Artigos

Publicado em número 249 - (pp. 3-8)

As primeiras Conferências do CELAM

Por Pe. Antonio Manzatto

No horizonte de nossa reflexão já desponta a realização da V Conferência-Geral do Celam, que ocorrerá em maio de 2007, em Aparecida, tendo como tema: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’ (Jo 14,6)”.

Quando se pensa em semelhante acontecimento, não se deve perder a memória do que foram as outras conferências-gerais do Celam — desde aquela do Rio de Janeiro até a de Santo Domingo —, quais foram suas aquisições e conquistas, seus acertos e também seus problemas. Olhar para trás a fim de poder olhar para a frente, aprender com o que foi vivido em vista de melhorar a experiência, evitando os erros.

É verdade que o tema da V Conferência é sedutor. Começa com a afirmação do discipulado de Cristo, o que tem muito que ver com a tradição teológico-eclesial da América Latina e do Caribe, a qual, de longa data, privilegia o caminho do seguimento de Jesus como realização do ser cristão atual. Depois, enfocando a questão da missão, desemboca no compromisso de defesa da vida de “nossos povos”, trazendo, aqui também, a marca da reflexão teológica e da ação pastoral que se desenvolveu na América Latina em tempos recentes. Mas, antes de abordar o tema da V Conferência do Celam, é necessário “fazer memória”, como pede a tradição latino-americana, das conferências anteriores.

 

1. No espírito do Vaticano II

É segundo o espírito do Concílio Vaticano II que se desenvolvem as primeiras conferências-gerais do Celam. É bem verdade que o Celam nasceu antes do Concílio, nos anos 50, e realizou sua primeira conferência-geral no Rio de Janeiro em 1955. Mas é verdade também que essa conferência-geral realizada no Rio não deixou marcas maiores na Igreja do continente, a não ser a própria existência do Celam. Sua preocupação era quase exclusivamente intraeclesiástica, afirmando de modo um tanto apologético a Igreja diante do mundo e das outras religiões. Mesmo que haja pequenas frases que indicam uma possibilidade de preocupação pastoral, elas não dão a tônica do documento, que, por isso mesmo, não fez história mais significativa no seio da Igreja latino-americana.

Bem diferente é o que vai ocorrer com a conferência seguinte, a de Medellín, em 1968, e depois com as outras subsequentes. Costuma-se dizer que Medellín, se não é a certidão de nascimento do Celam, é o batismo da Igreja latino-americana, enquanto Puebla (1979) é sua confirmação. Essas conferências, incluindo aí também Santo Domingo (1992), situam-se na exata linha do Concílio Vaticano II, em conformidade com o espírito norteador de duas das constituições daquele concílio, a Lumen Gentium e a Gaudium et Spes, não por acaso reconhecidas como os dois grandes textos do Vaticano II.

Em sintonia com o espírito da Lumen Gentium, essas conferências destacam a colegialidade episcopal exatamente pelo fato de reunirem bispos de todo o continente para, na presença do papa, refletirem, discutirem e programarem a ação da Igreja presente na América Latina. Lumen Gentium retoma, com vigor, a afirmação da importância da colegialidade episcopal, à medida que afirma a solicitude dos bispos para com todas as Igrejas e relembra que eles, como colégio, são sucessores dos apóstolos, isto é, do colégio apostólico. Se essa colegialidade já havia sido iniciada na conferência do Rio de Janeiro, Medellín é um passo avante, pois não apenas reúne os bispos em assembleia, mas torna presente diante deles a voz da Igreja de todo o continente. Com efeito, ali reunidos, olhando para a Igreja “na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”, os bispos puderam ver a realidade eclesial e a dos povos do continente latino-americano porque deixaram ecoar, na assembleia, a voz da Igreja trazida pelos pastores e por representantes de vários setores da vida eclesial. A Igreja continua sendo a comunidade dos fiéis que creem em Jesus Cristo, unida a seu pastor.

