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Publicado em número 145 - (pp. 2-7)

A fala de deus na voz da Igreja

Por Pe. Hermilo E. Pretto

I. O HOMEM E A COMUNICAÇÃO

A abordagem da temática da comunicação nos situa no âmago da realidade humana. Onde quer que o homem venha a se encontrar, não importa quais sejam as condições do seu viver, sua sobrevivência está ligada, de forma essencial, ao diálogo, à partilha, à comunicação, à comunhão. E para que isso seja possível, faz-se necessária uma base comum entre os interlocutores. Dentro dessa perspectiva, é interessante, em nível de antropologia, revelar o que nos diz o livro do Gênesis a respeito do homem e da mulher.

No relato atribuído à fonte sacerdotal, a base comum para a comunicação entre Deus e o homem está ligada ao fato de ter Deus criado o homem à sua imagem (Gn 1,27a). No relato atribuído à fonte já vista, Deus se propõe criar para o homem uma auxiliar que lhe corresponda (Gn 2,18). Ao confrontar-se com a criatura que lhe havia sido dada, o homem expressa satisfação pela proximidade com sua própria vida (Gn 2,23). Por outro lado, a inexistência de uma efetiva semelhança entre o homem e a restante realidade criada fecha o espaço para uma relação de iguais: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra” (Gn 1,28).

 

1. Comunicação: um caminho de liberdade

Se é verdade que os conflitos da história envolvem, com frequência, interesses econômicos, verdade é também que, na inspiração dos conflitos, encontramos sempre um anseio de liberdade. E como estamos diante de uma característica essencial do ser-homem, os projetos e iniciativas deverão ser avaliados pela capacidade que têm, ou deixam de ter, no sentido de assegurar uma liberdade conveniente. Os interesses, que se expressam de forma conflitiva, evidentemente ultrapassam as fronteiras da realidade econômica.

Há um desafio constante para o homem: como realizar em plenitude o seu ser-pessoa. A primeira resposta, que desencadeia também a atitude mais frequente, é a busca frenética do próprio espaço, mesmo às custas dos espaços alheios. Aparentemente, tudo leva a crer que o caminho seja esse mesmo: de seu bom êxito dependeriam a liberdade e a felicidade. Não é possível, no entanto, construir um projeto de liberdade sobre os escombros de liberdades destruídas. Seguindo por esse caminho, a perspectiva é o fracasso. Essa é a razão pela qual tais projetos geram as mais variadas formas de escravidão e dependência. Temos aí a tentativa de estabelecer uma forma de comunicação assentada sobre realidades que se supõe serem desiguais.

Quando levantamos o problema da comunicação, entendemos que ela deva ser, acima de tudo, um caminho de liberdade. Há um canto de nossas celebrações que bem expressa essa perspectiva: “palavra não foi feita para dividir ninguém; palavra é a ponte onde o amor vai e vem”. Sempre que se ignora a base comum entre os interlocutores, explicita-se uma linguagem de dominação.

 

2. Complementaridade e mútua dependência

A preocupação de embasar a comunicação no interior da antropologia coloca-nos numa linha que nos permite superar a mera funcionalidade. Não se trata, apenas, de construir canais que permitam ou facilitem o fluxo entre as partes. Essa é sua dimensão menos significativa. O pressuposto básico, que é também sua meta, é uma comunhão profunda. Sem essa sintonia, a fidelidade fica seriamente ameaçada. Só podemos falar de alguém, ou em seu nome, na medida em que ele, de alguma forma, integra nosso mundo. O primeiro passo, por conseguinte, com vistas a um nível razoável de comunicação, é a descoberta de uma base comum que simplifique as mediações e propicie um intercâmbio satisfatório.

A ambiguidade da condição humana não consente, na história, um diálogo inteiramente fiel. Entretanto, no limite das possibilidades, é somente através da experiência do amor e da amizade que a comunicação se torna verdadeira. Quando, pela violência, nos apropriamos de alguém, ou de sua mensagem o resultado inevitável é uma vasta rede de canais de dominação. Isso significa que a avaliação do que é comunicado não se faz exclusivamente através da análise de seu conteúdo. É preciso desvendar as fontes da comunicação. O brilho expressivo pode ser um engodo que esconde uma apropriação arbitrária. Isso porque a posse não significa necessariamente um direito de propriedade. Dependendo das relações existentes, ela pode ser fruto da usurpação.

