Roteiros homiléticos

Publicado em setembro-outubro de 2022 - ano 63 - número 347 - pág.: 49-51

27º Domingo do Tempo Comum – 02 de outubro

Por Marcus Mareano*

A fé em um Deus soberano

I. INTRODUÇÃO GERAL

Muitas vezes nos relacionamos com Deus à base de trocas, achando que devemos agir de determinada forma para ter bênçãos e culpando-o quando nos falta algo ou alguma coisa ruim nos sucede. A realidade é bem complexa, supera nossas explicações a seu respeito, e nem tudo que acontece é responsabilidade de Deus ou nossa.

A primeira leitura mostra um diálogo entre Deus e Habacuc, no qual há a queixa do profeta por tantas desgraças e a resposta de Deus convidando à fidelidade. Na segunda leitura, Paulo convida Timóteo a não se envergonhar do Evangelho recebido e a guardar os ensinamentos a ele confiados. A narrativa de Lucas apresenta a resposta de Jesus ao pedido dos discípulos para que lhes aumente a fé. Que eles tenham maior fé e a vivam servindo a quem precisa, pois foi assim que Jesus praticou sua confiança no Pai.

Em tempos de comercialização de tudo – incluindo a fé –, as leituras tratam da gratuidade de Deus e do valor de confiar nele sem esperar nada em troca. Crer em Deus já é grande benefício em si mesmo. Como dizia Santa Teresa de Ávila: “Quem a Deus tem, nada lhe falta: só Deus basta”.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Hab 1,2-3; 2,2-4)

A profecia de Habacuc se situa historicamente antes da destruição de Judá pelos babilônios. Encontramos diferentes referências à investida babilônica contra Judá e outros povos (1,6; 1,13; 2,8).

O conteúdo principal de seu escrito é a questão da justiça divina: Deus exerce ou não sua justiça? Nesse plano se situa o diálogo da leitura deste domingo. A primeira parte é o questionamento do profeta a Deus (1,2-3). Ele reclama de Deus alguma ação diante da triste realidade de Judá.

Habacuc clamou por socorro, pediu a salvação, queixou-se da violência e da predominância da iniquidade (Jr 10,23-25; Is 59,9-14; Jó 19,7). As palavras do profeta descrevem a situação social do povo de Israel antes do exílio, que ocorreu aproximadamente em 587 a.C. Os infiéis à Aliança com Deus se destacavam na sociedade e demonstravam sua injustiça por toda parte. A fé no Senhor geraria o direito e a justiça, mas, por enquanto, não era o que Habacuc presenciava.

A resposta de Deus ocorre na segunda parte (2,2-4). Ao contrário do que se gostaria de ver, Deus não elimina imediatamente os ímpios para que os problemas se resolvam. Ele pede que se grave bem isto: os justos permanecerão fiéis e experimentarão as consequências de sua fidelidade, enquanto os injustos e promotores de violência terão, de igual modo, sua sorte determinada pelas próprias ações e sofrerão os castigos devidos.

A reação de Deus à objeção de Habacuc anuncia um futuro que é consequência das atitudes do povo. De um lado, um pequeno resto fiel ao Senhor; de outro, a maior parte de infiéis, que não viviam conforme os Mandamentos.

2. II leitura (2Tm 1,6-8.13-14)

Acompanharemos, nos próximos domingos, a segunda carta de Paulo a Timóteo. O contexto histórico é bem próximo do da primeira carta, mas o conteúdo se assemelha mais a um “testamento espiritual” do velho apóstolo a seu discípulo.

O curto trecho selecionado constitui uma exortação inicial, que começa com a lembrança da imposição das mãos, pela qual Paulo conferiu a Timóteo “o dom de Deus”, o carisma do apostolado (v. 14). Ele o encoraja, dizendo que Deus não deu a Timóteo um espírito de medo e de covardia, mas de fortaleza, de amor e de moderação. Portanto, este não deve ter vergonha de testemunhar a fé em Cristo (v. 8).

Por fim, Paulo apresenta, como norma de sua obra, aquilo que ensinou e mostrou por palavras e ações, o que Timóteo dele viu e ouviu, no âmbito da fé e do amor em Jesus Cristo. Isso se torna agora o belo (precioso) “depósito” confiado a Timóteo, com a ajuda do Espírito Santo (4,3; 1Tm 1,10; 4,6; 6,3; Tt 1,9; 2,1.10). Ele deveria agora transmitir destemidamente às futuras gerações o que recebera.

