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Publicado em número 173 - (pp. 7-13)

A “Casa de Deus” para os empobrecidos do mundo Eclesiologia da primeira carta de Pedro

Por Pe. João Rezende Costa

I. INTRODUÇÃO

A primeira carta de Pedro (1) declara no final seu objetivo: “… escrevi estas breves palavras para exortar e garantir que a verdadeira graça de Deus é esta em que estais estabelecidos” (5,12). É carta de exortação, confirmação e estímulo. O seu tema é basicamente “a graça de Deus em que estais estabelecidos”. Que graça será essa? É a graça de estar na comunidade cristã. Por que e em que aspecto constitui graça (charis)?

O texto anterior oferece a resposta, onde se acha uma eclesiologia específica (se bem que não apareça o termo “Igreja”), que só se pode vislumbrar em seu contexto também específico. Para ver este contexto, é preciso perguntar: Quais os destinatários de 1Pd?

São “os eleitos forasteiros em trânsito (parepidemois) da Diáspora do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia” (1,1). Em 1,17 se diz: “… durante o tempo de vossa paroikia”, ou seja, da vossa vida como “estrangeiros residentes” no seio de uma sociedade que não vos dá plenos direitos de cidadania. Em 2,11 aparece a expressão “estrangeiros residentes (paroikoi) e forasteiros em trânsito (parepidemoi)”. Essas palavras do original grego denotam que existe uma experiência de real migração na região em que vivem concretamente. Essas regiões apontadas acima (1,1) padeciam os efeitos da política imperialista romana, que forçava à migração em massa, desenraizando as pessoas de casa, lar, pátria, amores e valores. Os “eleitos” (cristãos) desses lugares eram pessoas vindas para a comunidade cristã dentre esses tirantes sem casa, sem lar e sem pátria. Eram pessoas sozinhas e empobrecidas pela política internacional. De que mais precisam essas pessoas saudosas de casa, pátria, relações sociais e cultura que perderam? Precisam de aconchego e acolhimento em novo grupo de irmãos. Andam em busca de nova casa, novo lar, nova família, novos valores tidos em comum, novo povo. Precisam de lugar fraterno onde fundar raízes.

 

II. A EXPLANAÇÃO

1. A comunidade cristã é a “casa de Deus”

Ora, qual a ideia e a proposta de 1Pd? “A verdadeira graça em que estais estabelecidos” é a comunidade cristã como “a casa de Deus” (ho oikos tou Theou: cf. 4,17). Eis que o povo empobrecido, vivendo sem casa (em paroikia) no meio do mundo, ganha uma casa, a casa de Deus para morar! Para imigrantes sem pátria e sem casa (paroikoi), que anseiam por um grupo que lhes substitua pátria e casa de antigamente, a graça (charis) e a boa-notícia (evangelho) é que o próprio Deus lhes tenha edificado uma casa e nela os tenha acolhido em nova fraternidade (cf. “fostes edificados ‘como casa’ — oikodomeisthe — por Deus”: 2,7). A. carta deseja confirmá-los nesta casa, nesta graça em que estão estabelecidos. Vamos ver em seguida quão imensa graça é essa nova casa.

Por que a carta é de exortação, confirmação e estímulo? Porque esses cristãos, já marginalizados na sociedade em que viviam (como estranhos sem casa e aconchego, destituídos de direitos de cidadania plena, imigrantes empobrecidos em tanta coisa humana), também sofriam por serem cristãos, grupo presumidamente estranho e exótico que se afastava dos costumes dos antigos companheiros de paganismo, criticando-os por seu comportamento (4,2-3). À existência de pessoas marginalizadas na sociedade, vivendo sem casa (em paroikia), acrescia o fato de sofrerem da parte dos que os cercavam. Estavam inevitavelmente inseridos na sociedade sem todavia lhe pertencer inteiramente. Eram perseguidos pelos de fora da comunidade cristã.

Eram, pois, pessoas que careciam de exorta­ção e estímulo, porque corriam dois riscos: a) o de abjurar e voltar à sociedade sem os valores cristãos da nova casa, sem conversão, por causa das oposições sofridas (donde o apelo insistente da carta ao paradigma do sofrimento de Cristo); afastar-se-iam, assim, da casa de Deus, a verdadeira graça de Deus em que se podiam apoiar; b) o de fechar-se em si, dentro da casa de Deus, deixando o mundo seguir o seu próprio curso com todos os problemas de seus companheiros de paroikia que, de mais a mais, continuavam no seio das trevas do paganismo (cf. 2,9), deixando de lhes anunciar “a admirável luz de Deus” (cf. ibid.).

 

2. A “casa de Deus” retoma as prerrogativas da “casa de Israel”

Para obviar a esses dois riscos, os cristãos precisavam de estímulo e ajuda nos sofrimentos por que passavam. Careciam ver a grandeza de sua dignidade, a graça e a boa-nova (evangelho) implicadas na pertença à comunidade cristã. E eis que o povo empobrecido e humilhado encontra nesta comunidade o lugar onde se sentir em casa, qual nova irmandade no meio do rechaço da sociedade que o marginaliza. Ouviu de 1Pd coisas maravilhosas: pertencem-lhe todos os títulos de honra da “casa de Israel”, como vemos sobretudo nos dois textos seguintes:

“Aproximai-vos dele, a pedra viva, rejeitada, é verdade, pelos homens, mas diante de Deus eleita e preciosa. E vós mesmos, como pedras vivas, fostes construídos em casa espiritual para ser um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por Jesus Cristo” (2,4-5).

“Sois uma raça eleita, um colégio sacerdotal régio, uma nação santa, um povo que (Deus) adquiriu, para proclamar as excelências daquele que vos chamou das trevas à sua luz admirável, vós que outrora não éreis povo, mas agora sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia” (2,9s).

A primeira carta de Pedro joga com todo os matizes e associações do campo semântico da “casa” de Israel para mostrar a grandeza da comunidade cristã, que incorpora a casa de Israel de outrora com todas as suas prerrogativas. Vale deste pobre povo o texto central da aliança de Israel com Deus em Ex 19,5s, e da renovação da aliança depois da infidelidade do povo em Os 1,6-9 e 2,3.25, sublinhadas no texto acima. O último texto citado frisa que se trata de um povo que voltou a Deus vindo da infidelidade do paganismo e por ele chamado para proclamar as excelências de quem os chamou das trevas (do paganismo) à sua luz admirável. Outrora (no paganismo) não era povo, mas agora (na comunidade cristã) é povo de Deus, tendo alcançado misericórdia. Esse povo foi buscado por Deus para ser o povo de sua especial propriedade, sendo “povo eleito” por pura misericórdia, nada devendo quanto a isso a si próprio, mas somente a Deus, para viver como o povo da aliança com Deus. Assim como Israel, também ele é colégio sacerdotal constituído por todos os membros, que na “casa espiritual” (do Espírito) oferecem sacrifícios espirituais (conduzidos pelo Espírito) por meio de Jesus Cristo. Insiste-se no aspecto cristológico, mas como cumprimento do que ocorria no Antigo Testamento. Assim como Israel, é também o rebanho de Deus (5,2) do qual ele mesmo é o pastor (o arquipastor: 5,4) e dele cuida (5,7), sendo o seu episkopos, vigilante.

A expressão “Diáspora” refere-se ao povo de Israel disperso entre os povos, com seu matiz de testemunho perante os pagãos, sendo “luz entre os povos” (cf. Is 42,6), passa a se referir também à comunidade cristã (1,1), vinculada à sua “coeleita” da Babilônia (Roma: 5,13) e ao “vosso grupo de irmãos que está no mundo” (5,9), sendo uma Diáspora universal entre os povos.

 

3. O seu Deus é um “Deus caseiro/familiar”

3.1. Nesta casa de Deus, Deus é o Pai do irmão mais velho Jesus, gerador (tema caseiro) de filhas(os) e irmãs(ãos), moradores da casa, concedendo-lhes uma herança (tema caseiro), vinda não do mundo, mas do céu, uma salvação que lhes ocorre mediante a fé: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, em sua grande misericórdia, nos gerou de novo, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, imaculada e imarcescível, reservada nos céus para vós, os que, mediante a fé, fostes guardados pelo poder de Deus para a salvação prestes a revelar-se no tempo do fim” (1,3-5).

“Fostes regenerados, não de semente corruptível, mas incorruptível, mediante a palavra viva de DeusÉ essa palavra que vos foi anunciada no evangelho” (1,23-25).

Nesta casa tudo se recebe gratuitamente deste Pai, razão pela qual perpassam por toda essa carta sentimentos de humildade e igualdade na fraternidade (2,10; 5,5s). Deus Pai é o construtor desta casa e a manterá em bases firmes (5, 10, onde todos os verbos se referem ao fundamento da casa, ações exercidas por Deus). Ele cuida dos familiares, do pessoal da casa: “Lançai nele toda a vossa preocupação, porque é ele que cuida de vós” (5,7). Assim como Deus é santo, os membros da casa devem ser santos: “Como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos também vós santos em todo o vosso comportamento, porque está escrito: ‘Sede santos, porque eu sou santo’” (1,15-16: cita Lv 19,2), e, se chamais a Deus de Pai, “vivei com temor durante o tempo de vossa paroikia na sociedade (1, 17). Este Pai ressuscitou Jesus dos mortos dando-lhe a glória, para que conseguíssemos ter fé (pistis) e esperança (elpis) para nos voltarmos a Deus (1,21). Ele é a causa primeira da conversão: “Chamou esses cristãos das trevas (do paganismo) à sua luz maravilhosa para proclamar as excelências de Deus” (3,2).

 

3.2. Irmãos de Jesus, também no sofrimento por causa da justiça. Os familiares desta casa amam Jesus Cristo e nele creem (1,8). Ele é o irmão mais velho da casa, no qual todos são irmãos. É modelo de serviço aos homens prestado no meio de sofrimentos e da morte por eles: “Resgatados pelo sangue precioso de Cristo” (1,18s), ou seja, custou muito a Jesus Cristo nos salvar, ele teve de fazer atos heroicos para nos resgatar; essa expressão indica a seriedade do amor redentor, que busca um povo pobre e oprimido e o liberta por meio de empenho de si e grande sacrifício, resgatando-os da paroikia e do paganismo e trazendo-os à casa de irmãos. “Por ele, vós crestes em Deus, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a glória, de modo que vossa fé e vossa esperança se voltassem para Deus” (1,21). Merece especial menção o belo hino a Jesus Servo Sofredor, inspirado em Is 53(2,21-25). Essa forte insistência no sofrimento de Jesus, sofrimento inocente e desmerecido, pela justiça da causa de Deus em favor dos homens, responde à necessidade de dar ânimo aos cristãos que também estavam sofrendo pela justiça, por fazerem o bem como Jesus e seguirem o seu evangelho. Também eles devem defender a justiça da causa de Deus, o que Deus fez pelos homens, também eles devem sofrer pelos novos costumes aprendidos na casa de Deus e que salvam os homens do sofrimento da paroikia e das “trevas” (do paganismo), levando-os à “luz admirável” de Deus (2,9). Jesus é o irmão, servo de Deus e dos homens, modelo no meio do “grupo de irmãos” que é a “casa de Deus” (2,17: “Amai o ‘grupo de irmãos’, adelphotes”; 5,9: “… sabendo que o mesmo sofrimento atinge o vosso ‘grupo de irmãos’, adelphotes, que está no mundo”, a Igreja universal concebida como grupo de irmãos).

É sobre Jesus que somos construídos pelo Pai como casa de Deus (oikodomeisthe): na construção da casa de Deus, somos “pedras vivas” fundadas sobre a “Pedra Viva” que é Jesus. Somos servos sofredores como ele: pela justiça, para defender a graça, o “belo modo de viver” (anastrophe kale) e as “belas obras” (kalai ergai) que podem levar os pagãos a se converter e glorificar a Deus no dia de sua Visitação, quando esta graça os alcançar (2,12); sofredores para defender a graça de Deus vinda aos homens; sofredores por causa da “boa-consciência” (3,16), mantendo “o temor de Deus” (2,17), “por causa do Senhor” (2,13), para, como Jesus, dar testemunho quando for “preciso”, como um dia lhe foi “preciso” (cf. Mc 8,31). É preciso defender a “casa de Deus”, a “casa de irmãos”, que é a salvação de Deus na paroikia.

 

3.3. Essa casa de Deus é habitada pelo Espírito Santo, que faz dela uma “casa espiritual” (2,5), dando-lhe santidade (1,2) e predispondo-a para “um sacerdócio santo, a fim de oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo” (2,5). O Espírito é o selo de sua reserva para Cristo e para o Pai. O “Espírito de Cristo” já agira nos profetas e age agora no anúncio dos evangelizadores, que constrói a casa de Deus (1,11s).

