Roteiros homiléticos

2 de novembro – DIA DOS FIÉIS DEFUNTOS

Por Celso Loraschi

Saudade, esperança, compromisso

I. Introdução geral

A Igreja celebra o dia dos Fiéis Defuntos ou dia de Finados imediatamente após o dia de Todos os Santos. Ambas as celebrações estão intimamente ligadas, uma vez que fazemos a memória dos que já se encontram na pátria celeste. Veneramos os santos reconhecidos oficialmente pela Igreja e pedimos a sua intercessão. No entanto, todos os que estão junto de Deus são também santos. Muitos deles foram nossos parentes, amigos ou conhecidos. Lembramo-nos deles e também de todas as pessoas que faleceram. Desde os primeiros séculos, os cristãos rezam pelos falecidos, visitando os túmulos dos mártires e recordando seus testemunhos de fé e amor. A partir do século V, a Igreja dedica um dia do ano para rezar por todas as pessoas falecidas, também por aquelas que ninguém lembra. É um dia que evoca saudade, esperança e compromisso. Saudade daqueles que partiram e marcaram, de uma maneira ou de outra, a vida de todos nós que ainda peregrinamos neste mundo. Esperança porque nos foi revelado que a morte não tem a última palavra, é passagem para a vida em plenitude. Compromisso porque queremos que nosso tempo histórico seja vivido de acordo com o que nos exorta a palavra de Deus. Como Jó, depositamos nossa confiança naquele que é o defensor da vida (I leitura). Renovamos nossa convicção de que “a esperança não decepciona”, como afirma Paulo em sua carta aos Romanos (II leitura). E nos consolamos, agradecidos, com a declaração de Jesus: “Esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não deixe perecer nenhum daqueles que me deu, mas que os ressuscite no último dia”.

II.  Comentário dos textos bíblicos 1. I leitura (Jó 19,1.23-27a): Eu o verei com os meus próprios olhos

O livro de Jó faz parte da literatura sapiencial. Foi escrito, em sua maior parte, no período pós-exílico, por volta do ano 400 a.C. Reflete sobre a questão do sofrimento das pessoas justas, retratadas na figura de Jó. Em situação calamitosa, abandonado por todos, Jó recebe a visita de três “amigos”. Em vez de manifestar solidariedade a Jó, procuram convencê-lo de que o sofrimento se deve aos pecados que certamente cometera. Eles representam o pensamento teológico dominante: a conhecida “teologia da retribuição”, segundo a qual Deus retribui o bem com o bem e o mal com o mal. Podemos imaginar as consequências dessa teologia na vida das pessoas empobrecidas, abandonadas, doentes... O sistema religioso oficial as considerava pecadoras ou impuras e, portanto, indignas da salvação divina.

Jó está convencido de sua inocência. Debate com os amigos até dar-se conta de que está realmente sozinho em suas convicções. Com quem poderá contar? Pouco a pouco, Jó vai abandonando suas pretensões de se fazer entender. Dentro de sua própria realidade de dor e trevas, encontra novo caminho de acesso a Deus, já não vinculado ao dogma da retribuição. Para além de qualquer instituição, abre-se para Deus, fonte de toda a vida. Jó confessa: “Eu sei que meu defensor está vivo”. Defensor, vingador ou redentor (go’el em hebraico), na antiga tradição de fé do povo de Israel, é aquele cuja função é proteger os membros mais fracos da família, como também resgatar os bens, a vida e a liberdade das pessoas endividadas.

A certeza da intervenção divina em favor da vida das pessoas justas é ressaltada nesse texto. É uma declaração cujas palavras merecem ser “consignadas num livro, gravadas por estilete de ferro num chumbo, esculpidas para sempre numa rocha”. Deus se interessa pela vida pessoal de cada um de seus filhos. Ele nos ama, nos liberta e nos salva. A experiência religiosa de Jó o leva a proclamar: “Eu mesmo o contemplarei, meus olhos o verão...”.

2. II leitura (Rm 5,5-11): A esperança não decepciona

Esse texto está relacionado com o seu contexto imediatamente anterior. Paulo refere-se à justificação pela fé, o dom gratuito da salvação que Deus nos concede por meio de Jesus Cristo. Somos todos pecadores. Eis em que consiste o amor divino: Cristo morreu por nós, pessoas fracas, injustas e infiéis. Pela morte expiatória de Jesus, revela-se o rosto misericordioso de Deus. Ele não leva em conta a nossa condição de pecadores. Seu amor não é baseado em nossos méritos. Por meio de Jesus, fomos reconciliados com Deus e, pela fé, vivemos em paz com ele.

Nessa certeza, a caminhada nesta vida terrena é marcada pela “esperança que não decepciona, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. Ora, o amor de Deus em nossos corações nos dá a garantia de um futuro de plenitude e glória. A vida plena não é ilusão: é revelação divina que nos foi dada definitivamente na vida, morte e ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Assim, reconciliados com Deus, vivemos o nosso tempo histórico como expressão de alegria e de gratidão a Deus, que nos criou e nos salva na gratuidade de seu amor. Se Deus nos ama desse modo, também nós devemos amar uns aos outros. Se Jesus entregou sua vida livremente para a vida do mundo, também nós doamos a vida, livremente, pelo bem dos outros.

