Sacrosanctum Concilium) que estimularam esse movimento de resgate da Palavra de Deus, para o povo e para a comunidade, como encontro com Jesus Cristo, a Palavra encarnada, posta no centro da vida e da missão da Igreja.

A Constituição Dei Verbum ressalta a importância de a Bíblia estar na mão do povo, pois ali se encontra Deus e ele dialoga com seu povo (DV 21). Já na Sacrosanctum Concilium, segundo Moloney (2015, p. 17, tradução nossa), “não há espaço dedicado especificamente ao papel da Palavra de Deus na liturgia, mas a demanda por uma renovação da vida litúrgica da Igreja trouxe com ela o apelo por um aumento de consciência sobre a importância das Escrituras na vida da Igreja”.

2.2. A Animação Bíblica da Pastoral

Apesar de ter muitos aspectos positivos, a Pastoral Bíblica revelou um limite desconcertante: aos poucos, foi-se tornando uma pastoral como as outras, que promoviam formação e aprofundamento somente para seus próprios membros. Esse modo pelo qual foi se desenvolvendo não conseguia colher em plenitude o pensamento conciliar sobre a Palavra de Deus, que buscava algo mais profundo na prática católica (RETAMALES, 2011, p. 12).

Concomitantemente, os grupos, os movimentos e as pastorais assumiram progressivamente a Bíblia, favorecendo ocasiões para a leitura de textos bíblicos nos momentos de oração e buscando nas ações de Cristo as motivações para permanecerem fiéis à própria missão. A Animação Bíblica da Pastoral é, então, o fruto do amadurecimento da dinâmica pastoral da Igreja e de uma concepção segundo a qual a Bíblia deve pertencer e animar a todas as pastorais.

A Verbum Domini é, sem dúvida, o documento-chave para essa guinada, pois promove a Animação Bíblica da Pastoral, configurando a “inteira ação eclesial em uma escuta criativa e obediente dos grandes paradigmas da história da salvação, que mantenham valor normativo e estruturante” (ASOLAN, 2011, p. 275). Entra aqui a perspectiva do discernimento, avaliação e práticas da ação pastoral mediante a escuta, a meditação e o estudo da Palavra, com a finalidade de fazer que os batizados amadureçam na fé, se engajem na missão da Igreja e vivam fiéis aos ensinamentos de Cristo.

O Documento de Aparecida, por sua vez, inova ao fazer um chamado explícito à Animação Bíblica da Pastoral e apresentar um conteúdo caracterizado fortemente por motivações pastorais e bíblicas. A Pastoral Bíblica é desenvolvida na perspectiva de que todos os fiéis devem ter contato com a Palavra de Deus, que é a fonte da evangelização e lugar privilegiado para encontrar-se com Jesus Cristo: “por isso a importância de uma pastoral bíblica, entendida como animação bíblica da pastoral, que seja escola de interpretação ou conhecimento da Palavra, de comunhão com Jesus e de evangelização inculturada” (DAp 248).

A CNBB, com o documento Discípulos e Servidores da Palavra de Deus na Missão da Igreja, apresenta profunda e contextualizada reflexão sobre a Verbum Domini à luz de Aparecida, visando a um trabalho pastoral movido e motivado pela Palavra. Esse documento retoma o processo de elaboração da Animação Bíblica da Pastoral e esclarece que “animação [é entendida] como ação ou efeito de dar alma ou vida. Sob essa perspectiva entende-se a busca consciente e contínua de ter a Sagrada Escritura como alma da missão evangelizadora da Igreja, como também ser a alma da teologia” (CNBB, 2012, n. 32).