O diálogo, no interior da humanidade, parte também do pressuposto de que a pessoa humana não é um absoluto pessoal, no sentido de que encontre em si mesma uma plenitude de ser. A limitação essencial leva à descoberta da complementaridade e, por conseguinte, da mútua dependência. A comunicação aqui responde ao problema elementar da sobrevivência. É impossível realizar o ser-pessoa, ignorando a alteridade pessoal. A pessoa humana é um absoluto relativo: ela é fim em si mesma e em si mesma limitada.

 

3. Objetivo da comunicação: a comunhão

Dizíamos mais acima que em todo conflito se faz presente um anseio de liberdade, que pode assumir formas exasperadas de autoafirmação exclusiva. Pressupondo a complementaridade e a mútua dependência entre os seres humanos, a comunicação não pode ter outro objetivo senão a comunhão, em sua acepção mais ampla e mais profunda. Essa é a razão pela qual não é suficiente questionar a existência ou inexistência da comunicação. É preciso questionar também, e acima de tudo, as condições de seu exercício e o objetivo que persegue. Uma comunicação que provocasse divisões injustas ou consolidasse relações de poder, perderia, por isso mesmo, sua razão de ser.

Isso nos confirma que a responsabilidade de quem comunica leva-o para o terreno de um efetivo compromisso com a comunhão entre as pessoas. Seria ingênuo imaginar uma comunicação não comprometida. Por outro lado, pode-se questionar se a comunicação deva sofrer alguma forma de restrição. Se o direito pessoal nunca é absoluto, em função da complementaridade e mútua dependência entre as pessoas, a veiculação de um conteúdo não pode ser irrestrita. Se, no fundo de tudo, é a busca da verdade e de sua expressão a serviço da vida, que está na origem da comunicação, ninguém pode supor-se dono da verdade até o ponto de exigir adesão incondicional de seus interlocutores.

Evidentemente, não podemos pecar por ingenuidade supondo que a comunhão que se busca seja unívoca, uniforme, de tal forma que tudo se apresente de maneira clara e distinta. Esse ideal racional é, na pratica, inócuo, porque ignora a ambiguidade da condição humana. Quem supõe estar comunicando a verdade sem restrições, esquece que é sua versão de verdade que está sendo veiculada. Constitui temeridade confundir, sem mais, a realidade com sua interpretação. Esta confusão está na origem das mais variadas formas de opressão, arbitrariedade e fanatismo. O comunicador deve saber-se limitado na captação da verdade e vocacionado a criar comunhão entre as pessoas. Ignorando essas condições elementares, a comunicação perde, por isso mesmo, sua razão de ser.

 

II. A COMUNICAÇÃO A PARTIR DA INICIATIVA DE DEUS

Nossa preocupação até aqui tem sido a de captar a comunicação em seu embasamento antropológico: ela tem sua justificativa na dimensão dialogal da pessoa humana. Agora, quando nos confrontamos com a experiência bíblica, o que se nos apresenta como proposta e desafio é a comunicação que parte de uma iniciativa de Deus.

Não é possível ignorar que aqui estamos diante de uma situação original. Há uma base comum, mas há também uma profunda dessemelhança. A comunicação acontece entre um ser superior, que é também a origem do próprio homem, e um ser limitado, imerso na ambiguidade da existência. Além do mais, se é verdade que a comunicação entre os homens sempre traz a marca de interesses nem sempre camuflados, a comunicação que tem em Deus sua iniciativa caracteriza-se por absoluta gratuidade. Mas justamente aquilo que Deus comunica gratuitamente pode ser arbitrariamente apropriado pelo homem.

 

1. Um diálogo

O contato com a experiência bíblica nos mostra o desenrolar, através de etapas sucessivas, de um diálogo amoroso entre Deus e um povo minúsculo e insignificante. Sob esse prisma, surpreende-nos esse fato paradoxal: a pequenez e a insignificância não se constituem em empecilho com vistas a uma experiência profunda de significação. Encontramos, na verdade, justamente aí, uma das características marcantes desse diálogo original. Desdenhando a pomposidade das criações humanas, com frequência expressões de ambições desmedidas, o Deus bíblico privilegia a simplicidade, a pobreza, o despojamento, quando decide entrar em diálogo com os homens.

