Roteiros homiléticos

9 de novembro – DEDICAÇÃO DA BASÍLICA DE S. JOÃO DO LATRÃO

Por Celso Loraschi

Com Jesus, os cristãos formam um templo espiritual

I. Introdução geral

A basílica de São João do Latrão (dedicada a são João Batista e são João evangelista) em Roma foi a primeira catedral do mundo, por muito tempo considerada a igreja-mãe de Roma, e nela se realizaram as sessões de cinco grandes concílios ecumênicos” (Missal dominical – Missal da assembleia cristã, Paulus, São Paulo, p. 1.409).

Celebrando a festa dessa igreja romana, catedral do bispo que “preside na caridade” entre os demais bispos do mundo inteiro, lembramos também todas as catedrais e dioceses e o vínculo de unidade entre elas. Os textos bíblicos ressaltam não os templos de pedra, mas o novo templo “espiritual” que gera vida; apontam para a vida que brota do seio de Deus (templo de Jerusalém) e se destina a todos (I leitura). O templo, anunciado por Ezequiel como fonte de vida, tornou-se fonte de exploração e morte. E o Messias declara sua superação, sendo substituído pelo corpo de Cristo Jesus. Ele é o novo templo onde Deus se encontra e se manifesta plenamente (evangelho). Paulo, escrevendo aos coríntios, mostra Jesus como base-alicerce insubstituível da comunidade, comparando-a com um santuário, construído, porém, com pedras vivas. A comunidade, construída sobre o alicerce que é Cristo, é templo de Deus e moradia do Espírito (II leitura). 

II. Comentário dos textos bíblicos 1. I leitura (Ez 47,1-2.8-9.12): O verdadeiro templo gera vida para todos

O profeta Ezequiel exerce sua atividade entre os anos 593 e 571 a.C. Sacerdote exilado na Babilônia com uma parte do seu povo, ele anuncia as sentenças de Deus. Com sua linguagem simbólica, Ezequiel indica os passos para a construção do mundo novo: assumir a responsabilidade pelo fracasso histórico de um sistema que se corrompeu completamente, provocando a ruína de toda a nação; converter-se para Javé, assumindo o seu projeto; e, com base nisso, construir uma sociedade justa e fraterna, voltada para a liberdade e a vida. Com esse “programa profético”, vislumbramos um futuro novo: Deus volta para o meio de seu povo, provocando o surgimento de uma sociedade radicalmente nova.

Os versículos escolhidos para a primeira leitura da festa de hoje falam desse “futuro novo” vislumbrado pela conversão. Pertencem a uma seção maior (capítulos 40-48), que tem como tema central “Deus no meio do seu povo”. Nesses capítulos aponta-se para uma “nova Jerusalém”, tendo como centro vital o templo, onde habita o Deus que caminha com seu povo.

O tema central desses cinco versículos passa pelas palavras templo e água. Ezequiel percebe que sai água do templo em direção ao oriente. O volume de água vai crescendo sempre mais, até superar o do rio Jordão (v. 5, ausente na leitura). A rota das águas é marcada pela vida. Ao entrar no mar, a água do templo torna-se potável. Por isso, por todo lugar por onde passar a torrente, os seres vivos que a povoam terão vida. “Haverá abundância de peixes, pois, aonde quer que essa água chegue, ela levará vida, de modo que haverá vida em todo lugar que a torrente atingir” (vv. 8-9).

Como se pode ver, trata-se de água extremamente fecunda, portadora de vida para os seres que nela vivem. E essa água sai do templo onde mora Deus. É, portanto, mensageira de vida do Deus da vida que habita no meio do seu povo. O mar Morto chama-se assim porque, apesar de receber todo o volume de água doce do rio Jordão, não tem vida nem vazão. É, pois, símbolo de ausência de vida, sinônimo de morte. Mas com a água que sai do templo torna-se extremamente fecundo, e não somente para a fauna.

O Novo Testamento apropriou-se dessa imagem de Ezequiel em várias ocasiões. As mais significativas estão na literatura joanina: a água que jorra do lado aberto de Jesus (Jo 19,34) e a descrição da nova Jerusalém em Ap 22,2. 

2. Evangelho (Jo 2,13-22): Jesus é o novo templo

Por ocasião da festa da Páscoa, a cidade de Jerusalém se enchia de peregrinos. A Páscoa era, para os judeus, a festa principal, pois nela o povo recordava a libertação da escravidão do Egito. No tempo de Jesus, o povo ia a Jerusalém para essa celebração festiva. Contudo, a Páscoa deixara de ser uma festa popular e de vida por ser manipulada pelas lideranças religiosas, econômicas e políticas daquele tempo. O povo vai a Jerusalém para celebrar a libertação, mas o que lá encontra é a maior exploração. Pior ainda: parece que Deus está de acordo com tudo isso. Além de ser o sustentáculo econômico da Judeia e de sua elite (18 mil funcionários, sacerdotes, levitas e outros, mais a promoção do turismo religioso), o templo era o grande negócio do pequeno grupo de sumos sacerdotes, formado praticamente pela família de Anás. Vendiam os animais a preço acima do mercado e, em seguida, os recebiam de graça para sacrificar e queimar parte deles em honra de Deus, enquanto o restante sempre lhes pertencia.

