Roteiros homiléticos

2 de outubro – 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Pe. Johan Konings, sj

A soberania de Deus e nossa fidelidade

I. Introdução geral

O tema da liturgia de hoje é fé e fidelidade. O termo bíblico – emuná em hebraico, pistis em grego, fides em latim – tem esses dois sentidos. Ora, a base de nossa fidelidade está na firmeza inabalável e soberana de Deus. Se dizemos que nossa fé nos salva, isso não é por causa da nossa qualidade, mas porque nossa fé nos une a Deus, que nos salva. Fé é adesão firme a Deus, que é fiel. É a total entrega ao seu desígnio, que muitas vezes supera nossa compreensão imediata, mas, em última instância, confirma-nos na salvação. No Antigo Testamento, por exemplo, na 1ª leitura de hoje, a fé é a adesão em autenticidade e lealdade a Deus; no Novo Testamento, trata-se da adesão a Jesus Cristo, que nos une a Deus.

II. Comentário dos textos bíblicos

  1. II leitura: Hab 1,2-3; 2,2-4

Habacuc 1,2-2,4 é um diálogo entre Deus e o profeta. Diante da desordem que reina em Judá, nos últimos anos antes do exílio, Habacuc grita a Deus com impaciência, quase com desespero. Deus, porém, anuncia que tratará o mal da infidelidade com um remédio mais tremendo ainda: os babilônios. Quando Habacuc reclama contra essa solução – na leitura deste domingo –, Deus responde: “Eu sei o que faço; não preciso prestar contas; mas os justos se salvarão por sua fidelidade” (2,2-4). O profeta se queixa, porque a impiedade está vencendo, porque o direito e o próprio justo são pisados ao pé. Deus, porém, não precisa prestar contas ao ser humano. Este é que lhe deve obediência, também nas horas difíceis: é a “fé/fidelidade” que faz viver o justo (2,4).

  1. Evangelho: Lc 17,5-10

O Evangelho começa com a prece dos apóstolos: “Senhor, aumenta nossa fé!” Às vezes, precisa-se de muita fé para acolher a palavra de Jesus, pois o Evangelho não é tão evidentemente gratificante. Daí os discípulos dizerem: “Dá-nos mais fé!”

A resposta de Jesus é uma admoestação para que tenham fé que transporta montanhas! Jesus fala aqui no estilo hiperbólico, exagerado, dos orientais, mas não deixa de ser verdade que quem se entrega em confiança a Deus em Jesus Cristo faz coisas que outros não fazem e que o próprio crente não se julga capaz de fazer.

Somos como peões de fazenda, que, depois de terem executado seu longo e cansativo serviço, não podem reclamar, pois apenas cumpriram seu dever (cf. 1Cor 9,16). Assim como, em Habacuc, Deus não presta contas ao profeta, o “dono” na parábola do Evangelho não precisa prestar contas a seus servos. Depois da longa jornada dos servos no campo, ele pede que lhe preparem a comida e a sirvam, sem reclamar. Fizeram somente seu dever. É claro que Jesus não está justificando esse modo de agir do dono; apenas usa uma cena cotidiana de seu tempo para expressar que Deus não precisa prestar contas: quando o servimos, fazemos apenas o que devemos fazer.

Nossa mentalidade atual não aceita isso facilmente. Em nossa sociedade, a mínima prestação de serviço exige gratificação específica. Ainda que, muitas vezes, a gratificação não valha o serviço, essa mentalidade exclui todo o espírito do “simples serviço”. Até as prefeituras e governos estaduais fazem propaganda com as obras que nada mais são que a execução de seu dever! Ora, no Reino de Deus, o que conta é o espírito de participação. Faz-se o que o Reino exige, sem cobrar nada extra. A recompensa existe no participar, como Paulo diz a respeito de anunciar o Evangelho gratuitamente (1Cor 9,16). Ao interpretar a parábola, devemos pôr entre parênteses os traços paternalistas da cena que Jesus evoca. O que ele quer mostrar é que participamos no projeto de Deus não em função de uma compensação extra, mas porque é a obra de Deus. O próprio Deus é nossa recompensa, e a realização de seu amor supera qualquer recompensa extra que poderíamos imaginar.

