Roteiros homiléticos

6 de setembro – 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Celso Loraschi

em Deus: amor aos pobres

  1. Introdução geral

A fé em Deus implica amar prioritariamente as pessoas empobrecidas. É o tema central das leituras da liturgia deste primeiro domingo do mês dedicado à Bíblia. Deus se revelou ao povo de Israel como libertador de todos os males que afligem a vida humana. O profeta Isaías, inserido numa realidade de marginalização e sofrimento do povo, torna-se o anunciador da esperança militante, capaz de transformar a tristeza em alegria, a fraqueza em força, o medo em confiança (I leitura). Afinal, Deus jamais abandona o povo que sofre. Jesus, o Filho de Deus, solidariza-se com as pessoas doentes e excluídas e oferece-lhes a cura e a libertação (evangelho). Deixando-nos tocar pela sua graça, recuperamos a integridade do nosso ser. A carta de Tiago lembra que numa comunidade cristã não pode haver acepção de pessoas. Pelo contrário, deve-se acolher com todo o carinho as que são pobres e sem fama (II leitura). Assim como Deus Pai se revelou sempre próximo e zeloso das pessoas sofredoras, e assim como Jesus assumiu a dores da humanidade, também nós, filhos de Deus e irmãos de Jesus, somos instados a ser coerentes: a fé em Deus implica o amor prioritário às pessoas em situação de necessidade.

Comentário dos textos bíblicos

  1. I leitura (Is 35,4-7a): “Sede fortes, não temais!”

O movimento profético de Isaías Primeiro (cap. 1-39) situa-se pelo final do século VIII a.C. Internamente, o regime monárquico produziu frutos amargos ao povo de Israel. Onde deveria ser promovido o direito, o que apareceu foi a injustiça; onde deveria ser garantido o bem-estar do povo, o que se ouviu foram gritos de desespero (Is 5,7). Além da opressão interna, o exército assírio, pelo ano 722 a.C., invadiu e destruiu o Reino do Norte com sua capital, Samaria, deportando muita gente (cf. 2Rs 17), e em 701 a.C. tomou Jerusalém e as cidades da região sul, impondo altos impostos e mais opressão sobre o povo (cf. 2Rs 18). Isaías é testemunha desses acontecimentos e profetiza a partir do lugar social das vítimas do poder tanto interno como externo.

A profecia exerce função muito importante no meio das pessoas que sofrem opressão política e econômica. Por meio das palavras proféticas, Deus manifesta seu amor e solidariedade ao povo. É um Deus sensível, um pastor cheio de ternura, o protetor das pessoas indefesas. Deus é o padrinho dos pobres, o redentor dos oprimidos, o resgatador da dignidade humana.

O texto é o anúncio de uma boa notícia que revigora os fracos e encoraja os desanimados. Deus fala aos corações conturbados, dizendo que sejam fortes e não temam. Os poderosos deste mundo podem oprimir, mas não podem impedir a intervenção amorosa de Deus em favor dos oprimidos. “Ele vem para salvar!” Os cegos e os surdos recobrarão a capacidade de ver e ouvir, libertos da ideologia dominante. Os coxos poderão andar, e os mudos poderão falar com a liberdade de filhos de Deus. A terra seca será regada com a água da justiça, que produz frutos de vida em abundância a todos. Enfim, a palavra de Deus provoca a esperança militante e incute novo ânimo para a construção do mundo de paz e fraternidade. É importante nos deixar invadir pela palavra profética, libertando-nos de todas as amarras que nos impedem de abraçar com consciência e liberdade nossa missão no mundo.

  1. Evangelho (Mc 7,31-37): “Ele tem feito tudo bem!”

Esse texto do Evangelho de Marcos mostra uma das ações de Jesus em terra estrangeira. Ele vem trazer a salvação a todos os povos. Os seus discípulos estão com ele, porém manifestam grande dificuldade de entender os seus ensinamentos e o seu modo de agir. Alimentam a expectativa de que Jesus manifeste em algum momento todo o poder de um Messias triunfalista, dominando os inimigos e restabelecendo o reino de Israel. Eles não entendem por que Jesus vai pregar o seu evangelho e realizar ações de libertação no meio dos estrangeiros, pessoas consideradas impuras, conforme o ensinamento dos fariseus; não entendem o significado da multiplicação dos pães, têm o coração endurecido, têm olhos e não veem, têm ouvidos e não ouvem. Na verdade, os discípulos estão totalmente contaminados pelo “fermento dos fariseus e de Herodes”, isto é, pela ideologia do poder religioso e político (cf. Mc 8,14-21).

Podemos perceber, então, qual é a intenção de Marcos ao relatar a cura do surdo e gago. Os verdadeiros surdos são os discípulos de Jesus, que, apesar de estarem na companhia do Mestre, de ouvirem seus ensinamentos e verem sua prática, ainda não entendem que tipo de Messias ele é. São surdos e cegos. E ainda são gagos: porque não entendem quem é Jesus, também não conseguem anunciar o seu evangelho com lucidez.

