Roteiros homiléticos

24 de janeiro – 3º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Luiz Alexandre Solano Rossi

O fio de três dobras não sem rompe com facilidade

I. Introdução geral

Nenhuma comunidade se constrói sem a Palavra de Deus. Uma das provas irrefutáveis da fragilidade de uma paróquia se revela na pouca profundidade que seus fiéis possuem das Escrituras. A Palavra de Deus deve ser compreendida como o alimento sólido que leva a comunidade a caminhar com passos firmes e seguros para o futuro. Quando não nos alimentamos, o corpo enfraquece e desfalece. Imaginemos todo o corpo de Cristo tomado por indisposição e letargia, marcado pela falta de conhecimento bíblico e, com isso, fácil de ser levado para lá e para cá por qualquer vento de falsa doutrina. O estudo das Sagradas Escrituras une irmãos e irmãs ao redor da mesma fé e os torna responsáveis uns pelos outros. 

II. Comentários aos textos bíblicos

1. I leitura: Ne 8,2-4a.5-6.8-10

A segunda leitura nos faz lembrar uma expressão curiosa: “O fio de três dobras não se rompe com facilidade”, diz um dos provérbios bíblicos. Imagine, então, todo um povo unido em direção ao mesmo objetivo! Pois é exatamente assim que se inicia a primeira leitura: “Todo o povo, como se fosse uma única pessoa, se reuniu na praça...”. Reunidos, não há espaço para interesses individuais ou necessidade de reconhecer quem é mais e quem é menos. E qual foi o motivo da reunião? Para que fosse lido o livro da lei. Tratava-se, nesse caso, de catequese coletiva. Todo o povo reunido para ouvir a palavra de Deus. Uma reunião marcada por quatro características: é espontânea, coletiva, harmoniosa e com um só propósito. A comunidade se reúne ao redor da Palavra e procura, a partir desse referencial seguro, traduzir em suas práticas diárias a vontade de Deus, a qual é sempre concretizada na partilha. Um povo que se reunia para se alimentar com o pão nutritivo da Palavra de Deus e, assim, saciar a própria fome.

A reunião foi marcada pela atenção com que ouviam a leitura da Palavra e pela reverência (ficaram em pé), a ponto de colocarem o próprio corpo para participar dessa festa litúrgica (erguiam as mãos e respondiam com amém) e terem o coração atingido em cheio pelo calor da Palavra de Deus (começaram a chorar). Mas a reunião do povo para escutar a Palavra não pode ser pensada como um momento de tristeza. Por isso, Esdras motiva-os a retornar a suas casas e celebrar a proposta de vida de Deus com muita alegria, sem se esquecerem de partilhar a comida com os que nada tinham. Afinal, se todo o povo era como uma única pessoa, nenhuma poderia passar fome e vivenciar a tristeza da carência. O compromisso com a Palavra de Deus causa profundas mudanças no povo de Deus.

2. II leitura: 1Cor 12,12-30

Paulo sabiamente utiliza o corpo humano como metáfora para falar sobre as relações que deveriam acontecer dentro da comunidade entre os irmãos e irmãs. Se na sociedade ao redor de Paulo se utilizava a imagem do corpo para justificar o poder de dominação, ao hierarquizar as relações entre uns e outros, o apóstolo pensa de forma contracultural e produz uma inversão sensacional: unidade na diversidade, a partir dos mais fracos. Cristo é a cabeça de um só corpo e todos os membros estão nele integrados. No entanto, não é possível deixar de lado a inovação de Paulo ao afirmar o critério de atenção aos membros mais fracos: “os que parecem mais fracos são os mais necessários” (12,22).

A unidade do corpo passa pelo respeito a si próprio, assim como pelo respeito aos outros. Em relação à própria pessoa, é-lhe necessário saber quem ela é dentro do corpo e assumir sua particular função (“se não sou mão, então não pertenço ao corpo”, 12,15); e relativamente aos outros, deve-se pensar sobre a responsabilidade ética que temos com as demais pessoas que vivem e convivem conosco na mesma comunidade.

Para Paulo, a percepção de que todos constituímos um só corpo é que determina a construção de uma comunidade sadia. Em 12,3, Paulo falou duas vezes do Espírito. Num primeiro momento, destacou que “fomos batizados num só Espírito”; em seguida, afirmou: “Todos bebemos de um só Espírito”. É preciso salientar o aspecto comunitário nas duas afirmações – “todos” –, indicando a superação de qualquer divisão na comunidade. O corpo é a comunidade, e o espírito envolve o corpo. Todas as patologias advêm justamente quando algum membro do corpo procura viver a partir do princípio da hierarquização e da dominação sobre o outro. Na construção do corpo não há espaço para sentimentos de superioridade ou inferioridade. Em comunhão nos vemos como extensão um do outro, e não como competidores que precisam derrotar os outros. No corpo não há inimigos, e sim irmãos e irmãs.

3. Evangelho: Lc 1,1-4; 4,14-21

Estamos diante do programa de toda a atividade de Jesus. E o texto é colocado precisamente no início da vida pública de Jesus. Trata-se de seu programa de trabalho. Se alguém quisesse saber quais seriam as ações, opções e comportamento de Jesus, bastaria prestar atenção nas palavras que fluíam de seus lábios. E as pessoas presentes na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Aquilo que Jesus tem para falar desperta a atenção de todos. São palavras carregadas de sentido, recheadas com seu projeto de libertação. Palavras que vão ao encontro dos desamparados, para que possam se sentir seguros e protegidos por uma palavra viva que liberta. Percebe-se logo que o ministério/vida de Jesus está concentrado na periferia. Sua vida é direcionada aos oprimidos e vulneráveis. Ele decididamente permanece ao lado deles e, simultaneamente, condena os opressores.

Ao ler o texto de Isaías 61,1-2 e aplicá-lo a si mesmo, Jesus assume sua vida e ministério no contexto em que está vivendo. Jesus não é um alienado que fecha os olhos para o que está acontecendo ao seu redor. É sabedor da própria realidade. E, nesse sentido, ele não nega a realidade, mesmo que seja contraditória, opressora e criadora de pobreza e de marginalização. Ao contrário, assume sua própria vocação em meio a forte contradição social e se faz solidário com aqueles que estão sendo desumanizados e empobrecidos pelo sistema sociopolítico. A realidade que os pobres viviam não era estranha a Jesus, pois era uma realidade que também alcançava a ele e a sua família. O século primeiro foi marcado por grandes catástrofes na Palestina: secas, furacões, epidemias, tempos de fome. As propriedades eram concentradas nas mãos de poucos e com isso aumentava o número dos sem-terra; os impostos aumentavam não apenas nas porcentagens a pagar, mas também pelo aparecimento de novos impostos.

O ministério de Jesus refletirá justamente essa situação. A multidão que o segue vive na periferia da vida; é enorme o número de pessoas que vivem no anonimato. São pobres não porque sejam vagabundos e não gostem de trabalhar. São pobres justamente porque trabalham. Apresentam-se como vítimas de uma sociedade que cria a pobreza e faz da miséria um instrumento de riqueza para poucos. A multidão que o segue passa fome e anda em busca de alimento, como ovelhas que não têm pastor para alimentá-las. Jesus não vira as costas para a multidão de pobres.

Diante da multidão, a única opção que lhe cabia era o exercício da solidariedade. A realidade que Jesus vivia era seu maior desafio. Ele se encarnava na realidade para transformá-la. Não se alienava da realidade, e suas palavras e ações não produziam alienação nos ouvintes. A relevância de Jesus pode ser vista justamente na maneira como ele assumiu a realidade dos pobres como a sua própria realidade. Nesse sentido, o povo encontrava, nas palavras e gestos de Jesus, a melhor resposta.

III. Pistas para reflexão

- Seria muito interessante que pudéssemos utilizar os grupos de reflexão ao redor da Bíblia como termômetro para medir o compromisso com as nossas paróquias. Temos facilidade de produzir grandes ajuntamentos para shows e não conseguimos o mesmo entusiasmo e participação quando se convoca para estudar a Bíblia. Todavia, como poderemos conhecer o projeto de Deus para as nossas vidas e para a nossa Igreja, se não temos familiaridade com a Palavra de Deus?

- Há nas palavras de Jesus um projeto de libertação integral para o ser humano. Ele faz ousada e decidida opção pelos mais vulneráveis. Ao olhar para as pessoas, não via em primeiro lugar os pecados delas, e sim o sofrimento que as atingia e subjugava. Em seu programa de atividade lido na sinagoga, Jesus indicava com todas as letras os caminhos que iria trilhar. E quais são os nossos caminhos?

Luiz Alexandre Solano Rossi

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), pós-doutor em História Antiga pela Unicamp e em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Califórnia, EUA). É professor no Programa de Mestrado e Doutorado em Teologia da PUC-PR. Publicou diversos livros, a maioria pela PAULUS, entre os quais: A falsa religião e a amizade enganadora: o livro de Jó e Deus se revela em gestos de solidariedade. E-mail: [email protected]