 

4. Relações no interior da casa de Deus

A característica primordial da Igreja como a e “casa de Deus” é ser um “grupo de irmãos” (adelphotes) que está espalhado pelo mundo inteiro (5,9); as comunidades são “grupos de irmãos”. Elas são “coeleitas” (cf. 5,13). Sua meta é levar a graça (charis) da “casa de Deus” e do “grupo de irmãos” aos “sem-casa” (paroikoi) no mundo, aos desenraizados de suas antigas relações sociais e culturais por causa da migração e marginalizados pela sociedade. A noção de “grupo de irmãos” frisa o clima acolhedor, atraente e concretamente evangelizador da Igreja como a “casa de Deus”. Todos os membros dessa casa são “oikonomoi, ecônomos da multíplice graça de Deus”, que devem administrar-se reciprocamente no serviço da palavra e das várias formas de outros serviços (4,10-11). Vale destacar o v. 10:

“Todos vós, conforme o dom que cada um recebeu, sirvam-se uns aos outros, como bons oikonomoi — ecônomos, dispenseiros, organizadores — da multíplice graça de Deus” (4,10).

O modelo de suas relações internas não é a dominação, mas o exemplo deixado pelo irmão servo Jesus, que deu a vida pelos outros; o hino a Jesus servo sofredor em 2,21-25, baseado em Is 53, apresenta este modelo: Ele praticou o evangelho que pregou a justiça, isto é, o que Deus dispôs em prol dos homens, no meio de toda a sorte de resistências, não fraquejando, porque assim era “preciso”, e desta forma no-lo autenticou. Apesar das resistências, levou avante o seu programa de fazer muito pelos outros, tendo sido historicamente, para usar linguagem moderna, “o homem pelos outros”. Deste modelo de não dominação resultam a ideia da casa de Deus como “grupo de irmãos”, a ideia do poder-serviço, a ideia da humildade nas relações mútuas que perpassa toda a carta.

Também dentro desse modelo se concebem as relações dos presbíteros com as comunidades; que não sejam de dominação, mas de fraternidade responsável perante Deus:

“Aos presbíteros entre vós exorto… Apascentai o rebanho de Deus que está entre vós, vigiando-o, não por coação, mas de bom grado segundo Deus, nem por ganância torpe, mas por devoção, nem como senhores dos que vos foram concedidos por sorte, mas, antes, fazei-vos modelos do rebanho. E, quando aparecer o arquipastor, recebereis a coroa imarcescível da glória” (5,1-4).

Seus “presbíteros — anciãos (antiguidade na fé e experiência cristã) não sejam dominadores e aproveitadores. Apascentem e vigiem (episkopein) o rebanho de Deus, que não é seu, “segundo Deus”, perante o qual darão contas e, em caso de aprovação, receberão a coroa gloriosa. O próprio título de “arquipastor” — “chefe de pastores” — surge aí no contexto de “serviço”.

Uma vez que a característica primordial da casa de Deus é ser um grupo de irmãos, frisam-se muito as relações fraternas em seu seio. Cuide-se da coesão interna, pois é desta forma que a casa de Deus se manifestará como graça e evangelho para os sem-casa. Se o sal se tornar insosso…

“Unânimes, compassivos, cheios de amor fraternal, misericordiosos, humildes de sentimentos, não pagando o mal com o mal, nem injúria com injúria, nem maldição com maldição, mas abençoando” (3,8s).

“Amai o grupo de irmãos” (a adelphotes, a Igreja como comunidade de irmãos) (2,17: cf. 5,9).

“Antes de tudo, tende entre vós contínua caridade mútua, porque a caridade cobre uma multidão de pecados. Sede hospitaleiros uns para com os outros, sem murmurar” (4,8s).

Vem em seguida o trecho, citado acima, inserido também na moldura do serviço aos irmãos (4,10).

 

5. Relações externas da casa de Deus

A comunidade cristã de 1Pd é Igreja plantada no meio dos sem-casa, dos migrantes da colonização romana, que se destacou por intensas migrações internas, plantada no meio dos marginalizados e empobrecidos no seio da sociedade: uma Igreja de paroikoi, sem-casa, no meio de paroikoi, sem-casa. Quer conviver com seus companheiros pagãos de paroikia, apesar de estes a fazerem sofrer. É Igreja de rosto benévolo (2,17: “Honrai a todos”). Está inserida na sociedade, que lhe nega casa e direitos de cidadania plena, mas não lhe pertence quanto aos costumes (cf. 4,3s). Inserida na sociedade, deve exemplificar em seu seio a vida da “nova casa” de Deus e proclamar as excelências de Deus, atraindo mais por boas obras que por palavras (2,12; 3,1), sabendo dar razões da esperança que anima a quem lhas pedir (3,15), esperando a conversão dos seus companheiros da sociedade (2,12), e convidando a todos com o evangelho e com a boa-nova da “verdadeira graça de Deus” (5,12) presente na casa de Deus, uma casa do “grupo de irmãos” em diáspora (1,1) entre os povos.

