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Publicado em maio-junho de 2014 - ano 55 - número 296

Teologia e literatura (afinidades e segredos compartilhados)

Por Maria Clara Bingemer

Há uma afinidade constitutiva e uma irmandade ancestral entre teologia e literatura. Graças à espiritualidade, ambas decorrem da inspiração. Atraindo-se como dois polos relacionais, ambas as disciplinas fazem o ser humano mais humano e a vida mais bela e digna de ser vivida. 

Parábola 

É muito difícil esconder o amor

A poesia sopra onde quer

O poeta no meio da revolução

Para, aponta uma mulher branca

E diz alguma coisa sobre o Grande enigma

Os sábios sonham

Que estão mudando Deus de lugar.

(Murilo Mendes) 

O vento sopra onde quer, você ouve o barulho, mas não sabe de onde vem nem para onde vai. Assim é com todo aquele que nasceu do Espírito (Jo 3,8).

            Atrevo-me a escrever este texto sobre teologia e literatura com tremor e temor, mas com amor. Conhecedora razoável e amante ardente de literatura e poesia, crente com firmeza que a espiritualidade e a teologia têm parentesco próximo com o espírito que inspira os poetas e os escritores, começo tentando situar os termos.

            Literatura. O que é a literatura e qual é a melhor maneira de defini-la? A resposta não é óbvia, em absoluto, porquanto o termo pode ser usado em muitos sentidos diferentes. Pode significar qualquer coisa escrita em verso ou em prosa. Pode significar unicamente aquelas obras que se revestem de certo mérito. Ou pode referir-se à mera verborragia: “Tudo o mais é literatura”. Para os nossos propósitos, será preferível começar por defini-la de um modo tão amplo e neutro quanto possível, simplesmente como uma arte verbal; isto é, a literatura pertence, tradicionalmente, ao domínio das artes, em contraste com as ciências ou o conhecimento prático. Seu meio de expressão é a palavra, em contraste com os sinais visuais da pintura e da escultura ou com os sons musicais.

            Poesia vem do grego poíesis, que significa “ação de fazer algo”. Poesia, portanto, é práxis, apesar de ser a mais gratuita das práxis. Entre as suas inúmeras definições, o Aurélio e o Houaiss nos fornecem uma que interessa de perto a nossa temática: entusiasmo criador, inspiração.

            Espiritualidade vem de espírito, definido como a parte incorpórea, inteligente ou sensível do ser humano; o pensamento; a mente. Espiritual seria então o incorpóreo, o imaterial, sintonizado com o mistério, o místico, o sobrenatural.

            Teologia, por sua vez, vem do grego theología, “ciência dos deuses”. Pode ser o estudo das questões referentes ao conhecimento da divindade – de seus atributos e relações com o mundo e com os seres humanos – e à verdade religiosa. Em segundo lugar, pode significar igualmente o estudo racional dos textos sagrados, dos dogmas e das tradições do cristianismo. Pode ser ainda um tratado ou compêndio sobre as verdades da fé; ou o conjunto de conhecimentos relativos aos dogmas de fé ou que têm implicações com o pensar teológico, ministrados em cursos ou nas respectivas faculdades. A teologia é linguagem segunda, posterior a duas outras: a da revelação e a da fé. Sistematiza duas palavras a ela anteriores: a que Deus mesmo falou, rompendo seu silêncio eterno, e a que o ser humano fala, respondendo à Palavra de Deus, pronunciada no meio da história, rompendo o silêncio do tempo e do espaço.

1. Teologia e espiritualidade: separação e união

            A separação entre teologia e espiritualidade tem sua origem no divórcio ocorrido a partir do século XVI, de consequências nefastas tanto para a espiritualidade, que se viu reduzida em consistência e vigor, como para a teologia, que perdeu em movimento, beleza e flexibilidade, tornando-se um corpo doutrinal puramente explicativo e dedutivo (SOBRINO, 1985, p. 60). Uma teologia, enfim, que poderia pensar e falar sistematicamente sobre Deus, mas talvez, pelo menos em muitos casos, não deixava que Deus mesmo falasse.