Temos aí a dinâmica que faz do pobre um protagonista e uma força realmente capaz de transformar a história. É o diálogo da misericórdia e da compaixão. A linguagem que o perpassa não pode ser compreendida apenas a partir de sua expressão verbal. Esta, com frequência, trai a significação profunda que deve expressar. Dito em outras palavras, para captar a linguagem de Deus, expressa no diálogo que ele inaugura, faz-se necessária uma comunhão profunda com o pobre.

Que não estejamos diante de uma perspectiva exclusivamente veterotestamentária, testemunha-nos a plenitude do diálogo que acontece em Jesus de Nazaré: em seu operar e em seu Mistério Pascal. Como nos lembra a carta aos Filipenses, o Filho assumiu a condição de servo (Fl 2,7). Ele é a própria Palavra feita carne conforme testemunha, em profunda meditação, o prólogo de João.

Em Jesus, Deus leva à plenitude um diálogo cujas características são inseparáveis de uma opção definida e radical pelos espoliados da história. Não se trata de santificar a pobreza, que é um mal, mas ouvir-lhe o clamor de justiça. Temos aí uma primeira conclusão para o sentido desta reflexão: a fala de Deus continua na voz da Igreja na medida em que esta assume o compromisso de Deus pela dignidade do pobre.

 

2. Uma proposta

Outro dado importante, na perspectiva que nos ocupa nesta reflexão, é o fato de que Deus não se limita a inaugurar um diálogo com o homem. Ele, na verdade, faz uma proposta e apresenta um projeto: reconciliar a humanidade, restaurando a justiça. Evidencia-se, a partir daí, a dimensão essencialmente práxica da fala de Deus. Para o homem, não se trata de aderir a um conjunto de informações, transformadas em artigos de um credo original. Muito embora esse aspecto não esteja ausente, exige-se adesão a um projeto que envolve compromisso, através de uma vasta gama de mediações. São os acontecimentos da história, frutos da responsabilidade do homem, que viabilizam a proposta de Deus. Esse aspecto, já evidenciado no Velho Testamento, assume características inteiramente novas a partir da prática de Jesus. Ele é a verdade que Deus comunica aos homens, não apenas pelas palavras que profere, mas ainda mais pela práxis que desencadeia. Compreende-se, então, como o critério de fidelidade assuma as características de uma práxis de vida nova.

Nunca é demais enfatizar que o crer e o realizar o que se crê não são posturas alternativas. Afinal, há um conteúdo de verdade que postula uma profissão explícita. Mas o que é realmente decisivo é a práxis, através de múltiplas mediações. É por ela que se viabiliza historicamente o Reino. Importantes são também os critérios dessa prática. A presença eficaz da Graça afasta a perspectiva de uma eficiência produtiva, baseada no equilíbrio entre os efeitos produzidos e as causas que os produzem. A ação da Graça opera o milagre da desproporção: aí justamente reside a fundamentação teológica da força histórica dos pobres. A voz da Igreja, para ser fiel à fala de Deus, precisa assegurar fidelidade à dinâmica da Graça.

 

3. Uma aliança

A leitura que Israel faz, à luz da fé, de sua experiência histórica, permite-lhe descobrir a proximidade de Deus, que assume o compromisso de zelar por seu futuro. Por trás de acontecimentos inteiramente normais, evidencia-se uma presença de salvação, que se manifesta pela mediação das libertações históricas. Dentro dessa perspectiva, é interessante a revelação do nome Iahweh.

Quando Moisés, visando assegurar credibilidade ao processo que lhe caberia desencadear, pede a Deus que revele a identidade de seu nome, a resposta, mais que uma comunicação da realidade de Deus, expressa um compromisso de estar ao lado do povo, assumindo inteiramente sua causa. Algumas traduções utilizam a expressão “eu sou aquele que sou”, ou então “eu sou aquele que é”, deixando transparecer uma preocupação de ordem metafísica, no sentido de captar a essência de Deus. Tal preocupação não era característica dos hebreus, e sim dos gregos. Mais semita parece a tradução da TOB: “Eu sou aquele que será”; isto é, eu assumo o compromisso de estar com vocês na busca da liberdade.