1Pd concebe a Igreja relativamente fora da sociedade (quanto a costumes e comportamentos), mas dentro dela e por ela responsável por uma existência de testemunho e missão. Pela existência de testemunho, frui e mostra o aconchego da casa de Deus esperando a todos. Nela, brilha a luz de Deus no seio das trevas do paganismo e do desumano da situação de paroikia, situação não fraterna oposta à vontade de Deus e superada dentro da casa de Deus. Ela ostenta os costumes novos aprendidos na casa de Deus e nutre a esperança de transformar as relações inter-humanas criando um grupo universal de irmãos entre os homens. É lugar de aconchego e aceitação, lugar de experimentação de novos valores sociais, e lugar de resistência a tudo o que é desumano na paroikia, na existência desenraizada que a sociedade pagã impõe às pessoas.

É Igreja que sofre injustiças vindas de fora: maledicências, incompreensões, calúnias e injúrias, mas que deve sofrer “com boa consciência”, “por fazer o bem e não por fazer o mal” (3,16s). Que nenhum de seus membros sofra por ser “assassino, ladrão, malfeitor ou delator”, mas, “se sofrer por ser cristão, não se envergonhe, antes glorifique a Deus por este nome” (4,15s). A reflexão sobre esse sofrimento por causa do que é justo, por causa da graça vinda de Deus para os homens, abriu vias para especial veneração da paixão de Jesus, o servo sofredor em prol dos outros, como modelo inspirador de estímulo.

É Igreja que critica a sociedade. Embora recomende a sujeição às autoridades, chama-as de “instituição humana”, e a submissão se pauta pela medida em que cumprem o ofício de justiça que lhes cabem: castigo dos malfeitores e louvor dos que fazem o bem (2,13s). Com efeito, recebem honras à medida que merecem. No sumário lapidar em 2,17, o rei é posto na mesma moldura da honra devida a todos, distinguindo-a do temor devido somente a Deus: “Honrai a todos, amai o grupo de irmãos — os da casa de Deus — temei a Deus, honrai o rei” (2,17).

Na linha do testemunho, vale fazer o bem “para reduzir ao silêncio a ignorância dos insensatos” (2,15). O programa é “viver o resto dos dias na carne, não mais de acordo com as paixões humanas, mas segundo a vontade de Deus. Basta que no tempo passado tenhais realizado a vontade dos gentios, levando vida de dissoluções, cobiças, embriaguez, glutonarias, bebedeiras e idolatrias abomináveis. Agora estranham que não vos entregueis à mesma torrente de perdição, e vos cobrem de injúrias” (4,2-4). O comportamento deles por si próprio constitui admoestação e crítica: testemunho que pode provocar oposição; mas é preciso manter o “belo modo de viver” (anastrophe kale) e as “belas obras” (kalai ergai) que podem atrair os pagãos (2,12). E, não se conduzindo internamente pelo modelo de dominação, mas pelo modelo do serviço fraterno, critica a sociedade e suas autoridades. É elemento de resistência e contracultura. Ensaia em seu interior o que deve ocorrer no exterior. Aprendem na casa de Deus os costumes que devem imperar no seio da humanidade universal, pois que tudo é criatura de Deus sujeito a seu reinado, que traz salvação. Essa carta frisa mais o testemunho da vida como missionário do que a palavra.

 

 

III. APLICAÇÕES PARA A IGREJA HOJE

A Igreja como a “casa de Deus” constitui um “modelo” de Igreja que responde a uma situação concreta. Cada modelo de Igreja tem seu valor justo e limitado. Se seguido unilateralmente sem considerar outros, pode produzir contrafações do testemunho evangélico. Se o modelo da “Igreja-instituição” for usado isolada e prevalentemente, acusa defeitos con­cretos que se devem superar e que, felizmente, novos modelos vão superando.

