Roteiros homiléticos

4 de outubro – 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Celso Loraschi

Deus nos fez família

Introdução geral

Outubro é o mês das missões. Somos todos discípulos missionários do Senhor a partir da família. Deus criou o homem e a mulher para que reconheçam serem extensão um do outro e vivam na igualdade e mútua complementaridade. O casamento é uma bênção divina. O marido e a esposa assumem o compromisso de se doarem um ao outro, conscientes de que já não são dois, mas uma só carne (I leitura). Jesus, em seu evangelho, ensina os casais a viver o amor em profundidade e não se deixar conduzir por ideologias que permitem e facilitam a separação por qualquer motivo. O amor exige sacrifícios (= fazer o que é sagrado), do mesmo modo que Jesus amou, doando sua vida em favor de todos. Ele abraça e abençoa cada criança, defendendo seus direitos e sua dignidade. Faz-se solidário com cada mulher e homem, levando-os à perfeição (II leitura); pais e filhos são chamados a expressar cotidianamente o amor trinitário, vivendo e promovendo os valores do diálogo, do respeito mútuo, da igualdade e da paz.

 Comentário dos textos bíblicos

  1. I leitura (Gn 2,18-24): Homem e mulher, uma só carne

O texto faz parte do segundo relato da criação (Gn 2,4b-25). Reflete sobre a missão que o ser humano recebeu de ser o colaborador de Deus no cultivo do “jardim” ou no cuidado com a natureza, a fim de que ela produza os alimentos necessários para a vida. O humano e a natureza estão intimamente unidos. É do húmus da terra que o humano é modelado. Ele recebe o poder de dar nomes aos outros seres, os animais. Tem a função de cuidar da criação de Deus.

A narrativa aponta para o caminho da realização do ser humano. Não é bom que esteja só. Deus não nos criou para a solidão. Entre todas as criaturas, o homem não encontrou uma “auxiliar” que lhe correspondesse. Enquanto está sozinho, sente-se inferior aos animais. Os autores procuram explicar como foram criados o homem e a mulher, interpretando a realidade que perpassa a existência humana. A linguagem revela que estão inseridos num contexto patriarcal. A palavra “auxiliar” não deve ser interpretada como ajudante submissa. Há igualdade na diferença. É do lado do coração do homem que nasce a mulher. Tornam-se companheiros e extensão um do outro. Revelam-se um ao outro na transparência. Necessitam-se, admiram-se e atraem-se mutuamente, unem-se e formam uma só carne. São duas pessoas livres e conscientes que vivem em comunhão e se realizam mutuamente, sem anular-se em sua individualidade. O “sono profundo” no qual Deus faz cair o homem “é um sinal do mistério que cerca a relação homem-mulher. Um foi criado para o outro e, quando se unem na relação matrimonial, estão obedecendo ao projeto de Deus, que emerge do mais fundo de cada um, a fim de formar uma nova unidade para os dois, para os próprios filhos e para a sociedade” (STORNIOLO, I.; BALANCIN, E. Como ler o livro do Gênesis. São Paulo: Paulus, 1997, p. 17).

Conforme podemos perceber no conjunto desse segundo relato da criação, estabelece-se íntima ligação não só entre homem e mulher, mas também com todas as demais criaturas. A relação de companheirismo e de comunhão entre ambos se estende para a relação com toda a natureza. Os seres humanos, a terra, a água, as árvores, os animais e todas as demais criaturas vieram da mesma fonte e necessitam-se mutuamente. O artífice divino tudo fez com muita arte e criatividade. E tudo entregou ao nosso cuidado.

  1. Evangelho (Mc 10,2-16): A família como expressão do amor

Os fariseus se aproximam de Jesus para pô-lo à prova. Eles pertencem ao grupo de intérpretes da Sagrada Escritura, participantes de escolas rabínicas, onde se debatia sobre os motivos que justificavam o divórcio, uma vez que este era permitido pela Lei judaica. De fato, no livro do Deuteronômio (24,1) lê-se: “Quando um homem tiver tomado uma mulher e consumado o matrimônio, mas esta, logo depois, não encontra mais graça a seus olhos, porque viu nela algo de inconveniente, ele lhe escreverá uma ata de divórcio e a entregará, deixando-a sair de sua casa em liberdade”. Com base nessa orientação, podiam-se encontrar motivos para o divórcio com muita facilidade. Bastava o marido desejar a separação. É somente ele quem pode tomar a iniciativa, pois, segundo a mentalidade dominante, ele exerce domínio sobre a mulher, considerada sua propriedade. Deduz-se daí que tanto no ambiente doméstico como em outros níveis sociais a opressão masculina era exercida com normalidade, legitimada pela interpretação oficial da Lei judaica, a cargo somente de alguns homens, responsáveis também por elaborar essas leis.

Os ensinamentos e a prática de Jesus revelam que a lei deve estar a serviço da vida do ser humano e não o contrário. Para os fariseus, porém, a Lei mosaica devia ser cumprida como condição para o homem ser justo diante de Deus. Jesus não nega a Lei judaica, mas a põe em seu devido lugar: “Foi por causa da dureza dos vossos corações que Moisés escreveu esse mandamento”. O texto da Sagrada Escritura não pode ser retirado de seu contexto. Também não pode ser interpretado de forma fundamentalista. O critério para a verdadeira interpretação é a vida digna sem exclusão, e não os interesses pessoais ou corporativos. Esse grupo de fariseus propositalmente não levava em conta outros textos que permitiam orientações diferentes para a questão do casamento e do divórcio. Jesus, porém, argumenta de outro ponto de vista. Ele resgata o plano inicial do Criador: “Desde o princípio da criação, Deus os fez homem e mulher... E os dois serão uma só carne”.

