Roteiros homiléticos

Publicado em setembro-outubro de 2022 - ano 63 - número 347 - pág.: 54-56

SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA – 12 de outubro

Por Marcus Mareano*

Aparecida: um sinal de fé

I. INTRODUÇÃO GERAL

A solenidade da padroeira do Brasil comove as pessoas de diferentes recantos do nosso país e nos faz olhar para o povo, para a realidade social e para os desafios brasileiros.

As circunstâncias do encontro da imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição no rio Paraíba do Sul (1717), a gente simples que venerou a Mãe de Jesus e os acontecimentos subsequentes indicavam que a devoção se difundiria e alcançaria a maior parte da população brasileira. Uma piedade que não é importada de outro continente, mas surge de nossa terra e das nossas águas e carrega a mestiçagem e a pluralidade brasileiras. Aparecida revela um Brasil resistente, guerreiro e esperançoso.

A liturgia da Palavra deste dia se volta para as mulheres bíblicas. A primeira leitura põe em evidência Ester, que pede a vida do povo de Israel ao rei Assuero. O livro do Apocalipse narra uma mulher revestida da criação (sol, lua, estrelas etc.), com uma criança para proteger e apresentar ao mundo. O Evangelho mostra Maria com Jesus e seus discípulos em uma festa de casamento. Os episódios demonstram que as mulheres agem com determinação, gerando mudanças nas respectivas situações. Da mesma forma, Aparecida continua a transformar pessoas pela fé em Cristo e, consequentemente, a sociedade brasileira, em prol de maior justiça e fraternidade.

A solenidade de Nossa Senhora Aparecida nos propõe a contemplação da ação de Maria para que se realize a vontade de Deus por meio do Filho, Jesus, como lemos no Evangelho (Jo 2,5). O amor fraterno é o vinho novo presente entre nós e o sinal da realização da intercessão de Maria, com nossa participação.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Est 5,1b-2; 7,2b-3)

Ester é um livro bíblico pouco conhecido pela maioria das pessoas. Ele apresenta o surgimento da festa judaica de Purim e a atuação de Ester em prol do povo de Israel em um contexto de perseguição.

O trecho selecionado para a liturgia destaca o papel que ela teve ao interceder, com elegância, junto ao rei persa em favor dos israelitas. Ela se aproxima com respeito e reverência (v. 1), cumprindo a etiqueta real e, por esse motivo, encontrando a simpatia do rei para que fosse recebida.

Com sabedoria, Ester aguarda o momento oportuno para atingir seu objetivo. O rei já se encontrava embriagado quando prometeu até a metade do seu reino (v. 2). Entretanto, Ester não deseja posses materiais ou prestígio social. Em vez dessas benesses, pede a vida do seu povo (v. 3), que era oprimido e morto por Amã.

A atitude de Ester demonstra um altruísmo decorrente da fé no Deus único. Ela se preocupa com a vida do povo mais do que com o próprio conforto. Da mesma forma, Nossa Senhora Aparecida representa um sinal de intercessão pelo povo brasileiro, vítima de tantos desmandos sociais e irresponsabilidades políticas.

2. II leitura (Ap 12,1.5.13a.15-16a)

Antes da aparição da mulher, o Apocalipse narra a abertura do santuário de Deus no céu e uma série de efeitos consequentes à visão da esfera celestial: relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e tempestade de granizo (11,19). Esses fenômenos naturais acompanhavam as teofanias no Antigo Testamento (Ex 3,1-4,17; 19,16-20,21; 34,1-28). O texto quer mostrar que algo divino está se manifestando.

Então, aparece, nessa dimensão transcendental, um grande “sinal” (v. 1). O autor usa esse termo para evocar feitos maravilhosos ou estupendos. Do mesmo modo, o livro do Êxodo falou dos “sinais” que Deus realizou para o povo na saída do Egito.

Uma mulher surge gloriosa, com características celestiais e divinas, pois estava ornada de astros: vestida com o sol, possuía a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça, uma coroa de 12 estrelas (v. 1). Estava grávida e gritava por causa das dores de parto, tal como a descrição de Gn 3,15-16, pois estava sofrendo com o trabalho de dar à luz o Messias (v. 5).

Em contrapartida, aparece outro sinal no céu, contrastando com o anterior: uma hostilidade, uma adversidade, um grande dragão, avermelhado como fogo (12,3). Quando esse dragão percebeu que tinha sido derrotado por Miguel e expulso para a terra (v. 13a), começou a perseguir a mulher que tinha dado à luz o menino. Deus, porém, age, protegendo a mulher e dando-lhe “asas de águia”, como aquelas com que Deus levou o povo de Israel da escravidão para a liberdade (Ex 19,4).

Então, a hostil serpente vomitou como um rio de água atrás da mulher, a fim de a submergir. Conforme o contexto histórico do livro, isso diz respeito ao Império Romano, que perseguia a Igreja a fim de eliminá-la (13,1-18). De maneira semelhante, o Egito perseguiu o povo de Israel, e o profeta Isaías comparou os ataques dos assírios com as águas invasoras do rio Eufrates (Is 8,7-8).