Foi como pastores que os bispos se reuniram, refletiram sobre sua missão e sobre a vida da Igreja e chegaram às “Conclusões de Medellín”. Nisso se manifesta a sua colegialidade, e não meramente num aspecto burocrático ou numérico. A colegialidade não reside no fato de estarem juntos, mas no de assumirem em conjunto, como pastores e sucessores dos apóstolos, a responsabilidade comum de conduzir a Igreja da América Latina pelos caminhos do mundo. O mesmo se dá nas conferências seguintes, que continuam sendo manifestações de colegialidade episcopal, até como exemplo para outras partes do mundo.

Ao lado da colegialidade, que segue de perto a Lumen Gentium, há outra característica presente nas conferências do episcopado latino-americano que convém destacar. Trata-se do diálogo com o mundo, no espírito da Gaudium et Spes. Esse documento do Vaticano II retoma a sadia prática de se pôr à escuta do mundo, reconhecendo que a Igreja nele está mergulhada e age em benefício de sua salvação, uma vez que é o mundo todo que precisa ser salvo, configurando-se melhor ao Reino de Deus. A prática de olhar a situação social do continente não é, pois, um posicionamento ideológico, mas teológico-pastoral, na sequência da Gaudium et Spes. E foi exatamente esse olhar pastoral sobre a realidade que fez que essas conferências fossem tão importantes para a vida da Igreja latino-americana. Por meio dele é que os pastores se encontraram com seu povo e reconheceram, de um lado, a dura labuta diária dos pobres e, de outro, sua grande confiança em Deus. Foi isso que permitiu à Igreja o grande salto da opção pelos pobres e seu compromisso com a transformação da realidade. Assim, colegialidade e preocupação com a realidade de vida do povo são marcas das conferências-gerais do episcopado latino-americano e elementos a ter em mente quando se prepara a V Conferência-Geral do Celam.

 

2. Medellín

Procurando ver “a Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”, a Conferência de Medellín opera uma transformação na vida da Igreja e se torna uma referência na vida eclesial do continente. Se a Conferência do Rio de Janeiro havia dito apenas algumas palavras sobre a situação de vida do povo e sobre a organização social, e isso no final do documento, Medellín faz o caminho inverso: parte da realidade social, serve-se do conhecido método ver-julgar-agir e aproxima a Igreja da vida do povo crente.

O documento final daquela assembleia-geral, que apresenta o trabalho das 16 subcomissões em que foi dividida a conferência, começa apresentando os documentos sobre justiça e paz. Isso não é sem significado. A ação dos pastores começa pelo conhecimento da realidade, e por isso o documento todo de Medellín está estruturado exatamente neste esquema: olhar sobre a realidade (ver), reflexão doutrinal (julgar) e propostas concretas de ação (agir). O velho método da ação católica é chamado para ajudar a Igreja do continente a desenvolver sua missão.

Dentre os pontos importantes do documento de Medellín ressalte-se a afirmação da injustiça institucionalizada como causa da pobreza do continente, o reconhecimento de que a paz é fruto da justiça e o compromisso da Igreja com o processo de libertação dos pobres. O olhar sobre a realidade do continente faz perceber que a imensa maioria de seu povo, que é crente, é também pobre. E essa pobreza não é fruto da preguiça ou do azar, nem é estágio necessário no caminho do desenvolvimento, mas sim, subproduto daquela organização social, ou seja, é institucionalizada. Além disso, é injusta porque se baseia na força e na exploração, fazendo que os pobres sejam cada vez mais empobrecidos.

Por outro lado, percebe-se que apenas a transformação dessa situação é que pode gerar paz. As diversas situações de violência e de instabilidade social encontram suas raízes exatamente nessa situação de injustiça social. Assim, não basta combater os sintomas, mas é preciso ir direto às causas do problema. Não há que pôr remendos ou paliativos, realizando pequenas reformas sociais, mas há que ir ao fundo da questão, transformando a realidade, o sistema, para que se estabeleça a justiça nas relações sociais e, assim, os povos do continente possam encontrar a paz e nela construir sua história. A proposta aqui é clara, pois se trata de assumir a luta dos pobres pela transformação social. São eles que gritam que a situação não é satisfatória e precisa ser mudada; é em favor deles que se deve fazer a transformação social, e é ao lado deles que a Igreja se engaja para também lutar por essa transformação, fazendo que o processo de libertação dos pobres aproxime mais o mundo do Reino de Deus anunciado por Jesus. Daqui saem duas consequências importantes para a vida da Igreja latino-americana, sobretudo nos anos que se seguiram imediatamente a Medellín: a valorização da ação política e das comunidades eclesiais de base (CEBs).

