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Publicado em janeiro-fevereiro de 2015 - ano 56 - número 301

O que afirmamos quando dizemos “creio na Igreja”

Por Jean Poul Hansen

Muito comumente não prestamos a devida atenção naquilo que rezamos de maneira quase mecânica na liturgia e na vida, de modo que não sabemos, muitas vezes, o que afirmamos quando dizemos certas coisas. O presente artigo quer ser uma ajuda para tomarmos consciência do que afirmamos e do que não afirmamos ao dizer “creio na Igreja”, partindo das ocorrências bíblicas até chegarmos à fórmula de fé do Credo que rezamos.

A Igreja – povo de Deus peregrino no tempo – não nasce de uma convergência de interesses humanos ou do impulso de algum coração generoso, mas é dom do alto, fruto da iniciativa divina. Pensada desde sempre no desígnio do Pai, ela foi preparada por ele na história da aliança com Israel, para que, completados os tempos, fosse instituída graças à missão do Filho e à efusão do Espírito Santo (FORTE, 2012, p. 16).

1. Ocorrências bíblicas

O termo grego “εκκλησία”, do qual deriva o termo latino “ecclesia”, donde provém “igreja”, traduz sempre a expressão hebraica “kahal”, usada no AT para designar Israel, desde que ele se torna o “povo de Deus”, por meio da Aliança do Sinai. No célebre texto de Dt 23,1-9, essa expressão vem sempre acompanhada do determinativo “do Senhor” e é traduzida como “igreja” ou “assembleia do Senhor” (PIÉ-NINOT, 1998, p. 27).

No NT, a frequência do termo “igreja” se torna progressiva. Nos evangelhos sinóticos só o encontramos em Mt 16,18 (“Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”) e 18,17 (“Se ele não vos der ouvidos, dize-o à Igreja. Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um publicano”). Contudo, aparece outras 144 vezes no restante do NT, das quais 28 estão nos Atos dos Apóstolos, onde é usado tanto para designar as comunidades locais (cf. At 15,41) como para designar um âmbito mais amplo (cf. At 5,11; 9,31). Não podemos esquecer aqui as descrições que os Atos dos Apóstolos fazem da Igreja nascente em At 2,42-47 e At 4,32-35.

Quando Paulo procura caracterizar o fundamento e a forma dessa comunhão de fé que é a Igreja, ele fala de “estar em Cristo” (1Cor 3,1; Gl 3,28; 2Cor 5,17) ou ser “corpo de Cristo” (Ef 1,22s; 4,7-16; 5,21-33; Cl 1,18; 2,19), sem abandonar expressões que correspondam ao “povo de Deus” (Rm 9,7s.25s; Gl 6,16), dentre as quais utiliza “Igreja de Deus” (1Cor 15,9; Gl 1,13; 1Cor 10,32; 11,22; 14), numa linha de continuidade com o “povo de Deus” do AT. Para Paulo, falar da Igreja significa necessariamente falar do Espírito de Cristo e seus efeitos; por isso, para ele, a Igreja é também templo do Espírito Santo (Rm 8,9s; 1Cor 2,10s; 3,16s; 6,19; 12,1; 2Cor 3; Ef 2,19s) no qual se cumprem as promessas do AT (2Cor 6,16).

Outra imagem da Igreja é a “casa de Deus” edificada sobre o fundamento dos apóstolos, típica das cartas pastorais (1Tm, 2Tm e Tt). A casa de Deus é a Igreja tanto local como universal (SCHNEIDER, 2002, p. 66-68).

O Concílio Vaticano II retoma todas essas imagens bíblicas para elaborar sua eclesiologia de comunhão, de cunho sacramental, que tem como ponto de partida e de chegada a Santíssima Trindade. Por isso ele fala de povo de Deus, corpo de Cristo, templo do Espírito e, como tal, sacramento universal de salvação. Não é sem razão que abre a sua constituição dogmática sobre a Igreja com a expressão “Cristo é a luz dos povos”, demonstrando a dependência da Igreja em relação a Cristo, como a Lua em relação ao Sol.

A mesma palavra igreja, podemos entendê-la segundo duas etimologias possíveis. A Igreja é tanto a convocação quanto a congregação ou reunião dos fiéis; quer dizer, a Igreja pode considerar-se ora como a que chama, convoca todas as pessoas e as congrega em vista da sua salvação, ora como a congregação dessas mesmas pessoas que chegaram à fé. Ao mesmo tempo, podemos conceber a Igreja como o lugar, a casa que reúne e abriga o povo fiel, ou esse mesmo povo reunido na casa. Os dois sentidos são correlativos e complementares (DE LUBAC, 1970, p. 180-181).