A cura do surdo e gago se dá na Decápole (região de dez cidades), situada além do rio Jordão, fora da Palestina. Nesse episódio, essa região representa todos os países estrangeiros para os quais os discípulos serão enviados a fim de anunciar o evangelho de Jesus e continuar a sua obra. Para isso, precisam ser libertados do seu nacionalismo exclusivista. Devem abrir os ouvidos para acolher a nova proposta de Jesus, diferente daquela dos escribas e fariseus. Portanto, a narrativa da cura do surdo e gago é mensagem dirigida diretamente tanto aos discípulos de Jesus no tempo em que Marcos escreve seu evangelho (por volta do ano 70) quanto a todos nós hoje, pois também podemos nos deixar influenciar pela ideologia dominante, que nos torna surdos aos apelos de Deus e gagos por falta de convicção e coragem de seguir e anunciar o seu evangelho.

É importante perceber a maneira pela qual Jesus cura o surdo e gago. Primeiro, ele o leva para longe da multidão, depois coloca os dedos nas orelhas dele, em seguida lhe toca a língua com a saliva e, por fim, levanta os olhos para o céu, geme ou suspira profundamente e pronuncia a palavra que liberta: “Abre-te”. Esse processo revela que, para sermos discípulos de Jesus, é necessário que nos afastemos da ideologia dominante, que massifica a consciência; é necessário deixar-nos conduzir pela mão do Mestre, permitir que ele nos toque com sua graça e que a vida divina (simbolizada pela saliva de Jesus) penetre nossa vida humana. Assim, a pessoa torna-se capaz de entender Jesus, de viver o seu evangelho e de anunciá-lo com toda a convicção.

Ao ver a prática de Jesus, as pessoas exclamam: “Ele tem feito tudo bem!” Assumindo a missão que lhe foi confiada, Jesus alimenta sua íntima amizade com o Pai (com os olhos voltados para o céu) e permanece solidário com as dores do próximo (geme e suspira profundamente), indicando-lhe o caminho da vida em plenitude. Assim, ele fazia todas as coisas bem-feitas. A amizade com Deus e a solidariedade com o próximo são o que caracteriza o jeito de ser do discípulo missionário de Jesus.

  1. II leitura (Tg 2,1-5): Não fazer acepção de pessoas

A carta de Tiago foi escrita no final do século I e dirigida às “doze tribos da Dispersão”, isto é, ao novo povo de Deus formado pelas comunidades cristãs primitivas espalhadas pelo império romano. Percebe-se que, no meio dessas comunidades, existem condutas não condizentes com o evangelho de Jesus. Uma delas diz respeito à relação com os pobres, conforme indicação do texto deste domingo. Até quando os cristãos se reúnem para as celebrações litúrgicas, constatam-se entre eles atitudes de discriminação intoleráveis. Há líderes ou recepcionistas que acolhem as pessoas ricamente vestidas, dando-lhes atenção privilegiada e oferecendo-lhes lugares confortáveis. Com os pobres, no entanto, o tratamento é outro...

Tiago é um animador cristão que conhece a maneira pela qual Deus se revelou na tradição de fé judaica: acolhendo e libertando os oprimidos. Conhece também o ensinamento de Jesus e sua proposta do reino aos simples e pequeninos: “Atentai para isto, amados irmãos: não escolheu Deus os pobres em bens deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam?” Como seguidor de Jesus, Tiago não usa de meias palavras ao alertar os membros da comunidade sobre essa conduta que contradiz a fé. Ele se revela como um discípulo que não é cego, nem surdo, nem gago. Tem clareza e convicção de sua missão. Uma Igreja fiel ao evangelho de Jesus não poderá jamais abdicar da opção preferencial pelos pobres.

III. Pistas para reflexão

A fé em Deus manifesta-se no amor às pessoas que sofrem. Por isso, uma das dimensões que caracterizam a missão da Igreja no mundo é a dimensão profética. Ela deve renunciar ao espírito de poder-dominação para solidarizar-se com as pessoas oprimidas e promover a justiça. Deve deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus e anunciar a esperança militante aos sofredores e abatidos, a fim de que se tornem protagonistas do novo mundo. Como a dimensão profética está sendo vivida em nossas comunidades eclesiais? Que tipo de “acomodações” devem ser rompidas para manter a fidelidade ao projeto de Deus?

Mudar de mentalidade para seguir Jesus. Os discípulos tiveram muita dificuldade de entender e seguir Jesus com liberdade e convicção. Jesus dedicou-se a curá-los de sua situação de surdos e gagos. Ajudou-os a se libertar da ideologia dominante e ofereceu-lhes novo modo de pensar e de agir. É muito importante termos consciência de nossa condição de seguidores de Jesus: nós o conhecemos de fato? Ou o transformamos à imagem de nossas conveniências? Nós o seguimos e o anunciamos com convicção pelo testemunho de vida, pelas palavras honestas e pelas ações em favor do próximo necessitado? Em que tipos de discriminações incorremos hoje em dia? O que nos diz a palavra de Deus a esse respeito?

Celso Loraschi

Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos na Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) e assessor do Cebi, SC. E-mail: [email protected]