3. Características da Animação Bíblica da Pastoral (DAp 248)

A Animação Bíblica da Pastoral possui um papel fundamental no encontro pessoal de comunhão de cada um dos integrantes das pastorais com Jesus Cristo, por meio da Sagrada Escritura rezada e vivida. Ela reposiciona a Palavra de Deus no centro da ação pastoral e indica os princípios para um discipulado fiel a Jesus Cristo: “escola de interpretação ou conhecimento da Palavra”; “comunhão com Jesus ou oração com a Palavra”; “evangelização inculturada ou de proclamação da Palavra”.

O horizonte de atuação da dimensão bíblica é alargado em todas as pastorais e movimentos, requerendo de seus integrantes o retorno à fonte bíblica, que é o berço da vida da Igreja. A Animação Bíblica da Pastoral considera três aspectos para ser eficaz em sua proposta: acompanhar a compreensão dos sentidos genuínos dos textos bíblicos; ajudar a atualizar a Palavra de Deus; educar a proclamar a Palavra e concretizá-la
(RETAMALES, 2008, p. 60).

3.1. Escola de interpretação ou conhecimento da Palavra

A primeira tarefa da Animação Bíblica da Pastoral é a interpretação adequada dos textos bíblicos. Aqui se entendem duas coisas: a primeira é a afirmação de que nos textos da Bíblia se encontra a Palavra de Deus; a segunda refere-se justamente à forma de aproximação que se deve ter ao texto (compreensão da linguagem, do contexto e da sociedade dos autores sagrados).

Os batizados engajados, em sua maioria, são sensíveis e desejosos de aprendizado, contudo é necessário que pessoas preparadas se ponham à disposição e promovam momentos de apresentação da Palavra de Deus que possibilitem a compreensão do sentido e aprofundamentos orantes, de modo que ela possa ser conhecida de maneira correta. A ação da Animação Bíblica da Pastoral “como escola de interpretação é, portanto, re-significar, a partir da correta leitura da revelação contida na Sagrada Escritura, o dia a dia dos homens e das mulheres de hoje, para que recuperem o discernimento, a liberdade e a responsabilidade” (RETAMALES, 2011, p. 30).

3.2. Comunhão com Jesus ou oração com a Palavra

A segunda tarefa a que a Animação Bíblica da Pastoral se propõe é ser mediação de diálogo com Jesus Cristo. Ora, “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus” (VD 11): assim se reconhece, no texto das Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus na pessoa de Jesus Cristo. O cristão, ao entrar em contato com as Sagradas Escrituras, não está encontrando-se com um texto, e sim com uma pessoa, com quem estabelece um diálogo e que se torna presente em sua própria vida.

A proposta de ação da Animação Bíblica da Pastoral “tende a ajudar e ensinar o discípulo missionário a atualizar a Palavra de Deus mediante o diálogo permanente com Jesus Cristo, e para o qual deve ser escola de comunhão e oração, isto é, de encontro com o Senhor graças aos textos bíblicos inspirados” (RETAMALES, 2007, p. 369). Cada encontro que se tem com a Palavra é único e irrepetível; ela ilumina as situações da vida e lhes dá significado  no hoje da pessoa. Essa atividade de encontro com a Palavra torna-a capaz de responder às inquietações e orientar as pessoas por novos caminhos, que possam levá-las a se redimirem, a se converterem, transformando assim os pensamentos e o modo de vida.

A proposta da Animação Bíblica da Pastoral é apresentar a Sagrada Escritura como lugar no qual uma comunidade entra em contato com Jesus Cristo, primeiramente para escutar com atenção a Palavra, deixando-se surpreender pela novidade desse momento orante que supera o monólogo e estabelece um diálogo. É a partir da fala do Senhor que se pode elaborar uma resposta concreta, capaz de inserir essa fala em uma dimensão comunitária da vida na qual se caminha juntos para amadurecer na fé.

3.3. Evangelização inculturada ou de proclamação da Palavra

A terceira tarefa a que a Animação Bíblica da Pastoral se propõe é ser a alma da própria evangelização inculturada, anunciando a Boa-nova de Jesus Cristo a todos os povos. Nesse processo, é importante que a Palavra de Deus seja anunciada de modo atualizado e as pessoas possam compreendê-la e vivenciá-la no próprio contexto existencial.