2. A Igreja no Credo

A presença da Igreja na profissão de fé remonta ao Credo Batismal Romano, de finais do século II, seguindo imediatamente a profissão de fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo. É de lá que o toma o Símbolo dos Apóstolos. Essa ampliação da confissão estritamente trinitária ocorre, em todos os credos primitivos, dentro do artigo sobre o Espírito Santo, apesar de não aparecer nem nas fórmulas embrionárias do NT nem nos textos dos padres apostólicos (URÍBARRI, 2013, p. 117).

  • Igreja: lugar da profissão de fé

Porém, a forma específica “creio no Espírito Santo, na santa Igreja católica”, encontramo-la na tradição apostólica de santo Hipólito de Roma, na qual se propõe um credo interrogativo que formula a terceira pergunta nestes termos: “Crês ‘em’ (είς) o Espírito Santo, ‘em’ (εν) ‘a’ santa Igreja e a ressurreição da carne?”

Como percebemos, a formulação de santo Hipólito utiliza duas preposições distintas, em grego. Utiliza “είς” para o Espírito Santo e “εν” para a Igreja. Esta última expressa um sentido claramente locativo. A tradução mais correta seria: “Crês no Espírito Santo dentro da Igreja?” (URÍBARRI, 2013, p. 118). Essa distinção quer pôr em relevo que a Igreja não é Deus, ou seja, que o ato de fé, de entrega absoluta, de abandono radical da própria existência, só pode ser feito a Deus. Nós não cremos, nem podemos crer em nada além de Deus Pai, Filho e Espírito Santo (URÍBARRI, 2013, p. 120). São Bruno de Würzburg (1005-1045), bispo na Alemanha durante a Idade Média, expressa isso de maneira exata: “Creio dentro da santa Igreja, mas não creio nela porque não é Deus, mas convocação e congregação dos cristãos e casa de Deus”.[1]

  • Igreja: realidade de fé

Ao explicar essa distinção, o Catecismo Romano (1,10,20) precisava: “existem realidades que não são Deus, mas que só se compreendem ‘com os olhos da fé’”. E a Igreja é uma delas, visto que não podemos separá-la do Espírito Santo, de quem recebe o seu qualificativo, a santidade, e que nela opera suas outras obras: a comunhão dos santos e a remissão dos pecados. E o Catecismo da Igreja Católica (n. 770) explicita: “A Igreja está na história, mas ao mesmo tempo a transcende. É unicamente ‘com os olhos da fé’ que se pode enxergar, na sua realidade visível, ao mesmo tempo uma realidade espiritual, portadora de vida divina”.

Como explica o padre Henri de Lubac: “A Igreja é aqui não tanto um artigo de fé particular, mas o lugar onde – todos eles – são pronunciados, o lugar no qual encontramos não só o seu enunciado, mas também a realidade enunciada por eles” (DE LUBAC, 1970, p. 215-216). Ou são Rufino de Aquileia: “Assim, pois, os que até então aprenderam a crer em um só Deus, no mistério da Trindade, devem crer ainda o seguinte: que existe uma só Igreja santa, na qual há uma só fé e um só batismo, e na qual se crê em um só Deus Pai, e um só Senhor Jesus Cristo, seu Filho, e um só Espírito Santo” (DE LUBAC, 1970, p. 217).

Santo Alberto Magno afirma que “o Espírito Santo é dado e enviado para santificar a criatura, e essa santidade, que pode faltar nos indivíduos, não falta nunca na Igreja […] Há que se entender que este artigo designa a obra do Espírito Santo. Este não é considerado já somente em si mesmo, como no artigo anterior, mas agora eu creio nele segundo sua obra própria, que consiste em santificar a Igreja por meio dos sacramentos, das virtudes e dos dons etc.” (DE LUBAC, 1970, p. 220).

Contudo, não basta que percebamos que o lugar da Igreja na profissão de fé depende do Espírito Santo e que seja ele quem introduz a Igreja no coração trinitário do mistério cristão. Precisamos entender que o Espírito Santo é em si mesmo comunhão, comunhão do Pai e do Filho. Essa definição se projeta sobre a Igreja, de modo que a comunhão – que define o Deus trinitário desde sua essência – define também a essência do ser eclesial, como dom do mesmo Espírito.

