Roteiros homiléticos

26 de fevereiro – 8º Domingo do Tempo Comum

Por Pe. Ivonil Parraz

A gratuidade do amor

I. Introdução geral

A Palavra de Deus deste domingo nos convida a olhar os lírios do campo, para ver na fragilidade das ervas, que de manhã florescem e à tarde secam, a providência divina, ou seja, a gratuidade do seu amor.

Na primeira leitura, o segundo Isaías proclama o amor entranhado de Deus, que nunca se esquece de nenhum de seus filhos. Na primeira carta de Paulo aos Coríntios, o apóstolo chama a atenção das lideranças cristãs para não esquecerem a gratuidade de ser cristãs. A tarefa do líder consiste em colocar-se a serviço da comunidade e ser administrador do plano de amor de Deus. Qualquer outra postura gera divisão no interior da comunidade. No evangelho, Jesus nos convida a uma única ocupação: o Reino de Deus. Todas as outras preocupações são grilhões que nos impomos e que acabam nos desviando de nós mesmos, dos outros e de Deus. O convite para contemplar os lírios do campo se traduz no chamado para ver, nas pequenas coisas, a gratuidade divina. Se abrirmos o nosso coração ao amor gratuito do Pai, experimentamos a vida como dom!

II. Comentário dos textos bíblicos

  1. Evangelho: Mt 6,24-34

Jesus exalta a gratuidade do amor do Pai. Amor que cuida até das menores criaturas, como os lírios do campo, cuja existência se apresenta tão ínfima: “que de manhã nascem e à tarde secam”; amor providente: “que não deixa nenhum passarinho morrer de fome”. Desse modo é que Jesus Cristo sente e vê o Pai e nos convida a permitir que ele cuide de nós.

a) Dois senhores

Jesus adverte os seus discípulos de que não podemos servir a dois senhores. Essa  impossibilidade decorre do fato de que o nosso coração não se deixa guiar por dois amores: “ou odiará um e amará o outro, ou aderirá a um e desprezará o outro” (v. 24).

O coração, no Segundo Mandamento, salvo as atribuições fisiológicas que ainda persistem, apresenta-se como o nosso ser mais profundo, a nossa consciência moral. Não se trata, portanto, de um órgão do corpo humano, mas de uma faculdade espiritual. Ora, o nosso ser naturalmente busca o seu bem. Aplicamos o nosso amor, cuja sede é o coração, àquilo que julgamos ser um bem para nós. Disso decorre que tudo o que não concorrer ao nosso bem, nós o excluímos. A busca natural do nosso bem nos coloca diante de uma escolha: a qual bem meu coração adere? “Onde está teu tesouro aí estará teu coração.”

b) Deus ou dinheiro

“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (v. 24). Deus e o dinheiro se excluem. Enquanto o Pai, por sua absoluta gratuidade, deixa-nos livres de todas as preocupações cotidianas, uma vez que se desdobra em cuidados, o dinheiro nos aprisiona. Quanto mais temos, mais queremos ter. Nessa busca desenfreada, não medimos esforços para acumular. Toda a nossa segurança e, portanto, confiança estão na conta bancária.

O dinheiro, invenção humana para representar valores, passou a ser em si mesmo um valor, a tal ponto que o próprio valor da pessoa humana passou a ser relativo: o ter é exaltado em detrimento do ser! Julga-se pelo que se tem e não pelo que se é!

Ora, o ter distancia-nos de Deus por três razões principais: 1) o ter é fruto do nosso esforço (na melhor das hipóteses), logo não é dom (gratuidade); 2) o ter embota no ser humano a imagem e semelhança de Deus, pois apaga nele a gratuidade (dom). Só o ser pode ser dom, jamais o ter; enfim, 3) o ter tira do ser humano a liberdade, portanto nega nele a filiação divina!

Com o termo “dinheiro”, Jesus quer nos alertar sobre tudo aquilo que nos escraviza, ou, em outras palavras, tudo o que nos leva a excluir Deus e os nossos irmãos de nossa vida. Assim, um elemento bastante atual que podemos associar ao termo “dinheiro”, entre outras coisas, é o eu como fruto do próprio egoísmo. Este eu, enfeitamos com qualidades que apreciamos e que os outros também apreciam. É um eu imaginário, não o nosso eu verdadeiro. Conscientes de que a exibição de um pequeno defeito de nosso eu leva os outros a não o estimar, escondemos dos outros e de nós mesmos todas as nossas fraquezas. Preocupados em embelezar o nosso eu imaginário, esquecemos o nosso eu verdadeiro. Consumimos toda a nossa vida em função desse eu que é fruto da nossa imaginação.

Assim como o dinheiro, o eu imaginário é tirânico. Sua tirania consiste em exigir de nós dedicação exclusiva e, por isso, desvia-nos de nós mesmos, dos outros e de Deus.

c) O que tem valor maior?

“A vida não é mais que o alimento, e o corpo, mais que a roupa?” (v. 25). Ocupamo-nos com tantas coisas no nosso dia a dia que acabamos invertendo o real valor das coisas. A preocupação com os alimentos nos desvia de nos atermos ao verdadeiro valor da vida; a preocupação com a roupa faz com que esqueçamos a importância do corpo: ocupamo-nos previamente com algumas coisas e negligenciamos o essencial.

Evidentemente, Jesus não está dizendo que não devemos nos preocupar com alimento e vestuário. Devemos nos ocupar também dessas coisas, mas sem jamais ater toda a nossa vida a elas. Pois se assim fizermos, vamos nos asfixiar no mundo da necessidade (trabalho, preocupações cotidianas) e não o transcenderemos para abraçar o Reino destinado aos filhos e filhas de Deus. Por ser um ser espiritual, o ser humano só se realiza transcendendo o mundo da necessidade. Somente nesse transcender podemos encontrar o real valor das coisas. Jesus apresenta o que de fato tem sentido na vida!

d) O Reino de Deus

“Os pagãos vivem preocupados com o que comer e com o que vestir. Vosso Pai que está nos céus sabe que precisais de tudo isso” (v. 32). Os pagãos de hoje são todos os que se prendem ao mundo da necessidade, os que encontram segurança no que possuem, os que estabelecem com os outros uma relação mercantil, e não uma relação de gratuidade, os que só valorizam o que for útil, os que rejeitam a Providência porque seus celeiros estão cheios, enfim, os que veem a vida como propriedade e não como dom. O Pai cuidador, porque ama gratuitamente, nos dá tudo do que precisamos. Mas de que modo Deus nos dá? Como entender sua Providência?

“Buscai o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (v. 33). Quando entendermos que a vida é dom de Deus, pura gratuidade, e, por ser assim, defendermos toda forma de vida: humana, animal e vegetal, sem impor condições, fruto dos nossos preconceitos; quando as nossas relações inter-humanas se pautarem pelo princípio da fraternidade, na qual todos são inclusos: o pobre ser convidado à mesa – do pão, da educação, da saúde, da dignidade – e o rico partilhar, e não ser escravo do dinheiro; quando, enfim, Deus for o nosso único Senhor, então nos deixaremos conduzir pela providência divina. Onde há fraternidade, onde Deus reina como único Senhor, ninguém ficará sem comida ou sem o que vestir.

Todos poderão contemplar a gratuidade divina na beleza dos lírios do campo e o cuidado de Deus com as aves do céu. Todos aprenderão o que é a gratuidade, pois experimentarão, no recebimento e na doação, a providência divina!

  1. I leitura: Is 49,14-15

Após tanto tempo no exílio da Babilônia, o povo perdera a esperança de retornar a Israel. Parecia que Deus os havia esquecido. Aquele que os libertara da escravidão do Egito dava a impressão de não se importar mais com o seu povo. “O SENHOR me abandonou, o SENHOR esqueceu-se de mim” (v. 14).

Esse sentimento de abandono apresentava tão forte entre o povo exilado que nem mesmo a profecia de Isaías, proclamando a força do Deus de Israel, era capaz de animá-lo e, assim, restabelecer nele a confiança no Senhor e, consequentemente, a esperança.

Isaías muda o seu discurso: deixa de anunciar o poder de Deus e passa a proclamar o seu amor e a sua ternura como o amor e a ternura de uma mãe para seu filho: “Acaso uma mulher esquece o seu neném, ou o amor ao filho de suas entranhas? Mesmo que alguma se esqueça, eu de ti jamais me esquecerei!” (v. 15).

Isaías mostra que o amor entranhado de Deus o faz sempre envolver seus filhos de ternura e proteção. Seu amor é memória! Esta se apresenta tão viva, que faz cair no esquecimento toda a ingratidão do seu povo!

A mudança de discurso de Isaías tem um sentido preciso: não se trata meramente de animar o povo exilado. O profeta toma consciência de que o poder de Deus consiste em seu amor! Jesus Cristo proclama esse poder de Deus! O amor do Pai o leva a cuidar dos pássaros do céu e dos lírios do campo!

  1. II leitura: 1Cor 4,1-5

Algumas lideranças da comunidade de Corinto, por se considerarem avançadas no conhecimento dos mistérios (projetos) de Deus e, por isso, portadoras de uma sabedoria superior, julgavam o trabalho do apóstolo. Perante essa posição, Paulo pede à comunidade “que as pessoas nos considerem como ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (v. 1). A relação do apóstolo com Cristo como seu servo e, por isso, administrador do projeto salvífico de Deus o submete ao julgamento somente daquele a quem serve, ou seja, do próprio Cristo. O apóstolo não é dono da comunidade, é seu ministro (servo). A última palavra sobre o seu ministério compete somente a Deus.

A preocupação de Paulo não se aloja no conteúdo do julgamento dos líderes cristãos de Corinto, mas na sua atitude de julgadores. Ao julgarem, eles esquecem a gratuidade que se exige do cristão: estar sempre a serviço. Colocar-se como juiz em uma comunidade fatalmente cria divisão em seu interior. Pois quem julga aparta-se dos demais, considerando-se superior aos outros. Aqueles que agem assim esperam o louvor da comunidade.

Paulo adverte a comunidade de que somente de Deus recebemos o devido louvor. Diante dele, os projetos do nosso coração se manifestarão, e ele, que conhece as profundezas do nosso ser, perscruta o coração humano, nos dará a recompensa.

A gratuidade do amor de Deus, que “alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo”, convida todo cristão a abandonar-se confiantemente à providência dele. E uma vez que não há como servir a dois senhores, não podemos servir a Deus e ao nosso próprio egoísmo. Orgulho e gratuidade se excluem, assim como egoísmo e serviço! A advertência de Paulo se endereça também a nós.

III. Pistas para reflexão

A busca pelo Reino de Deus e a sua justiça deve ser a meta de todos os cristãos. Como buscá-lo? Somente quando Deus for o nosso único Senhor, o Reino de Deus estará próximo de nós.

A Igreja apresenta-se como “germe do Reino de Deus” quando gera espaço para que todos sintam a gratuidade do amor do Pai.

Só poderemos contemplar os lírios do campo quando nos ocuparmos com a vida e não com o que comer ou com o que vestir, ou seja, só poderemos ver o essencial quando os acessórios não prenderem o nosso coração!

Pe. Ivonil Parraz