3. Evangelho (Jo 6,37-40): A vida eterna

O capítulo 6 do Evangelho de João apresenta o ensinamento de Jesus sobre o pão da vida. Ele se dirige à multidão perto do mar da Galileia. Chama-lhes a atenção para que não se ocupem somente com o alimento que perece, e sim com o “pão da vida”, o alimento que dura para a vida eterna.

O pão da vida é o próprio Jesus, que livremente se doa como alimento: “Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome, e aquele que crê em mim jamais terá sede” (6,35). Na caminhada do Êxodo, rumo à terra prometida, Deus enviou do céu o “maná” que alimentou o povo durante todo o tempo. É o símbolo da palavra de Deus que alimenta e dá a vida. Agora, Jesus é o verdadeiro maná descido do céu como eterno alimento para todos os que nele creem. Ele é a Palavra de Deus que se fez carne. Dele nos alimentamos (palavra e eucaristia) neste novo êxodo rumo à pátria celeste.

Toda pessoa que, pela fé, acolhe Jesus e dele se alimenta já possui a vida eterna. A fé em Jesus não se resume a um assentimento intelectual nem apenas a uma adesão religiosa, sem compromisso concreto. A fé é um jeito de ser que perpassa o cotidiano da vida. É a configuração da nossa vida na vida de Jesus. Assim, todo aquele que vive em Jesus não perecerá. Foi para isso que Deus enviou o seu Filho ao mundo. “Esta é a vontade de meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia”. A fé nos possibilita “ver” Jesus, penetrar no seu mistério e inundar todo o nosso ser pelo dom da verdadeira vida.

A comunidade joanina confessa que Jesus veio ao mundo “para que todos tenham vida e vida em plenitude” (Jo 10,10). Esta é também a nossa confissão de fé: ele é o doador da vida plena já para este mundo e para a eternidade. Ele mostrou o caminho da justiça e da fraternidade a este mundo e venceu a morte pela sua ressurreição. Ele não exclui ninguém. Nele já ressuscitamos para a vida. A morte não tem a última palavra.

III. Pistas para reflexão

- Meus olhos verão a Deus. Deus se revela na história humana de modo processual. Pouco a pouco, conforme atesta a Bíblia. Ele se deu a conhecer juntamente com o seu plano de amor e salvação. O livro de Jó mostra que o ser humano é um buscador de Deus. No meio de muitas perguntas, dúvidas e crises, Deus permite que amadureçamos até nos convencermos de que ele realmente existe e é a fonte de toda a vida. Reconhecemos que, sem sua presença amiga e misericordiosa, a vida perderia todo o sentido. O encontro com Deus transforma o nosso jeito de pensar e agir. Ele é defensor da vida, o doador de todos os bens. Dele viemos e para ele voltamos. Com base nessas afirmações, é importante nos perguntarmos como estamos administrando a vida que Deus nos deu. Que rumo estamos dando à nossa breve existência? Com quais valores irrenunciáveis orientamos os nossos passos na direção da morada definitiva?

- Meus olhos veem a Deus. Enquanto Jó confessa sua fé na futura visão de Deus, o Evangelho de João nos indica que já podemos “ver” a Deus na pessoa de Jesus Cristo. O processo de revelação de Deus e de seu plano de amor e salvação culminou em Jesus. Ele veio ao mundo para que tenhamos a vida, e vida plena. Ver a Jesus com os olhos da fé implica viver conforme sua prática e seus ensinamentos. Quem está em Jesus e dele se alimenta (palavra e eucaristia) já possui a vida eterna. Uma pessoa é irradiadora da verdadeira vida quando pauta seus pensamentos, projetos, palavras e ações no evangelho de Jesus Cristo...

 - Caminhar como se víssemos o invisível. A saudade dos nossos entes queridos nos faz refletir sobre a nossa condição de pessoas transitórias neste mundo. Seria uma lástima viver sem conhecer o verdadeiro significado da nossa existência. São Paulo, em sua incansável missão de anunciar o evangelho, insiste na verdade da salvação gratuita de Deus. Seu amor incondicional foi definitivamente comprovado na vida, morte e ressurreição de Jesus. Por ele fomos reconciliados com Deus e, “estando reconciliados, seremos salvos por sua vida”. Essa esperança não decepciona, e sim orienta os nossos passos neste êxodo rumo à pátria eterna. Essa esperança impregna o tempo presente de um sentido “cairológico”: é tempo propício de acolher a graça divina; de desapegar-se do que é efêmero; de cultivar a amizade pessoal com Deus; de discernir e acolher a sua vontade. Como seguidores de Jesus, é tempo de defender e promover a vida neste mundo, sinal da vida futura.

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc). E-mail: [email protected]