Contudo, a terra veio em socorro da mulher: abriu a boca e engoliu o rio que o dragão (ou a serpente) tinha vomitado (v. 16a).  Assim, esperava-se que as perseguições do império contra os cristãos iriam cessar. Deus é fiel aos seus eleitos e não os abandona. As adversidades têm limites. O amor de Deus pelo seu povo é sem fim.

A mulher do Apocalipse representa a comunidade de fé perseguida pelo Império Romano, a qual, porém, confia em Deus e experimenta sua ação providente contra as perseguições. Desse modo, vê-se na mulher do Apocalipse a Mãe de Jesus, como parte dessa comunidade que espera e acredita que o contexto de sofrimento e injustiça terá um final em breve. Que ela rogue por nós e por tudo que passamos no momento presente!

3. Evangelho (Jo 2,1-11)

O Evangelho desta solenidade narra um casamento em Caná depois de três dias do encontro de Jesus com Natanael (1,43-51). Jesus é convidado com seus discípulos e sua mãe. Tudo segue na normalidade, até que o vinho vem a faltar e o fato é comunicado a Jesus.

Maria é a porta-voz dos aflitos da festa. Ela é que diz a Jesus que o vinho acabou (v. 3). Com isso, a festa se tornaria um vexame público. A resposta de Jesus (“que há entre mim e ti?”) reflete um tratamento de precaução e indagação (Jz 11,12; 1Sm 16,10; Mc 1,24). A “hora” de Jesus ainda não havia chegado. Tal momento designará sua exaltação e glorificação na cruz (Jo 7,6.30; 8,20; 13,1; 17,1). No entanto, as glórias messiânicas passam a ser celebradas com o novo vinho dado a partir da ação de Jesus.

Jesus parece indiferente, mas, na realidade, está provocando a fé, como fez José em relação aos seus irmãos no Egito (Gn 41,55). Maria, a Mãe dos que creem, transmite sua confiança em Deus aos presentes na festa, dizendo: “Fazei tudo o que ele vos disser” (v. 5). Ela exprime a fé no Messias que estava se revelando e cuja hora ainda não tinha chegado. A confiança da Mãe ocasiona a atuação do Filho em prol daqueles aflitos.

Encontravam-se ali seis talhas de pedra (cada uma com aproximadamente cem litros), que serviam para a purificação dos judeus. Jesus ordena que as encham de água. Contudo, a destinação já não seriam os ritos desnecessários de purificação, mas as núpcias de Deus com seu povo em Jesus (2,6-7). O vazio do judaísmo legalista e sem sabor cede lugar à novidade que Jesus traz com sua existência, simbolizada no bom vinho e na alegria da festa.

A água transformada em vinho foi provada e aprovada pelo mestre de cerimônias e pelo noivo. Os serventes comentam com o dono da festa: “Tu guardaste o vinho bom até agora!” (v. 10). O evangelista inverte a ordem da comemoração e faz de Jesus o verdadeiro responsável que celebra as núpcias de Deus com a humanidade. O vinho novo e bom não faltará, porque o esposo anunciado chegou para cumprir as profecias (Am 9,16; Is 61,10; 62,5). O júbilo voltou e os festejos devem começar. Já não se trata de uma celebração limitada a alguns dias, mas do tempo novo de atuação do Cristo até a eternidade.

Os noivos das núpcias não aparecem na narrativa. Eles não têm nome nem rosto. Jesus, sua Mãe e seus discípulos, embora sejam convidados, protagonizam o evento e marcam o início dos sinais de Jesus. O mistério de Cristo começava a se revelar. Os discípulos creram nele, mas ainda não tinham fé madura e completa, que só seria possível quando a obra de Jesus chegasse a termo e já não fosse preciso ver sinais (20,29).

De modo semelhante, uma imagem encontrada nas águas escuras de um rio gera uma mudança no vilarejo da época e na nação que o Brasil se tornou. A mensagem de Aparecida também se parece com Caná: a presença de Maria ocasiona a novidade da obra de Jesus. Assim como o sinal realizado nas bodas gerou fé, nossa veneração à Senhora Aparecida nos faça crer sempre mais em Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

As mulheres que protagonizam as leituras desta solenidade revelam características de Nossa Senhora Aparecida. Ester suplica pelo povo, a mulher do Apocalipse mantém a esperança em meio às adversidades, e Maria pede a Jesus que aja em prol dos aflitos. A devoção a Aparecida nos faz perceber essas dimensões, bem como nos compromete a viver conforme o que celebramos.

Cabe a nós todos orar e atuar em prol dos mais sofridos. Somos afligidos por diferentes dificuldades da vida, às vezes causadas por más ações alheias. E nos reunimos para celebrar com o vinho da alegria que Jesus nos traz em cada Eucaristia.

Olhemos ainda nosso povo e nossa realidade social. Quantas transformações ainda são necessárias para uma vida mais digna para muitos? O milagre acontece com a união na fé em torno de um mesmo objetivo: o amor fraterno, a justiça e a paz entre todos.

Marcus Mareano*

*é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]