As CEBs são Igrejas de rosto familiar, acolhedor, onde cada um é conhecido pelo nome e é bem-vindo calorosamente. É a “casa de Deus” onde cada um é importante e acha lugar como oikonomos dos vários dons de Deus “ao serviço uns dos outros” (4,10). As CEBs bem podem representar o modelo da “Igreja, casa de Deus”: reúne-se na casa de fulano e sicrano que como antigamente empresta sua casa para a reunião do “grupo de irmãos”; é composta de gente vinda paroikia, da existência na sociedade sem direitos de cidadãos plenos e amiúde desenraizados de suas culturas originais pela sociedade que os empobrece, pessoas vindas das trevas do novo paganismo dos capitalismos selvagens as quais passam a ver a Igreja pobre delas como nova casa de uma nova irmandade, novo povo de Deus, um lugar de experimentação e aprendizado dos costumes evangélicos e de resistência e luta contra os costumes da sociedade em que estão inseridos, que produzem empobrecidos e destituídos de direitos.

1Pd estimula a superar uma teologia de Igreja pautada preponderantemente pelo modelo da “instituição”, que pode se tornar fria por ausência de relações concretas humanas. Convida a colocar os pastores real e socialmente no seio do rebanho, que é o “rebanho de Deus” (5,2) e não deles, como responsabilidade do exemplo da fraternidade e da não dominação. Adverte que se construa e se pregue a Igreja como o evangelho ou boa-nova da casa de Deus para os que sofrem por causa das estruturas da sociedade; a verdade só chega a ser verdade cristã quando expressa o valor evangélico ou de boa-nova para os homens em sua realização e formulação. Em nosso caso, o evangelho realizado e pregado da casa de Deus para os sem-casa e aconchego no mundo. Relembra a preponderância do testemunho de vida sobre a palavra na missão.

Existe o perigo de a Igreja local não realizar este aspecto primordial sequer em seu próprio seio, e nela estarão também os cristãos em paroikia, fora de sua casa, sem direitos de cidadania plena e empobrecimento, sem lar, casa e família dentro da própria Igreja, e saudosos da “casa de Deus” que ainda não se terá realizado, nem se diga no coração do mundo, mas no coração da própria Igreja. Seria paradoxal!

Hoje, nas sociedades latino-americanas, onde o povo vive em imensa paroikia produzida pelas políticas nacionais e internacionais que causam ondas de migrações em busca de sobrevivência, faz-se mister achar a Igreja local realizada como acolhedora casa de Deus, onde todos se sintam em casa e promovidos como oikonomoi dos variados dons de Deus a serviço dos irmãos (4,10), como casa de um “grupo de irmãos” entre os homens empenhados em testemunhar com “o belo modo de viver” (2,12) a vocação universal dos homens para a fraternidade realizada em relações pessoais e estruturais concretas. A Igreja como casa de Deus, a casa de um “grupo de irmãos”, é o campo de experimentação antecipada desta vocação humana universal.

Terá 1Pd correspondido à meta que se propôs de “exortar e garantir que a verdadeira graça de Deus é esta em que estais estabelecidos”? Perfeitamente, pois traduziu o evangelho do Reino pregado por Jesus no evangelho da casa de Deus acolhedora dos empobrecidos pela sociedade pagã da época, casa onde estes são ricos da graça de Deus, que os estimula ao ensaio de virtudes sociais novas, de relações fraternas sem dominação, da colocação dos dons recebidos de Deus a serviço dos outros no seio de um “grupo de irmãos” que se empenha em antecipar a vocação de fraternidade do gênero humano. Concretizou-se o evangelho rumo a genuínos anseios humanos.

Terá 1Pd respondido aos dois riscos acima expostos? O primeiro deles era abjurar voltando ao paganismo por causa dos sofrimentos. A ele se respondeu assim: Olhando para o exemplo de Jesus servo e sofredor, aturar os sofrimentos, cuidando da coesão interna do grupo de irmãos e testemunhando com “o belo modo de viver” o atraente aconchego da casa de Deus. O segundo risco consistia em fechar-se em si. Respondeu-se com a ênfase na responsabilidade, gerada pela inevitável inserção no mundo e na sociedade, de proclamar as excelências de Deus, sua grande façanha de ter feito uma casa para os homens sem casa na sociedade que os despreza, chamando-os das “trevas” dos costumes da paroikia pagã à “luz admirável” de sua casa fraterna.

Pe. João Rezende Costa