Essa consciência da proximidade de Deus levou o povo a compreender que, na verdade, ele havia estabelecido uma aliança: “Vós mesmos vistes o que eu fiz aos egípcios, e como vos carreguei sobre asas de águia e vos trouxe a mim. Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é “minha” (Ex 19,5). A comunicação de Deus, como se pode facilmente perceber, assume a forma de um compromisso de compaixão e solidariedade. Está bem longe disso a impassividade dos deuses gregos! A fala de Deus só pode passar para a voz da Igreja à medida que esta se revela capaz de aliança com o povo em vista de uma plenitude de vida. Isso implica em que ela seja capaz de compreender-se como comunidade-serviço e não como uma instituição fechada em si mesma. Deus fala como alguém voltado para fora de si, em busca de um projeto de liberdade, que se expressa em termos de aliança.

A isso se pode acrescentar que a aliança que Deus estabelece com seu povo traz no bojo uma inquietação permanente. Não se trata de aderir a um projeto já realizado, ou então de operar, no culto, retornos periódicos às origens. A concepção de história que está no substrato da aliança é a de um processo irreversível, na perspectiva de uma consumação final. A fala de Deus continua na voz da Igreja se, resistindo à tentação da vida sedentária, ela se revela capaz de viver em permanente situação de êxodo.

 

III. A COMUNICAÇÃO NA VOZ DA IGREJA

Adentramos aqui no terceiro momento de nossa reflexão. A comunicação, que é um caminho de liberdade e leva à comunhão, enraizando-se na profundidade do humano, a partir de Deus se expressa como diálogo, avança uma proposta e estabelece uma aliança. Tanto em seu embasamento antropológico como em sua dimensão teológica, a comunicação, para ser verdadeira, exige compromisso com a vida, na plenitude de suas dimensões. Voltando-se parco homem e herdando a mensagem de Deus, a Igreja não pode deixar de levantar com toda seriedade a questão da fidelidade. A razão que a justifica é uma mensagem que lhe é confiada. Não lhe cabe, por conseguinte, uma postura de proprietária dessa mensagem. Compete-lhe, bem ao contrário, realizar, em todos os termos, a configuração de uma comunidade-serviço.

 

 

1. Uma missão

A mensagem neotestamentária é muito clara a respeito da realidade da Igreja. Ela se constitui como a comunidade dos seguidores de Jesus Cristo, herdeira do Mistério Pascal, reunida na celebração da Palavra e da Eucaristia e comprometida, no conjunto de suas práticas, com a plenitude da vida. Seu fundamento é o próprio Jesus Cristo, que a envia em missão. Esse fato nos leva a algumas consequências que nos parecem importantes na perspectiva de nossa abordagem.

A realidade histórica de Jesus de Nazaré, e sua constituição no Cristo de Deus pelo poder da Ressurreição dos mortos, são o ponto de referência com o qual a Igreja deve se confrontar constantemente. Ora, a realidade integral de Jesus Cristo, mesmo na sua significação de absoluta novidade, insere-se na perspectiva de toda a mensagem bíblica. Esta, como temos visto acima, é portadora de uma inquietação que provoca o homem até o ponto de colocá-lo em situação permanente de crise. Não tem inspiração bíblica, por conseguinte, uma comunicação que desembocasse na defesa intransigente da estabilidade e da conservação.

Não podemos, evidentemente, presumir uma Igreja isenta de ambiguidades. De alguma forma, ela estará sempre envolvida em interesses conflitivos. Constituída por seres humanos, ela não tem como evitar a experiência da infidelidade. Em sua voz repercute o eco do orgulho e da vaidade, da ambição e do poder opressor. Mas a grande tentação será sempre aquela de confundir, sem mais, a mensagem que ela comunica com a própria fala de Deus. Seu testemunho não goza dos atributos daquele que ela é chamada a testemunhar. A fala de Deus é desestabilizadora, gerando no homem uma inquietação permanente. A voz da Igreja, com muita frequência, traz o eco da imobilidade e da resistência a toda forma de mudança mais profunda.

Na perspectiva de um serviço incondicional à vida, a fala de Deus abre espaço no grito do homem oprimido, do pobre espoliado, e é um incessante clamor de justiça. A pregação profética é veemente na condenação das práticas injustas que geram pobreza e marginalização. A prática de Jesus é, toda ela, uma defesa do pobre, do espoliado. Este, tido como último pela sociedade, é transformado em protagonista.