Jesus não concorda com essa situação. João nos mostra Jesus usando um chicote. Toca os animais e os vendedores para fora do templo. Manda que os vendedores de pombas tirem aquilo dali. Elas serviriam para as oferendas dos pobres, e era aí que se verificava a maior exploração, chegando o preço de um casal de pombos a ser cinco vezes maior do que nas aldeias. Os pobres, não tendo condições de oferecer a Deus ovelhas ou bois, sacrificavam pombos para os ritos de expiação e purificação, bem como para os holocaustos de propiciação (cf. Lv 5,7; 14,22.30s). Com esse gesto, Jesus inaugura os tempos do Messias. Zacarias previa um tempo em que o culto estaria plenamente isento da exploração do povo. Para João, esse tempo chegou com Jesus. A partir de agora ninguém mais poderá, mesmo que o faça em nome de Deus, defender um culto ou religião que sejam coniventes com a exploração do povo.

Para aprofundar esse aspecto, é preciso ter presente a situação econômica daquele tempo. Nessa época, a maioria das terras da Palestina estava nas mãos de latifundiários. Estes pertenciam à elite religiosa (sumos sacerdotes e anciãos) e moravam em Jerusalém. O sumo sacerdote era o presidente do Sinédrio, o supremo tribunal que condenará Jesus à morte. Três semanas antes da Páscoa, os arredores do templo se tornavam grande mercado. O sumo sacerdote enriquecia com o aluguel dos espaços para as barracas dos vendedores e cambistas. Os animais criados nos latifúndios eram conduzidos a Jerusalém e vendidos. A teologia veiculada pelo templo de Jerusalém é extremamente conservadora, isso porque os dirigentes do templo estão por trás de todo o comércio que nele se desenvolve.

Deus, o aliado dos sofredores empobrecidos, sempre denunciou, por meio dos profetas, a exploração da religião. Ele é o Deus que ouve o clamor dos marginalizados. Mas a teologia veiculada pelo templo de Jerusalém afirma o contrário. Para ser ouvido, Deus precisa ser comprado mediante sacrifícios. A ira de Jesus tem toda razão de ser.

Os dirigentes, que se sentem lesados pelo gesto de Jesus, reagem. Eles o querem intimidar: “Que sinal nos mostras para agir assim?” (v. 18). Jesus lhes responde que sua morte e ressurreição serão o grande sinal: “Destruam este templo, e em três dias eu o levantarei” (v. 19). Temos aqui o centro do evangelho deste dia. Jesus não só aboliu os sacrifícios do templo de Jerusalém, mas decreta que o novo templo será o seu corpo, morto e ressuscitado. A essa altura o Evangelho de João já aponta para os responsáveis pela morte de Jesus. 

3. II leitura (1Cor 3,9c-11.16-17): A comunidade é santuário de Deus

Na comunidade de Corinto haviam surgido “panelinhas” em torno dos principais evangelizadores que por lá passaram: Paulo, Apolo, Cefas… (1Cor 1,12), o que gerava tensões na comunidade. Paulo, na primeira carta aos Coríntios, ajuda a entender melhor essa tensão comunitária. Mostra aos coríntios que Cristo é o centro da comunidade e sua razão de ser, ao passo que os agentes de pastoral não o são. Em outras palavras, Paulo, Apolo, Cefas e tantos outros evangelizadores são como que instrumentos que conduziram e conduzem os coríntios a Cristo. Esse tema aparece na carta em 1,10-17; 3,1-17; 4,1-13.

Um pouco antes (3,5), Paulo afirmou que ele e Apolo são servidores de Deus, por meio dos quais os coríntios foram conduzidos à fé, e cada um deles agiu conforme os dons que Deus lhe concedeu. Agora, porém, Paulo sente necessidade de falar da comunidade, comparando-a com uma lavoura e com uma construção (v. 9c). Ele, fundador da comunidade de Corinto, compara-se ao bom arquiteto que iniciou a construção, o grupo cristão naquela cidade. Outros agentes de pastoral, a seguir, deram sequência ao trabalho iniciado por ele. Foi o que aconteceu com Apolo e, provavelmente, Cefas. Todavia – garante Paulo –, o alicerce não pode ser mudado: Jesus Cristo. Ele é a razão de ser, o centro, a base sobre a qual nasceu e se constrói a comunidade cristã. Ninguém pode mudar esse alicerce.

Paulo continua seu raciocínio: se a base-alicerce é Cristo Jesus, como definir a construção-comunidade que se ergue sobre essa base? Eis, então, que surge uma das grandes convicções de Paulo a respeito do perfil da comunidade cristã: “Vocês não sabem que são templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês?” (v. 16). Certamente Paulo, na primeira fase da evangelização em Corinto, quando aí permaneceu por 18 meses (At 18,11), dissera essas coisas à comunidade nascente. Agora lhes recorda isso em forma de pergunta, e a resposta que os próprios coríntios deveriam dar é esta: “Sim, nós sabemos que somos templo de Deus. E sabemos que o Espírito dele habita em nós”. 

III. Pistas para reflexão

- Fé e vida. A verdadeira religião e a fé cristã são fonte de vida, conduzem-nos para a vida e a esperança, a transformação da aridez e das situações de morte em situações de vida. A vontade de Deus é que o mundo e todas as pessoas tenham vida em abundância. Se temos Deus no coração, empenhamo-nos pela concretização dessa sua vontade.

- Contra a ingenuidade e a exploração religiosa. O evangelho mostra que Jesus não compactua com uma religião que se torna simples fator econômico, explora e massacra os pobres. Ainda que se diga que isso é em nome de Deus, são coisas que não se sustentam diante da prática de Jesus e merecem acabar. A exploração da fé ingênua das pessoas termina à medida que essa fé deixa de ser tão ingênua e assume verdadeiramente Jesus como o centro.

- Comunidade santuário. A comunidade bem centrada em Jesus e coerente com seus ensinamentos e sua prática supera as tensões e adversidades e se torna santuário, fonte de vida para todos.

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc). E-mail: [email protected]