            O momento atual redescobre, no interior da reflexão teológica, o direito de cidadania da espiritualidade cristã, a qual não é simplesmente vulgarização teológica, mas fonte rica e consistente de ensinamento novo e irrepetível, sopro do Espírito na história, que permite à teologia de hoje dizer novas palavras (VON BALTHASAR, 1974, p. 142).

            Em virtude disso, a teologia pode dialogar com a literatura e a poesia e descobrir com ambas uma irmandade ancestral, pois, graças à espiritualidade, ambas decorrem da inspiração.

2. Afinidades interdisciplinares entre teologia e literatura

            Acreditamos que há uma afinidade constitutiva entre teologia e literatura. Por isso, passamos, em seguida, a levantar alguns elementos que, a nosso ver, podem construir elementos de ligação e afinidade entre teologia e literatura.

A inspiração: na origem tanto da literatura quanto da teologia está o fenômeno da inspiração. Da inspiração nos dizem a fisiologia e a Bíblia que tem a ver com o ar em nossos pulmões. Esse ar, sem o qual não se vive, diz a Bíblia que é como o próprio Espírito de Deus, o qual leva e traz a vida, sem se saber de onde vem nem para onde vai (cf. Jo 3,1ss). Sob a força da inspiração, os profetas disseram com boca humana as palavras divinas, os hagiógrafos escreveram o que Deus desejava que escrevessem. É o mesmo Espírito que enche de inspiração o poeta, para que passeie pelas vias da beleza e diga o que vê e o que sente em versos e palavras. Inspirada, igualmente, é a profecia do profeta, sendo o Espírito que o possui e, por vezes, o derruba o mesmo que simultaneamente o exalta e enche de entusiasmo. Inspirada, por sua vez, é a poesia do poeta, a qual seduz e arrebata.

A palavra: quando dizemos que o meio de expressão literário é a palavra, ultrapassamos o significado etimológico de literatura, que deriva do latim littera – “letra” – e parece referir-se, portanto, de modo primordial, à palavra escrita ou impressa. Com efeito, muitas civilizações, desde a grega antiga à escandinava, francesa e inglesa, produziram importantes tradições orais. Inclusive extensos poemas narrativos como a Ilíada e a Odisseia, de Homero, as sagas islandesas e o Beowulf anglo-saxônico foram, presumivelmente, cantados ou entoados por rapsodos e bardos profissionais, séculos antes de terem sido escritos. Para que se possa abranger essas e outras obras verbais, é útil considerar a literatura uma arte verbal, lato sensu, deixando em aberto a questão sobre se as palavras são escritas ou faladas.

            Por sua vez, a teologia encontra seu nascedouro e sua base na palavra. Palavra que se crê pronunciada por Deus e ouvida pelo ser humano na história, levando este mesmo ser humano, segundo o teólogo alemão Karl Rahner, a ser definido como um ouvinte da palavra (RAHNER, 1989, p. 37-59). E é igualmente palavra escrita pelos hagiógrafos ou escritores sacros, que recolhem aquelas tradições orais que permanecem por muito tempo sustentando a identidade do povo de Deus e, finalmente, as registram por escrito. Palavra declarada canônica pela Igreja, que seleciona entre aquilo que foi escrito o que autenticamente pode encontrar sua fonte na inspiração divina e na inerrância concedida como graça ao ser humano e declara essa palavra normativa para tudo e por nada normatizada.

            Muito especialmente a teologia das três religiões monoteístas – não em vão ou à toa chamadas religiões do Livro – não é pensável ou inteligível sem a Escritura, que no judaísmo é o sinal concreto e sensível da presença de Deus no meio do povo, no Alcorão é o próprio Verbo feito livro e no cristianismo é o texto sagrado que narra a história das amorosas relações de Deus com esse povo.