Seria injusto, evidentemente, um julgamento impiedoso da Igreja como se ela fosse uma comunidade substancialmente infiel. Tal postura estaria eivada de espírito maniqueu. Assim mesmo, é importante não esquecer que a mensagem captada assume a medida do homem, razão por que seu anúncio não pode reivindicar as características do absoluto. De todo modo, a defasagem entre a realidade original e sua expressão histórica deve gerar uma atitude de serviço humilde. A inquietação e, a partir daí, a busca, devem representar um movimento incessante. É perniciosa, para uma instituição histórica, a consciência de um caminho já percorrido.

 

2. O discurso das essências e a linguagem da história

Ao analisar a auto compreensão da Igreja, surpreende-nos a constatação de uma linguagem que em muito se distancia das formas semitas de expressão. A linguagem semita, que traduz uma certa maneira de compreender a realidade, caracteriza-se pela consciência da mobilidade e do processo. A característica de fundo de sua concepção da história não é o eterno retorno, mas a abertura incessante para o novo da história. Sua preocupação não é a de desvendar a essência das coisas, mas a de explicitar seu momento de graça. Sua compreensão de Deus é a de uma divindade inserida no devir e cuja imagem assume as características originais da experiência humana. O movimento, a caminhada, o processo são elementos positivos, pois propiciam a emergência do autenticamente novo. Deus não é aquele que realizou a perfeição das origens, mas aquele que promete, para os tempos futuros, um novo céu e uma nova terra. A estagnação, que bloqueia o processo histórico, é um evidente sinal de decadência. A perfeição é promessa e não saudade.

A linguagem da Igreja, de inspiração prevalentemente grega, caracteriza-se por uma preocupação no sentido de desvendar a essência das coisas. A transformação, a mudança, o processo são indícios evidentes de imperfeição. A plenitude não é aguardada para o futuro, mas é um acontecimento do passado. Deus é aquele que é, e não aquele que será. A própria Igreja não pode ficar à mercê das transformações históricas. Supõe-se, por vezes, que tudo o que tem alguns séculos seja eterno. É fácil de compreender, a partir daí, a razão pela qual dificilmente encontramos a Igreja envolvida em processos revolucionários. Ela anda geralmente a reboque da história, e privilegia alianças que mantenham inalterada a situação. Não é possível compreender de outra forma seu apoio a sistemas opressores que lhe asseguram, em contrapartida, estabilidade e uma vasta gama de privilégios.

A conclusão inevitável que daí tiramos é a de que a fala de Deus com frequência se bloqueia na voz da Igreja. O Deus bíblico, compreendido como a absoluta novidade, situa o homem num processo de crise permanente. Sua palavra realmente desmonta as tentativas do homem de apropriar-se da história, submetendo-a a seus interesses. A linguagem da provisoriedade entra em choque com o discurso das essências imutáveis.

O trágico em tudo isso é a pretensão da Igreja de que a palavra que profere seja, sem mais, a própria palavra de Deus. E quando, em nome desta perversa identificação, são desencadeados processos inquisitoriais, o Deus bíblico, criador de novos céus e novas terras, perde seu espaço. Não se pode ignorar que o projeto de Deus é um caminho de liberdade e que esta se constrói num processo crônico de mudança. Não há liberdade e, por conseguinte, plenitude de vida, sem a emergência do autenticamente novo.

 

Conclusão

Constatamos hoje, particularmente em nível de América Latina, o despertar do espírito profético. Uma parcela significativa da Igreja redescobriu, na experiência profunda da fé, que a fala de Deus vem para trazer inquietação e proclamar a dignidade dos empobrecidos da História. Ela se constitui numa interpelação exigente no sentido de levar os homens a desencadear forças históricas capazes de criar uma sociedade de partilha. Para ser-lhe fiel, a voz da Igreja deve ser expressão de um compromisso com a liberdade. Nesse sentido, cabe-lhe organizar-se como uma comunidade aberta, capaz, inclusive, de pagar o preço das próprias opções, sem complexo de vítima ou de perseguição. Seria temerário imaginar que toda crítica que a ela se faz seja decorrência de seu compromisso com o projeto de Deus. O martírio, afinal, é um extraordinário momento de graça, a ser acolhido com temor e tremor, e não um troféu a ser exposto nas praças e alardeado nos comícios.

 

Pe. Hermilo E. Pretto