Paulo deseja que Timóteo continue a missão de propagar o Evangelho que ele próprio anunciou. Não é preciso temer os desafios nem desanimar do processo, pois o Espírito Santo fortalece e capacita para tal tarefa.

3. Evangelho (Lc 17,5-10)

O texto do Evangelho deste domingo se inicia com um pedido ousado dos discípulos ao Senhor: “Aumenta nossa fé” (v. 5). Já não lhes bastava uma fé tradicional de costumes, eles queriam mais. No entanto, o grupo pensava a fé como quantidade, ao passo que Jesus ensina de forma diferente.

A resposta de Jesus demonstra o jeito oriental de explicar as coisas, usando comparações e exageros. Ele explica a importância da qualidade da fé, como ato de confiança em Deus. Era mais importante uma fé viva, forte e eficaz. Aos discípulos, bastaria a fé ser como um grão de mostarda, para poderem dizer à amoreira, símbolo de solidez e estabilidade, que se arrancasse e se plantasse em outro lugar (Mt 17,20; 21,21; Mc 11,23). A fé qualificada é capaz de mudar realidades difíceis.

Jesus continuou a ensinar, contando uma parábola em forma de questionamento (v. 7-9). Que senhor, diante de um servo que estivesse voltando do seu trabalho ordinário, o convidaria para sentar-se à mesa para a refeição? Ao contrário, dir-lhe-ia antes que o servisse, conforme lhe convinha por ofício. Tal senhor não se admiraria pelo serviço feito.

De igual modo, os discípulos deverão se reconhecer como “simples servos” quando tiverem cumprido todos os mandamentos e julgarem ter feito muito para o Reino de Deus. Muitas traduções usam a expressão “servos inúteis”, mas a palavra originalmente significa “sem valor (de mercado) especial, mas muito útil e necessário”. Servo inútil é quem não serve. Cumprir a missão não é nada demais, ela é a própria recompensa (1Cor 9,16).

Assim, a fé (fidelidade) em Deus cresce com o movimento de saída de si mesmo para servir a quem precisa. Jesus não ensina a aumentar a quantidade de fé, pois não se crê em coisas, mas em Deus (Pai, Filho e Espírito Santo). A instrução é para que se qualifique a fé com a prática do serviço amoroso, que gera mudanças consistentes no tempo devido.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Iniciamos o mês das missões, e a liturgia nos provoca com uma questão atual a respeito da relação entre a fé e suas consequências para a vida.

O grito de Habacuc pode ser também o nosso. Assistimos a tantas injustiças, violências e desrespeitos e sofremos com tudo isso. A queixa daquele tempo pode se estender ainda mais, diante das complexas tarefas sociais que temos na atualidade. Deus responde que o justo (fiel) viverá por sua fé. Isso significa que quem crê deve se comprometer na vivência da fé e se engajar para que as coisas melhorem. Imaginemos como o Brasil seria melhor se os políticos que citam a Bíblia vivessem verdadeiramente o que leem. Infelizmente, as notícias mostram o contrário.

O dom da fé é pedido pelos discípulos a Jesus. Contudo, o Mestre não ensina como acreditar em mais coisas, e sim como qualificar o que se crê, vivendo-o como amor e serviço. Esse ato de crer mencionado por Jesus deriva de um abandonar-se confiantemente no mistério divino. Ele próprio o demonstrou com sua vida, servindo a todos até o fim.

A fé transmitida por Paulo a Timóteo deve ser proclamada a mais pessoas. Ela chegou até nossos dias atravessando séculos e tocando-nos no presente momento de nossa história. Diante dos desafios contemporâneos, não precisamos recuar com receios, mas confiar no Espírito de fortaleza, de amor e de moderação que recebemos.

Nós, que acolhemos o dom da fé, não a guardamos para nós mesmos. Cabe-nos propagá-la, vivendo-a no amor e no serviço a quem precisa. Nossa melhor missão é o testemunho de uma vida cristã comprometida e perseverante, como afirma uma frase famosa de dom Helder Câmara: “É graça divina começar bem. Graça maior é persistir na caminhada certa. Mas graça das graças é não desistir nunca”.

Marcus Mareano*

*é bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje). Doutor em Teologia Bíblica, com dupla diplomação, pela Faje e pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica (KU Leuven). Professor adjunto de Teologia na PUC-MG, também colabora com disciplinas isoladas em diferentes seminários. Desde 2018, é administrador paroquial da paróquia São João Bosco, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected]