Carta do editor

março-abril de 2013

Caros leitores e leitoras,

Graça e Paz!

Com frequência vemos a religiosidade popular ser classificada como algo menor, como “sincretismo”, invencionice, coisas exóticas, obscurantismo ou mero conjunto de curiosidades. Mas na fé do povo há um tesouro inestimável ao qual convém prestar atenção.

Geralmente, credita-se a enorme e rápida expansão do cristianismo nos primeiros séculos às formulações teológicas, ao grande heroísmo de alguns cristãos, à atuação de algumas lideranças proeminentes. Sem dúvida isso foi importante, mas, como nos mostra com muita eloquência em seu artigo o teólogo Eduardo Hoonaert, tal expansão se deu muito mais pela fé popular e pela atuação cristã nas bases da sociedade. Pesquisas arqueológicas demonstram que a religiosidade popular e a capacidade do cristianismo de dialogar com as pessoas das classes mais baixas é que permitiram que Cristo fosse tomando o lugar de divindades reinantes no imaginário daquele tempo, como Asclépio, a quem a população recorria para a solução de seus problemas (doença, marginalização, morte). Maria superou a deusa Ísis, cuja imagem a apresentava com o filho nos braços e que era cultuada como mãe de deus, a mãe carinhosa que protege as pessoas. Somente após muita relutância, no século IV, no Concílio de Niceia, aceitou-se oficializar o título de Maria como Mãe de Deus, o qual o povo teimava em atribuir-lhe.

Com isso se percebe quanto é difícil, senão impossível, dizer o que é sincrético e o que é puro. Mesmo o que hoje é considerado a mais pura ortodoxia está atravessado pela riqueza da diversidade cultural do povo. Quem estuda a Bíblia um pouco mais a fundo sabe que até os livros mais antigos têm diálogos e elementos recebidos das culturas e religiões dos povos vizinhos. De igual modo, se as congadas brasileiras são consideradas sincréticas, também o podem ser muitas de nossas formas religiosas oficiais, pois são imbuídas de diálogos e trocas culturais firmadas pelo cristianismo ao longo dos séculos. É inegável, por exemplo, a influência da cultura europeia em muitos aspectos do cristianismo, até mesmo nas vestes litúrgicas. Toda religião, como toda cultura, constitui fenômeno vivo, dinâmico, que não tem como ser isolado numa visão única, separada,  cartesiana, intelectualizada e petrificadora. Fazer isso seria empobrecer a realidade.

A Igreja, como está configurada, foi, em grande parte, constituída pela religiosidade popular e se mantém graças a ela. Abrir-nos humildemente a essa enorme contribuição do povo não significa aceitar e endossar toda forma de religiosidade de maneira populista, mas aprender com quem poderíamos achar que não tem nada a ensinar. Trata-se de saber dialogar com o imaginário do povo e com seus sistemas simbólicos, encontrando neles o que há de profundamente evangélico; procurar o sagrado vivo e presente na fé do povo e estar dispostos a aprimorar o que porventura não seja evangélico. Não é nenhum favor fazer isso, ao contrário: é a fé do povo que nos presta obséquio, ajudando a relativizar cientificismos, intelectualismos, eurocentrismos, teologias e liturgias frias ou tendentes a se distanciar da realidade.

 

Pe. Jakson Ferreira de Alencar, ssp

Editor