Portanto, a definição do Espírito como comunhão tem fundamental sentido eclesiológico: “Ser cristão significa ser comunhão e, com ela, entrar na forma essencial do Espírito Santo. Isso, contudo, só pode ocorrer graças ao Espírito Santo, que é força de comunicação, seu mediador e possibilitador” (COMISIÓN FE Y CONSTITUCIÓN, 1994, p. 43). Por isso, o Documento de Aparecida afirma: “Não pode existir vida cristã fora da comunidade” (n. 278).

  • Igreja: sujeito da fé

Estamos falando de fé. Dizemos: “Creio em Deus”. Porém, essa fé, em sua plenitude, onde se encontra? Essa fórmula, onde se acha realizada em sua perfeição? Evidentemente, não é em mim, em meu ser individual. Não se encontra em nenhum dos meus irmãos. E seria farisaísmo odioso, em nome da ideia que eu formei – demasiado facilmente – da fé, exigi-la a algum deles. Quem é, pois, esse “eu” que pode afirmar sempre com segurança humilde, porém plena: “Eu creio em Deus, eu creio em Jesus Cristo”? Quem é esse ser que, com o impulso da sua fé, sem queda, sem ilusão enganosa, sem reservas, une-se a Cristo como a esposa se une ao seu esposo? Quem é, precisamente, essa Esposa que o Verbo de Deus escolheu para si e à qual se uniu, encarnando-se em carne mortal, e que ele “adquiriu para si por seu sangue”? Esse eu que crê em Jesus Cristo não pode ser outro senão a Igreja de Jesus Cristo. Não uma ideia criada por nós, que estaria por cima de nós, num céu irreal. Mas a comunidade mesma dos fiéis, criada pelo poder da Palavra, animada pelo Espírito de Cristo e na qual cada um de nós é participante, ainda que não contribua para formá-la (DE LUBAC, 1970, p. 193-194).

Assim, cada um de nós encontra-se simultaneamente “chamado à humildade” – ao reconhecimento de que sua fé individual é sempre débil, raquítica e deficiente com respeito à fé da Igreja – e livre dessa estreiteza, ao saber que, apesar de tudo, participa da realidade plena dessa fé.

Aqui surge o que Henri de Lubac chamou “o círculo perfeito do Credo”: a fé que confessamos é una em razão da unidade do seu objeto, um só Deus; mas também em razão da unidade do sujeito: a Igreja. Se a fé trinitária é comunhão, crer trinitariamente significará necessariamente crer a caminho da plena comunhão (URÍBARRI, 2013, p. 122-123).

Karl Barth afirma que “para Jesus Cristo não há primeiro crentes e depois, formada por eles, a Igreja. Primeiro existe a Igreja. Depois, por ela e nela, os crentes. E por Igreja não se deve entender unicamente a reunião interior e invisível de quem Deus, em Jesus Cristo, chama seus, mas também a reunião exterior e visível de quem, no tempo, escutou e confessou o que ouviu. A fé de que é objeto Jesus Cristo é a fé da comunidade. Um homem, por si só, sem seu semelhante, não seria um homem; da mesma maneira, um cristão por si só, separado da comunhão dos santos, não seria um cristão. Precisamente como membro do corpo inteiro é que ele se acha em relação com a cabeça que o governa” (DE LUBAC, 1970, p. 187).

  • Igreja: instrumento da salvação

Um costume africano, testemunhado por santo Agostinho de Hipona – no século V –, utiliza a preposição “per” (por meio de) antes do termo Igreja e o desloca para depois da “remissão dos pecados” e da “ressurreição da carne”, matizando assim uma função mediadora da Igreja na salvação da humanidade, expressa por essas duas obras do Espírito que seriam realizadas “por meio da Igreja”.

São Rufino de Aquileia afirma: “É preciso confessar a Igreja verdadeiramente santa, a Igreja por meio da qual se dá a santificação aos mortais”. E Henri de Lubac comenta: “Este ‘por meio da qual’ (per) indica a passagem […] da santidade do Espírito aos homens através da realidade da Igreja, segundo o que a considera como instrumento do Espírito santificador entre os homens e a contempla em seus membros santificados” (DE LUBAC, 1970, p. 230).

3. As marcas da Igreja

Esta é a única Igreja de Cristo que no símbolo confessamos “una, santa, católica e apostólica”. Esses quatro atributos, inseparavelmente ligados entre si, indicam traços essenciais da Igreja e da sua missão. A Igreja não os tem de si mesma; é Cristo que, pelo Espírito Santo, dá à sua Igreja o ser una, santa, católica e apostólica, e é também ele que a convida a realizar cada uma dessas qualidades (CIC 811).