  1. II leitura: 2Tm 1,6-8.13-14

A 2ª leitura é tomada do início da segunda carta a Timóteo. Esta carta impressiona-nos por seu estilo vivo – uma fotografia em alta definição do Apóstolo no fim de seus dias. É seu testamento espiritual. No trecho de hoje, Paulo exorta seu amigo Timóteo a manter a plena fidelidade ao Senhor. Pois também o ministro da fé deve firmar-se na fidelidade, para poder confirmar os seus irmãos na fé.

Em Romanos 1,16, Paulo escreveu que não se envergonhava por causa do Evangelho. A segunda carta a Timóteo repete a mesma afirmação, para exortar os pastores que o sucedem a se lembrarem de estar servindo ao Cristo aniquilado. Nas cidades do “mundo civilizado” de então, o cristianismo era ridicularizado e perseguido. Por isso, Paulo exorta seu discípulo a não se envergonhar e a guardar a doutrina sadia que dele recebeu (contra as fantasias gnósticas e outras que se introduziram no cristianismo primitivo). Exorta-o a guardar o “bom depósito”, ou seja, o bem depositado em Timóteo, a ele confiado (1,14). Esse “bom depósito” é a plena verdade do Evangelho. Repleto dela, o discípulo poderá distribuí-la aos outros, pois o cristão é responsável não só por sua própria fé, mas também pela fé e fidelidade do seu irmão. Ora, nas circunstâncias daquele tempo e de todos os tempos, isso só é possível com a força do Espírito Santo.

Recebemos hoje, portanto, uma mensagem para valorizar a fé, até mesmo como base da oração. Mas nossa fé não é uma espécie de fundo de garantia para que Deus nos atenda. Assim como ele não precisa prestar contas, também não é forçado por nossa fé. Nossa fé é necessária para nós mesmos, para ficarmos firmes na adesão a Deus em Jesus Cristo. Deus mesmo, porém, é soberano e soberanamente nos dá mais do que ousamos pedir, como diz a oração deste domingo.

III. Pistas para reflexão

Somos simples servos: Quem não gosta de um elogio? Não estão nossas igrejas tradicionais cheias de inscrições elogiando os generosos doadores dos bancos e dos vitrais? Ora, o Evangelho de hoje nos propõe uma atitude que parece inaceitável a uma pessoa esclarecida: o empregado não deve reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, ele ainda deve servir a janta. É um empregado sem importância especial; tem de fazer seu serviço, sem discutir...

Essa parábola não é para ensinar a forma de tratar os empregados. Jesus nos quer ensinar a estar a serviço do Reino, sem atribuirmos importância a nós mesmos. Ele mesmo dará o exemplo disso, apresentando-se, na Última Ceia, como aquele que serve (Lc 22,27). Isso não rima com a mentalidade calculista e materialista da nossa sociedade, que procura compensação para tudo o que se faz – aliás, compensação superior ao valor daquilo que se fez...

Ora, se levamos a sério a parábola de Jesus, como ensinamos os empregados e os operários a reivindicar sempre mais (porque, se não reivindicam, são explorados)? Certamente, Jesus não quer condenar os movimentos de reivindicação, mas seu foco é outro. Ele quer apontar a dedicação integral no servir. Interesse próprio, lucro, reconhecimento, fama, poder... não são do nível do Reino, mas apenas da sobrevivência na sociedade que está aí. A parábola não quer desvalorizar as reivindicações da justiça social, mas insistir na gratuidade do serviço do Reino.

Diante disso, convém fazer sério exame de consciência acerca da retidão e da gratuidade de nossas intenções conscientes e de nossas motivações inconscientes. Na Igreja, tradicional ou progressista, quanta ambição de poder, quanto querer aparecer, quantas “compensaçõezinhas”!

E mesmo com relação às estruturas da sociedade, a parábola de Jesus, hoje, ensina-nos a não focalizar única e exclusivamente as reivindicações. Estas são importantes, no seu devido tempo e lugar, para garantir a justiça e conseguir as transformações necessárias. Mais fundamental, porém, na perspectiva de Deus, é criar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros.

“Somos simples servos.” Servindo com simplicidade, não em razão de compensações egoístas, mas em virtude da fidelidade e da objetividade, contribuímos com nossa participação no projeto de Deus.

Pe. Johan Konings, sj

Nascido na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e licenciado em Filosofia e Filologia Bíblica pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail: [email protected]