3. A arte de narrar e imitar a vida

            A literatura é sempre mais definida hoje como arte verbal. Em que sentido específico a literatura é uma arte? Talvez a maneira mais antiga e mais venerável de descrever a literatura como arte seja considerá-la uma forma de imitação. Isso define a literatura em relação à vida, encarando-a como um meio de reproduzir ou recriar em palavras as experiências da vida, tal como a pintura reproduz ou recria certas figuras ou cenas da vida em contornos e cores. Poderíamos dizer que a tragédia Édipo, de Sófocles, “imita” ou recria as lutas íntimas de um homem soberbo e poderoso que, lentamente, foi forçado a reconhecer e render-se à terrível verdade de que era, involuntariamente, culpado de parricídio e de incestuoso casamento com a própria mãe.

            Se tentarmos avaliar essa interpretação da literatura, teremos de reconhecer que ela toca em pelo menos dois importantes pontos. Considerada em seu valor aparente, sugere que a literatura imita ou reflete a vida; em outras palavras, a temática da literatura consiste nas múltiplas experiências dos seres humanos, em suas vivências. Ninguém negaria que isso é verdade.

            Mas a dificuldade está em que, ao defini-la dessa maneira, não dizemos grande coisa acerca da literatura, dado que não levamos em conta o que acontece à sua temática – que poderíamos chamar, na realidade, de sua matéria-prima – quando ela faz parte de um poema, peça teatral ou romance (RICOEUR, 1996). O segundo e importante ponto sugerido pela teoria da imitação é que vida está sendo imitada no sentido de ser reinterpretada e recriada. Nesse caso, a ênfase principal parece recair sobre o modo como a vida é imitada – que tipo de simulação ou de figuração será escolhido ou que espécie de espelho será usado para refletir as experiências humanas. Essa concepção põe-nos mais perto de um dos aspectos essenciais da literatura, a saber, que a matéria-prima é remodelada e até transformada na obra literária.

            Por sua vez, a Bíblia, fonte da revelação e nascedouro da teologia, é tudo, menos um manual de piedade. Trata-se do Livro da Vida por excelência. Paul Ricoeur nos diz algo sobre isso ao refletir sobre a nomeação de Deus (o objeto central da teologia) nos textos bíblicos. A nomeação de Deus sempre acontece no seio de um pressuposto que é o seguinte: nomear Deus é realizar o que já teve lugar nos textos que o pressuposto de minha escuta tem proferido (ibid.).

1) Significará isso que eu coloco os textos acima da vida? A experiência religiosa não é a primeira? O pressuposto não significa absolutamente que não exista “experiência” religiosa. Todas essas experiências são alguns dos sinônimos do que chamamos fé e, portanto, têm algo a dizer à teologia. Assim, a fé é um ato que não se deixa reduzir a nenhuma palavra, a nenhuma escritura. Esse ato representa o limite de toda hermenêutica porque ele é a origem de toda interpretação (RICOEUR, 1977, p. 15-54).

            O pressuposto, portanto, da teologia, que é reflexão sobre a experiência de fé, não é que tudo é linguagem, e sim que é numa linguagem que a experiência religiosa (no sentido cognitivo, prático ou emocional) se articula. Mais precisamente: o que é pressuposto é que a fé, enquanto experiência vivida, é instruída (no sentido de formada, esclarecida, educada) no interior de um conjunto de textos escritos que a pregação cristã traz de volta à palavra viva (RICOEUR, 1996). Esse pressuposto da textualidade da fé bíblica (bíblia quer dizer livro) distingue essa fé de qualquer outra. Em certo sentido, pois, os textos precedem a vida (ibid.). Eu posso nomear Deus na minha fé porque os textos da Escritura já o nomearam antes de mim.

            Frequentemente se afirma que, quando a palavra viva é entregue às “marcas externas”, que são as letras, os sinais escritos, a comunicação fica irremediavelmente amputada: perdeu-se alguma coisa que dependia da voz, do rosto, da comunidade de situação dos interlocutores. Não é falso. Pelo contrário, é tão verdadeiro, que a reconversão da Escritura em palavra viva tende a recriar uma relação não idêntica, mas análoga à relação dialogal de comunicação. A reconversão, porém, recria a situação precisamente para além da etapa escriturística de comunicação e com características próprias que dependem dessa situação pós-textual da pregação.