O casamento, portanto, deve basear-se no plano criador de Deus. Ele estabelece a igualdade fundamental entre o homem e a mulher. Nenhuma lei pode contradizer esse desígnio divino. Jesus condena a atitude de dominação do homem sobre a mulher e restabelece o direito igual para ambos de tomar decisões. Os dois se tornam uma só carne e, portanto, “o que Deus uniu o homem não separe”. Em outras palavras: se Deus criou a mulher e o homem com a mesma dignidade e a mesma liberdade, o homem não pode quebrar essa relação que fundamenta o amor verdadeiro entre ambos. Assim, a separação não se dará por qualquer motivo. E se houver motivos sérios para isso, o discernimento e a decisão não podem ser unilaterais.

A sequência da leitura mostra que a casa/comunidade onde se encontram os discípulos de Jesus é o espaço do diálogo e do discernimento. É também o lugar da acolhida, do abraço e da bênção, com prioridade às crianças, as mais afetadas pelas atitudes egoístas ou insensatas dos adultos, representados pelos discípulos que repreendem as crianças. Essa atitude agressiva dos adultos contradiz o modo terno e acolhedor de Jesus, cuja vida é pautada pela não violência, pelo respeito ao outro, pelo perdão... Enfim, Jesus promove o projeto de inclusão familiar e social, de modo que todos usufruam as condições materiais e afetivas para uma vida feliz.

  1. II leitura (Hb 2,9-11): Jesus se fez nosso irmão

Esse texto da carta aos Hebreus trata da opção solidária de Jesus por toda a humanidade, assumindo o sofrimento e a morte. Paradoxalmente, a honra e a glória de Jesus manifestam-se em sua morte em favor de toda a humanidade. A cruz, então, tornou-se para todos os que creem nele o caminho da vitória sobre toda a maldade, que procura impedir o plano de amor e de salvação de Deus. Ao assumir a condição humana com seus limites e dores, Jesus torna-nos também participantes de sua morte redentora. Ao identificar-se plenamente com o ser humano, possibilitou que este se identificasse com a sua divindade. Por isso, Jesus não se envergonha de nos chamar de irmãos.

A grandiosidade dele manifesta-se em sua radical humildade e obediência ao plano de Deus. É nosso modelo e caminho. Foi assumindo os sofrimentos e a morte, na fidelidade à sua missão, que Jesus nos redimiu e nos levou à perfeição. Como humanos, fazemos a experiência cotidiana dos limites e sofrimentos. Tornando-se um de nós, ele conhece perfeitamente todos os problemas que enfrentamos. Não fomos criados para o sofrimento, e sim para a perfeição e a glória. No seguimento de Jesus, assumimos a realidade de nossa condição humana com a missão a que fomos chamados, deixando-nos conduzir pela graça de Deus, na certeza de seu amor sem limites. Aprendemos a reconhecer a sua vontade e nos esforçamos para ser fiéis. A fidelidade a Deus exige rompimento com as facilidades enganosas que nos desviam do caminho da perfeição. A plena realização somente se dá na obediência a Deus, a qual se concretiza no amor solidário. Na cruz de Jesus, morremos para o egoísmo e passamos a viver na condição divina. Aí reside nossa honra e glória de irmãos de Jesus.

III. Pistas para reflexão

Deus não criou o ser humano para a solidão. Homens e mulheres foram criados para viver lado a lado, com a mesma dignidade e igualdade de direitos. Necessitam um do outro. Em nossos dias, a questão de gênero está em debate. O plano original de Deus no que diz respeito à relação entre mulheres e homens ainda não se concretizou. A visão dominante manifesta ainda preconceitos e discriminações relacionados à condição feminina. Prova-se até que a relação histórica de dominação do homem sobre a mulher reflete-se na atitude dele de exploração da natureza e destruição do meio ambiente. Podem-se levantar fatos, atitudes e linguagens que revelam essa visão predominante ainda em nossos dias...

Somos discípulos missionários do Senhor a partir da família. O casamento é uma instituição divina. Exige séria preparação a fim de que seja assumido com consciência e liberdade. Homem e mulher tornam-se uma só carne: concretiza-se a unidade na diferença. O amor entre marido e mulher é caminho de mútua santificação. Estende-se para os filhos. Jesus corrige a mentalidade farisaica, que permitia a separação por qualquer motivo. Ele resgata o plano original de Deus e restabelece a igualdade de direitos da mulher. É oportuno refletir sobre a importância da família para a vida de cada um de nós e sobre as consequências doloridas e até desastrosas de um ambiente familiar onde reina o machismo, a violência, o desrespeito...

Jesus fez-se plenamente solidário com o ser humano, assumindo os sofrimentos e a morte. Ele é o nosso irmão maior. Conhece perfeitamente os limites e problemas que enfrentamos em nosso dia a dia. Seguindo Jesus, não desanimamos no caminho da perfeição. Todas as situações, mesmo as difíceis (crises no casamento, separações, doenças, mortes) podem ser assumidas como momentos propícios para acolher a graça de Deus, rico em misericórdia...

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos na Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) e assessor do Cebi, SC. E-mail: [email protected]