A compreensão da Palavra e sua transmissão, utilizando os elementos do próprio linguajar materno, representam a assimilação contextualizada do jeito cristão de ser e conferem a força para que, nas palavras de São Paulo, haja nos batizados “o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fl 2,5). A resposta do cristão que escuta a Palavra do Senhor é pôr-se à disposição para o serviço da caridade, pois “é a própria Palavra que nos impele para os irmãos: é a Palavra que ilumina, purifica, converte; nós somos apenas servidores” (CNBB, 2012, n. 88).

Para proclamar a Palavra na sociedade, é necessário ter presentes os elementos da piedade popular, que são expressões privilegiadas de inculturação da fé. A Palavra é capaz de dar sentido ao sofrimento do ser humano, de fazê-lo relacionar-se com seus afetos, consigo mesmo e com a realidade da morte, pois o encontro com Jesus Cristo se realiza na própria realidade, valorizando os temas penitenciais, os momentos de provação e de dor, mas sobretudo de esperança de que tudo pode melhorar porque existe a certeza de que Deus zela por nós.

Referências bibliográficas

ASOLAN, Paolo. L’animazione biblica della pastorale (Verbum Domini, n. 73). In: MERLO, Paolo; PULCINELLI, Giuseppe. Verbum Domini: studi e commenti sull’Esortazione Apostolica Postsinodale di Benedetto XVI. Vaticano: Lateran University Press, 2011.

BARBOZA, Maria Aparecida. Pastoral bíblica e animação bíblica no Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ANIMAÇÃO BÍBLICA NO BRASIL, 1., 2011, Goiânia. Anais […]. Goiânia: CNBB, 2011.

BENTO XVI, Papa. Verbum Domini: Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_exhortations/documents/hf_ben-xvi_exh_20100930_verbum-domini.html. Acesso em: 8 dez. 2023.

CELAM. Documento de Aparecida. São Paulo: Paulus, 2007.

CNBB. Discípulos e Servidores da Palavra de Deus na Missão da Igreja. Brasília, DF: CNBB, 2012. (Documentos da CNBB, 97.)

CNBB. Orientações para a Celebração da Palavra de Deus. São Paulo: Paulinas, 1994. (Documentos da CNBB, 52.)

CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum: Constituição Dogmática sobre a revelação divina. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html. Acesso em: 8 dez. 2023.

CONCÍLIO VATICANO II. Sacrosanctum Concilium: Constituição Conciliar sobre a sagrada liturgia. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html. Acesso em: 8 dez. 2023.

MOLONEY, Francis J. Reading the New Testament in the Church. Mulgrave: Garratt, 2015.

RETAMALES, Santiago Silva. A animação bíblica da pastoral. São Paulo: Paulus, 2011.

RETAMALES, Santiago Silva. A “Palavra de Deus” na V Conferência de Aparecida. Atualidade Teológica: revista do Dpto. de Teologia da PUC-Rio, Rio de Janeiro, v. 11, n. 27, p. 342-371, 2007.

RETAMALES, Santiago Silva. La Palabra de Dios en los caminos de la Iglesia. La animación bíblica de la pastoral del pueblo de Dios. Una reflexión. La Palabra Hoy, Bogotá, v. 32, n. 127, p. 60-61, 2008.

Pe. João dos Santos Barbosa Neto, sdb*

*é sacerdote salesiano. Licenciado em Filosofia (UCDB/MS), bacharel em Teologia (UPS/Itália), pós-graduado lato sensu em Counseling (IATES/PR), pós-graduado lato sensu em Psicopedagogia (UCDB/MS), mestre e doutor em Teologia Pastoral (UPS/Itália). Membro da SBCat (Sociedade Brasileira de Catequetas). E-mail: [email protected]