            O que a apologia unilateral do diálogo desconhece – insiste Ricoeur – é a extraordinária promoção que acontece no discurso quando ele passa da palavra para a escritura. Libertando-se da presença corporal do leitor, o texto se liberta também do seu autor, quer dizer: liberta-se, ao mesmo tempo, da intenção que o texto parece exprimir, da psicologia do ser humano que fica por trás da obra, da compreensão que esse ou essa tem de si mesmo/a e da sua situação, da sua relação de autor com seu primeiro público destinatário original do texto. Essa tríplice independência do texto em relação ao seu autor, ao seu contexto e ao seu primeiro destinatário explica que os textos estejam abertos a inúmeras recontextualizações pela escuta e pela leitura, como réplica à descontextualização contida em potência no ato mesmo de escrever (ibid.).

            Um texto – dirá ainda Ricoeur – é, em primeiro lugar, um elo numa corrente interpretativa: em princípio uma experiência da vida é levada à linguagem, transforma-se em discurso; depois o discurso se diferencia em palavra e escritura, com os privilégios e vantagens que já foram ditos; a escritura, por sua vez, é restituída à palavra viva por meio dos diversos atos do discurso que reatualizam o texto. A leitura e a pregação são essas reatualizações da escritura em palavra. Um texto é, desse ponto de vista, como uma partitura musical que pode ser executada (alguns críticos, reagindo contra os excessos do texto-em-si, chegam até a afirmar que é o “leitor-no-texto” quem completa o sentido, por exemplo, preenchendo suas lacunas, decidindo sobre suas ambiguidades ou até endireitando a sua ordem narrativa ou argumentativa) (RICOEUR, 1977).

Conclusão: teologia, literatura e antropologia

            Na teologia, a antropologia ocupa um lugar central, não apenas porque é feita por seres humanos e para seres humanos, mas também porque a humanidade pode iluminar e esclarecer o caminho e a compreensão da revelação de Deus. Se Deus se revela aos seres humanos, ele o faz por meio do humano, e a natureza humana de Jesus, que é também reveladora do ser de Deus, é prova disso.

            O inegável antropocentrismo da literatura – que inventa e narra histórias humanas ou de personagens outros que falam com palavras humanas – religa-se, então, ao antropocentrismo da teologia.

            E ambas, literatura e teologia, na arte de escrever imitando a vida para transformá-la, encontram sua fonte na inspiração que vem de mais além, cujo segredo é progressivamente desvendado aos seres humanos que se dispõem a tratar mais intimamente com o mistério desta vida doada gratuitamente pelo Criador a suas criaturas.

            Não é à toa, portanto, que a área da interface entre teologia e literatura é uma das que mais crescem na pesquisa hoje. Atraindo-se como dois polos relacionais, ambas as disciplinas fazem o ser humano mais humano e a vida mais bela e digna de ser vivida.

Bibliografia

RAHNER, K. O ouvinte da Palavra. In: ______. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989.

RICOEUR, P. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus. In: ______. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996.

______. Herméneutique de l’idée de Révélation. In: ______. La Révélation. Bruxelles: Publications des Facultés Universitaires Saint-Louis, 1977.

SOBRINO, J. Espiritualidade e teologia. In: ______. Liberación con Espíritu. Santander: Sal Terrae, 1985.

VON BALTHASAR, H. U. Teologia y espiritualidad. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 13, abr.-jun. 1974.

Maria Clara Bingemer

Graduada em Comunicação Social pela PUC-Rio, onde também cursou mestrado em Teologia. Doutora em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Autora de diversos livros, entre os quais Um rosto para Deus (Paulus). Publicou também pela Paulus a série de DVDs Místicos Contemporâneos. E-mail: [email protected]