A valorização da ação política dos cristãos foi uma das grandes preocupações da Igreja nos anos que se seguiram a Medellín e é uma das marcas da teologia e da pastoral latino-americanas. Trata-se da importância de pensar o social e sua organização em benefício dos pobres, uma vez que é preciso haver mediações que operacionalizem as boas intenções presentes no coração das pessoas. Não é apenas o humano que faz a sociedade, mas também o inverso, donde a necessidade de transformar as estruturas da vida social para que a justiça reine. Não bastam as boas intenções e os belos discursos; é preciso agir como cristão, e a política é uma forma privilegiada de viver a macrocaridade, já que por meio dela se podem estabelecer relações mais justas entre as pessoas. Mas não se trata de qualquer política, e sim daquela que quer pensar o bem comum com base no mais fraco, reconhecendo sua dignidade e protegendo seus direitos. Exatamente aqui se situa a perseguição movida contra a Igreja e contra vários de seus membros desde aquela época até os dias de hoje, a qual fez que a Igreja do continente latino-americano fosse povoada por tantos mártires.

Mas nada marcou mais a Igreja latino-americana como a formação, organização e vitalização das comunidades eclesiais de base. É certo que elas não são uma invenção de Medellín, mas as posições assumidas naquela conferência foram decisivas para o impulso dado às CEBs. A preferência pelos pobres é o primeiro fator a ser afirmado, sobretudo porque é no meio popular que as CEBs mais se desenvolveram, aliando aquilo que os pobres não separam: a fé e a vida. Assim, por todas as partes do continente se organizaram as pequenas comunidades eclesiais, que, vivendo sua fé na escuta da Palavra de Deus, na oração e na prática sacramental, não se esqueciam de a isso unir sua existência concreta, discutindo suas vidas e planejando ações que lhes possibilitariam viver a caridade na prática da justiça. É aqui que, como se percebe, incide a importância da ação política dos cristãos das CEBs: ela se alia à união entre fé e vida, buscando na opção de fé os princípios e valores que é preciso defender para que se estabeleça a justiça na sociedade e, assim, os pobres tenham seus direitos respeitados. Trata-se da ação política dos próprios pobres que formam as CEBs em busca da transformação da sociedade, onde eles se afirmam como sujeitos da própria história. Não é difícil entender, então, certo combate movido contra as CEBs por aqueles que defendiam posições políticas diferentes.

No interior da Igreja, no ad intraeclesial, as CEBs também tiveram grande importância — e continuam a ter lá onde ainda são favorecidas. Trata-se, como foi chamado depois, de verdadeiro protagonismo dos leigos em um novo modo de ser Igreja. Nisso elas se situam na linha do seguimento da Lumen Gentium, que não apenas falava de colegialidade, mas caracterizava a Igreja como Povo de Deus. Enquanto povo, pois, as comunidades se organizavam para, sem separar-se de seus pastores, viver sua fé e celebrar sua vida, preocupando-se ao mesmo tempo com a ação política e a prática religiosa. Nas CEBs organizavam-se a catequese, a escuta da Palavra de Deus, a vivência dos ministérios, a oração, a prática sacramental, a celebração e o culto e, além disso, cursos profissionalizantes, fóruns de debates, ações pela melhoria da vida no bairro, grupos de influência política e outras atividades ligadas à prática social. Tudo isso era encabeçado pelos próprios membros das CEBs, leigos e leigas que, como adultos na fé, assumiam sua história e suas responsabilidades na Igreja, sem que isso os levasse a desligar-se de seus pastores; ao contrário, normalmente em comunhão com eles é que tudo era feito.

 

3. Puebla

A sequência de Medellín foi a Conferência de Puebla. Cercada de expectativas e procurando enxergar as questões relacionadas à “evangelização no presente e no futuro da América Latina”, a conferência não decepcionou, mas constituiu, em termos de ação da Igreja latino-americana, um passo à frente, afirmando, ao mesmo tempo, a opção pelos pobres e a comunhão e participação como caminhos de eclesialidade.