A Igreja é UNA por sua fonte, a Trindade; por seu fundador, Jesus Cristo; por sua alma, o Espírito Santo. E essa unidade existe na diversidade de dons e carismas, de povos e culturas, de funções e modos de vida e de legítimas tradições próprias, mantida pelos vínculos da profissão da mesma fé apostólica, celebração do mesmo culto (sacramentos) e pela sucessão apostólica (cf. CIC 815). Essa Igreja una subsiste na (“subsistit in”) Igreja católica (LG 8), sem a possibilidade de ser perdida (cf. CIC 820). Rupturas (heresia, apostasia e cisma) acontecem graças aos pecados das pessoas que a compõem.

A Igreja é SANTA porque Cristo, o santo, a santificou, entregando-se por ela para torná-la sua esposa “sem ruga e sem mancha, resplandecente de beleza” (Ef 5,25-27). É o povo santo de Deus. Santo porque é de Deus. Sua santidade não é sua, mas dom do Espírito, que é sua alma e a santifica. Na terra, ela está ornada de verdadeira santidade, porém ainda imperfeita. É santa mesmo congregando pecadores já alcançados pela salvação de Cristo, mas ainda em via de santificação. Por isso, santa e sempre necessitada de conversão.

“A Igreja é CATÓLICA, ou seja, “universal, conforme a totalidade”, porque nela está o “Cristo todo”, cabeça e corpo, e porque foi enviada por Cristo à totalidade do gênero humano (Mt 28,19), para convocá-lo e congregá-lo num só povo de Deus” e de Cristo recebe a plenitude dos meios da salvação (AG 6). A Igreja é católica em cada Igreja particular, pois “é nelas e a partir delas que existe a Igreja católica una e única” (LG 23). Estas são católicas pela comunhão com uma delas: a Igreja de Roma.

A Igreja é APOSTÓLICA enquanto continua sendo construída sobre o fundamento dos apóstolos (Ef 2,20; At 21,14); enquanto conserva e transmite os ensinamentos ouvidos dos apóstolos (2Tm 1,13-14); enquanto continua a ser ensinada, santificada e governada pelo colégio apostólico em união com o sucessor de Pedro.

“Só a fé pode reconhecer que a Igreja tem essas propriedades da sua fonte divina” (CIC 812).

Por fim, recorrendo ao testemunho dos santos padres, podemos afirmar: ela é a que confessa a Trindade. Ela é a que louva e dá graças. Ela é a que espera e aguarda a volta do seu Senhor (são Gregório). Ela é a que dele dá testemunho com uma fé sem desfalecimento, frutificando no mundo inteiro (santo Irineu). Ela é a que, adiantando-se na fé, ora e trabalha, buscando em tudo o cumprimento da vontade divina (LG 17.25). Ela é quem o Espírito de Cristo congrega e unifica. Ela é quem o Espírito Santo ilumina e guia por meio de sua longa peregrinação pela terra (Isaac da Estrela). Ela é a que, enquanto a visão face a face, fiel na provação e na obscuridade, resistindo a todo obstáculo, conserva zelosamente o depósito recebido (santo Irineu). A Igreja é para cada um de nós o arquétipo do perfeito sim, e por isso pedimos: “Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja” (DE LUBAC, 1970, p. 196).

Bibliografia

Comisión Fe y Constitución. Confesar la fe común: una explicación ecuménica de la fe apostólica según es confesada en el Credo niceno-constantinopolitano. Salamanca: Universidad Pontificia, 1994.

de Lubac, Henri. La fe cristiana. Madrid: FAX, 1970.

Forte, Bruno. Eis o mistério da fé. Prior Velho: Paulinas, 2012.

Pié-Ninot, Salvador. Introdução à eclesiologia, São Paulo: Loyola, 1998.

Schneider, Theodor (Org.). Manual de dogmática. Petrópolis: Vozes, 2002. v. II.

UríbaRRI, Gabino (Ed.). El corazón de la fe: breve explicación del credo. Santander: Salterrae, 2013.

[1]Credo sanctam ecclesiam, sed non in illam credo, quia non Deus sed convocatio vel congregatio christianorum et domus Dei est” (PL 142, 561C).

Jean Poul Hansen

Padre da Diocese da Campanha (MG). Estudou Teologia no Instituto Teológico Interdiocesano São José, em Pouso Alegre (MG). É membro da equipe de redação da Revista ECOando e atualmente faz o curso de mestrado em Teologia Dogmática na Pontifícia Universidade de Salamanca, na Espanha. E-mail: [email protected]