O período que vai de Medellín a Puebla corresponde à época do nascimento e início de sistematização da teologia da libertação, a reflexão teológica tipicamente latino-americana que, embora situada em seu contexto, teve repercussões mundiais, influenciando na forma de fazer teologia da Igreja do mundo inteiro e também nas perspectivas pastorais decorrentes dessa reflexão. A teologia da libertação trabalha com os pontos afirmados em Medellín: a aproximação fé-vida como caminho para viver o cristianismo; o compromisso com os pobres, sobretudo por meio das comunidades de base; releitura dos conteúdos da teologia, privilegiando os pobres; a ação política como forma de superar as atuais injustiças sociais. Essa maneira de fazer teologia, que vai se sistematizando aos poucos, explica os caminhos pastorais trilhados pela Igreja latino-americana na década de 70 e aponta para os compromissos assumidos em Puebla. Na verdade, é esse pensamento que conduz a Igreja da América Latina de Medellín a Puebla.

Querendo pensar a evangelização, a III Conferência-Geral do Episcopado Latino-americano aprofunda a leitura da realidade do continente e, seguindo o mesmo método de Medellín, o ver-julgar-agir, conclui que a situação de injustiça social é um pecado a combater e aponta caminhos, com base na opção pelos pobres, para que isso se faça. Bebendo da inspiração da Evangelii Nuntiandi, publicada alguns anos antes, Puebla reconhece que o caminho da evangelização passa pela promoção da dignidade humana e, portanto, o engajamento pela libertação dos pobres é um dos compromissos que se esperam da Igreja. Assim, a opção pelos pobres não é vista, simplesmente, como uma afirmação ideológica, como muitos quiseram fazer ver na época e ainda hoje, mas um componente da vida da Igreja, uma vez que a história revela ter sido sempre esse o caminho escolhido por Deus para sua revelação. Trata-se, pois, de uma questão teológica, tanto que, mais tarde, receberá, sobretudo nas afirmações do magistério, a qualificação de “evangélica”, para que sua característica teológica não seja esquecida.

As CEBs continuaram sendo promovidas na Conferência de Puebla por constituírem exemplo e caminho de construção de uma Igreja que se quer comunhão e participação, semente de uma sociedade que deve ser da mesma forma. Na vida dessas comunidades ressalta-se, em primeiro lugar, a prática da escuta da Palavra de Deus. A importância da Bíblia é uma das características da Igreja latino-americana na época de Puebla, característica que ainda permanece hoje na vida das comunidades. A compreensão da Palavra de Deus é iluminada pela situação existencial e, inversamente, vem iluminar a realidade, para que se tenha claro qual o juízo da fé sobre a situação vivida. Daí advém o compromisso de engajamento em prol da libertação dos pobres, buscando que a sociedade seja mais justa. A Igreja, então, aparece como exemplo de por onde deve andar a sociedade, já que é sacramento do Reino de Deus; daí surge a compreensão de que a Igreja é, e deve ser sempre mais, comunhão e participação. Todo caminho para o protagonismo dos leigos, para o desenvolvimento dos ministérios, para a união entre fé e vida, tal qual vividos nas CEBs, permanece aberto e é mesmo apontado como o caminho a seguir. Em Puebla, pois, o caminho que havia começado a ser traçado em Medellín foi confirmado, e a Igreja latino-americana continuou seu rumo.

 

4. Santo Domingo

Em 1992 foi celebrada a IV Conferência-Geral do Episcopado Latino-americano, em Santo Domingo, na República Dominicana. Ela foi inserida no calendário de festividades da celebração dos 500 anos da América e isso não deixou de causar certo desconforto, pois a reação popular àquelas celebrações, denunciando que não se celebrava nenhuma “descoberta”, mas, sim, invasão, corria o risco de tornar-se também reação à própria conferência. O tema “Nova evangelização, promoção humana, cultura cristã” e a preparação da conferência, ambos a cargo sobretudo de Roma, não encontraram eco imediato nas Igrejas do continente — e Santo Domingo permanece como que apêndice na vida da Igreja latino-americana, não tendo a influência eclesial desempenhada pelas duas conferências antecedentes.

No entanto, alguns aspectos tratados em Santo Domingo permanecem válidos e, de certa forma, se fazem ainda presentes na vida da Igreja latino-americana. O principal deles é, evidentemente, as questões em torno da promoção humana. Na linha de fidelidade à tradição da Igreja da América Latina, Santo Domingo reafirma o compromisso com os pobres e entende a promoção humana como componente essencial da evangelização, tal qual disse Puebla. Nesse sentido, a opção pelos pobres é retomada e reafirmada, assim como o compromisso de transformação da sociedade. Aqui, pois, não há nenhuma mudança no comportamento e nas preocupações pastorais da Igreja do continente.

A questão da cultura, a novidade de Santo Domingo, aparece de duas formas ao longo do documento e é assim que entrará na vida da Igreja latino-americana. A primeira diz respeito às culturas dos povos latino-americanos, sobretudo às culturas oprimidas, afirmando-se sempre a necessidade de evangelizá-las. As reflexões surgidas em outras partes do mundo sobre a inculturação, sobretudo na África, não têm muita influência na confecção do documento, e, uma vez que a questão cultural não foi vista como prioritária na vida das Igrejas do continente, ela, de certa forma, permaneceu uma questão marginal mesmo após Santo Domingo. A outra forma da questão cultural aparecer no documento da IV Conferência, embora com um enfoque analógico, é a oposição entre cultura da vida e culturas de morte — no sentido de valores que defendem a vida e a dignidade humana e outros que as menosprezam. Esse aspecto, que, embora com certa transformação, se fundamenta na tradição teológico-pastoral do continente, esteve um pouco mais presente na vida de nossas Igrejas, já que permite criticar o sistema social produtor de pobreza e de exclusão e propor outra forma de vida, que privilegie os pobres. A questão cultural aqui se relaciona, pois, com a promoção humana e, embora tenha sido assumida principalmente por setores mais conservadores, que com base nela insistem nos assuntos referentes sobretudo ao aborto e à eutanásia, ainda permite ligar Santo Domingo à grande tradição do continente.

Talvez o que mais marcou Santo Domingo tenham sido suas lacunas ou suas diferenças para as conferências precedentes. Percebe-se na Conferência de 1992 uma influência muito maior de Roma na direção e na forma de realizar os trabalhos; há um cuidado para não valorizar a ação política dos cristãos, e o desvio cultural aí é providencial; embora esteja presente no documento, não há uma insistência maior sobre o papel das CEBs como “novo modo de ser Igreja”, mostrando já certa tendência de igualá-las aos chamados “movimentos eclesiais”; o mesmo se dá com a opção pelos pobres, havendo espaço, então, para tentativas de recuperar antigas formas de ação pastoral e de organização da Igreja. Sente-se falta, no documento de Santo Domingo, sobretudo de um olhar mais atento e crítico sobre a sociedade, já que, de certa maneira, abriu-se mão do tradicional método ver-julgar-agir; e também de uma colegialidade mais autenticamente vivida na corresponsabilidade pela Igreja de todo o continente, uma vez que a participação das Igrejas do continente não foi vivida naquela conferência da mesma maneira que nas anteriores. Ali onde a IV Conferência se afastou, por assim dizer, da tradição latino-americana inspirada pelo Vaticano II, deixou de influenciar as Igrejas da América Latina e, embora reconhecida por elas, permaneceu à margem de suas preocupações e realizações.

 

5. O que se espera da V Conferência-Geral do Celam

Olhando para trás e tentando formar uma visão de conjunto do que foram as conferências precedentes do Celam, alguns pontos, ou um composto deles, saltam aos olhos, demonstrando haver uma continuidade nessas conferências exatamente daqueles temas que influíram decisivamente na vida das Igrejas do continente latino-americano.

O primeiro bloco toca a questão da colegialidade eclesial, na sequência da Lumen Gentium, e aparece no continente latino-americano não apenas na realização das conferências-gerais do Celam, o que já seria um aspecto a ressaltar, mas também no desejo de uma Igreja de comunhão e participação — para utilizar a linguagem de Puebla —, na linha trabalhada pelas CEBs. Lembre-se que a colegialidade não está simplesmente no fato de a conferência do Celam se realizar, mas no assumir colegialmente a responsabilidade da vida da Igreja latino-americana. Donde a esperança de que a V Conferência do Celam ouça a voz das Igrejas do continente, possibilitando, assim, participação das comunidades no evento. O que está em jogo aqui é mais do que a manutenção da tradição participativa das Igrejas da América Latina, pois se trata do modelo de Igreja a ser defendido e construído, sinal e testemunho da sociedade que se quer, missionariamente, edificar. Em última análise, está em jogo o seguimento de Jesus, a vida de fé da comunidade que crê no Cristo e, por isso, quer sentir- se fraterna e agir com fraternidade. Os sinais, nesse sentido, são positivos, já que há ampla vontade de que os diversos setores da vida eclesial do continente (comunidades, movimentos, vicariatos, organizações, clero e laicato) participem efetivamente, enviando, por exemplo, contribuições ao Celam mediante o “documento de participação” da V Conferência.

O segundo conjunto de pontos a ser destacado é aquele que, na sequência da Gaudium et Spes, propõe o diálogo com o mundo, olhando para a realidade, aprendendo dela e, com base no evangelho de Jesus, agindo sobre ela para transformá-la lá onde precisa avançar no caminho do Reino de Deus. O olhar para a realidade foi essencial na realização das conferências anteriores, pois deu à Igreja latino-americana o conhecimento da situação vital das pessoas a evangelizar, e lhe permitiu assumir o compromisso de agir para a libertação dos pobres, na busca de uma sociedade mais igualitária. Opção preferencial pelos pobres e engajamento político são, assim, duas marcas da tradição eclesial latino-americana. Como sinal positivo, elas se anunciam presentes na temática da V Conferência do Celam, que quer que “nossos povos nele (em Jesus Cristo) tenham vida”; ou seja, o compromisso de agir em defesa da vida não tem raiz simplesmente ideológica: vem da opção de fé no Cristo e por isso não se satisfaz com simples pequenas reformas no sistema, mas quer a transformação da realidade, para que esta se configure ao plano de Deus. A temática da defesa e proteção da vida, que tem se tornado cara à teologia latino-americana nos últimos tempos e se quer importante na realização da V Conferência, é a porta pela qual a Igreja manifestará sua preocupação com os pobres do continente. Afinal, trata-se de “nossos povos”, ou seja, dos povos latino-americanos, aqueles cuja cultura é oprimida e que é preciso promover, como disse Santo Domingo; que são vítimas do pecado da injustiça social e por quem se fez e se faz a opção preferencial pelos pobres, como afirmou Puebla; aqueles empobrecidos vítimas da violência, da pobreza e da injustiça institucionalizada, como dizia Medellín. Aqui a temática da vida não permanece fechada nas questões de aborto e da eutanásia, mas, incluindo-as, abre-se para a realidade atual dos povos do continente, povos crentes e ainda submetidos à miséria, à exclusão social, à violência, à opressão, tendo suas vidas constantemente ameaçadas pelo sistema vigente na sociedade. Nossa esperança é que o sopro renovador do Espírito de Deus presida e conduza a V Conferência do Celam, de modo que se anime e revitalize a vida eclesial da América Latina e assim sejamos todos “discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida”.

 

Bibliografia

CELAM, A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concílio — Conclusões de Medellín, Vozes, Petrópolis, 1969.

CELAM, Evangelização no presente e no futuro da América Latina — Documento de Puebla, Paulinas, São Paulo, 1979.

CELAM, Nova evangelização, promoção humana e cultura cristã — Documento de Santo Domingo, Paulinas, São Paulo, 1992.

ENRIQUE DUSSEL, De Medellín a Puebla, uma década de sangue e esperança, Loyola, São Paulo, 1981.

GERMAN DOIG KLINGE, “De Rio a Santo Domingo”, Vida y Espiritualidad, 1993.

GUSTAVO GUTIERREZ, Pobres e libertação em Puebla, Paulinas, São Paulo, 1980.

VÁRIOS, Santo Domingo: ensaios teológico-pastorais, Vozes, Petrópolis, 1993.

 

Pe. Antonio Manzatto